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História Paranoid - Creed.


Escrita por: sympathize

Notas do Autor


Boa leitura! ;*

Capítulo 3 - Creed.


Fanfic / Fanfiction Paranoid - Creed.

Morar com a Lauren foi à coisa mais agradável que acontecera em minha vida. Ela era sempre doce e atenciosa, não cobrava nada de mim, e, por isso, eu não media esforços em ajudar no que fosse possível.

Nossa compatibilidade era surpreendente, até mesmo assustadora. E isso tornava a convivência em algo naturalmente costumeiro e descomplicado.

Enquanto a mesma saía para trabalhar, eu me ocupava em cuidar da casa. Por sorte, tinha certa experiência, já que ainda muito nova, em meu período de férias e engolida pelo tédio de sempre ter quem fizesse as coisas por mim, eu vivia ajudando a Theresa – funcionária dos meus pais – na organização da casa, para me distrair e também porque tinha interesse em ser uma futura boa dona de casa; visto que eu jamais pretenderia ser o tipo de mulher que dependia dos outros, principalmente de um homem, para tudo.

No começo, Theresa implicava, com medo da reprovação dos meus pais caso soubessem que a mesma andava me ocupando com as suas obrigações. Mas, no fim, acabei convencendo-a. E, em resultância disso, aprendi a cozinhar e tomar conta de quaisquer tipos de tarefas domésticas. 

Logo, e por ter total certeza da minha competência naquele quesito e apreciar manter as coisas em perfeita ordem, não me importava em passar o dia fazendo faxina. Além do mais, eu até mesmo gostava de um bom ambiente tranquilo, onde eu pudesse me sentar – depois das tarefas cumpridas – e ler um livro sem ser atrapalhada. Não que a Lauren fizesse muita bagunça, na verdade, ela era uma grande distração, e quando estávamos juntas, passávamos a maior parte do tempo conversando, então não havia espaço para qualquer outra coisa.

A primeira semana, após ter sido chutada para fora da casa dos meus pais, estava sendo encorajadora, embora eu soubesse e sentisse que ainda haveria muitas barreiras a serem derrubadas. No entanto, estar passando aquele tempo ao lado de minha melhor amiga estava ajudando-me a retomar minha confiança e, em consequência disso, eu andava menos pessimista e dramática, e igualmente me sentia melhor comigo mesma. Muito mais determinada e esperançosa. Incitada a virar o jogo e me realinhar, encontrar uma forma de me sustentar e provar para os meus pais que, a vida inteira, eles estiveram errados ao meu respeito.

A cada novo dia, minhas buscas por trabalho se tornavam mais constantes, explorando de páginas do Facebook a diversos sites, decepcionando-me ao perceber que todas as propostas exigiam, no mínimo, certo tempo de experiência e/ou, nos casos mais extremos, algum tipo de especialização.

Ainda assim, desistir não estava entre minhas alternativas.

E, acompanhando meu total desespero ao ver os dias passando e continuar na mesma, Lauren constantemente tentava me assegurar de que eu não precisava surtar tanto, pois ela podia segurar as pontas pelo tempo que fosse preciso, e eu devia esperar as coisas acontecerem calmamente, para não acabar enfiando os pés pelas mãos. 

Ainda assim, a sensação de dever em ajudá-la de alguma forma com as despesas me impedia de conseguir ficar tranquila. E mesmo que eu a estivesse ajudando com o pouco que estava ao meu alcance, não parecia o bastante. Diante disso, minha ânsia em encontrar uma ocupação remunerada se tornava cada vez maior, ainda que eu não soubesse por onde começar. Afinal de contas, nunca havia trabalhado antes, uma vez que, durante o tempo em que vivi na casa de meus pais, não cheguei a precisar me preocupar, pois eles nunca me reivindicaram nada e estavam continuamente cuidando de tudo.

Apesar disso, mesmo tendo crescido em uma vida com facilidade, nunca fiz muito o estilo garotinha-mimada. E, por decorrência disso, a nossa relação familiar tornou-se complexa. Por eu sempre ter estado procurando fazer algo além do que eles achavam que eu deveria; e um bom exemplo, uma das poucas coisas que me orgulho em ter feito, foram os trabalhos voluntários que participei no decorrer do ensino médio. Saindo de casa cedo e retornando tarde da noite, exausta, porém, profundamente satisfeita em estar colaborando para a felicidade de outras pessoas.

E, então, decidida a me dedicar completamente, acabei largando o estúpido curso de Francês, que papai gastava um valor dispendioso por aulas caseiras duas vezes na semana, e, de brinde, ganhei um mês de castigo. Mesmo assim, continuei me voluntariando – Mason quase nunca estava em casa e era extremamente fácil fugir de mamãe –, e isso o deixou furioso. Com o tempo, os castigos foram aumentando, e minha desobediência também. O que fez com que nossa relação, antes complexa, se tornasse praticamente inexistente.

No final, meus esforços haviam sido compensados, e muito, e apenas isso contava. A vida despreocupada de antes me permitia não pensar tanto em mim e, assim, passei um longo tempo pensando nos outros, empenhada em ajudá-los. Mas, infelizmente, em minha situação atual, eu precisaria começar a exclusivamente me ajudar e a simples ideia de não conseguir me consumia dolorosamente. Porque eu sempre fui melhor em cuidar das necessidades de outras pessoas, mas um grande fracasso quando se tratava de mim mesma.

Contudo, havia muita coisa que eu precisaria aprender para sobreviver em minha nova realidade. E lidar comigo mesma encabeçava a lista.

Afastando os pensamentos, me deitei no sofá e permaneci fitando o teto. Tentando pensar em como distrair minha cabeça ao menos naquele momento, para que parasse de ser tão atormentada por preocupações. E eu não queria ter que ir até a lanchonete como a Lauren havia sugerido, caso eu estivesse me sentindo sozinha e entediada – como estava naquele instante –, pois já me sentia uma completa inútil e a última coisa que queria era me tornar um estorvo maior na vida dela.

Laurence Edwards. O que seria de mim sem Laurence Edwards? Só em pensar nela, eu sentia a gratidão explodindo como fogos de artifício dentro de mim.

Ela sempre foi uma pessoa altamente presente e gentil, e que constantemente se importava demasiadamente comigo. Muitas vezes era como se fosse capaz de mover montanhas para o meu bem-estar e diversas vezes já havia me dito para ir morar com ela, para deixar de uma vez a casa dos meus pais e correr atrás das minhas escolhas – quem dera eu tivesse lhe dado ouvido antes. Ela sempre foi uma das poucas coisas verdadeiras que já tive.

Nos conhecemos aos 9 anos de idade, na frente do colégio, quando eu permanecia sentada na escadaria. Era sexta-feira e todos já haviam ido embora, somente eu continuava ali, encarando o caminho por onde o carro deveria surgir a qualquer momento, numa expectativa urgente. Esperando por mamãe, que havia se atrasado mais uma vez e era a terceira na mesma semana.  

— Olá — uma voz soou doce ao meu lado e eu ergui minha cabeça, em alerta, deparando-me com uma garota de cabelos negros e olhos escuros me encarando, curiosa.

— Oi — sussurrei de volta e ela sorriu, sentando-se ao meu lado.

Chequei se o carro de mamãe vinha pela estrada, porém ainda não havia sinal algum dela.

— O que está fazendo aqui? — a garota questionou, após um tempo em silêncio.

Antes de respondê-la, eu respirei profundamente:

— Esperando minha mãe.

— Ela está muito atrasada, não é? Acabei se sair da aula de música que tenho depois do período escolar e dura quarenta minutos.

— Não é a primeira vez que ela faz isso — repliquei, torcendo meus lábios e olhei-a brevemente.

Ela sorriu simpática e eu lhe retribuí com pouco entusiasmo.

— Seu nome é Savannah, certo? — indagou animada e eu concordei com um aceno de cabeça, estreitando as sobrancelhas. — Eu sou Laurence Edwards, mas você pode me chamar só de Lauren ou até mesmo Laurie. — Ela esboçou uma expressão engraçada. — Poucas pessoas me chamam assim, na verdade. Mas você pode, se quiser, é claro.

Não pude conter a risada depois da tagarelice nervosa dela e a mesma me acompanhou, acanhada.

— Você senta na fileira ao lado da minha e eu já te ouvi tocando violino na sala de música — comentei e as bochechas dela ficaram notavelmente vermelhas.

— E o que achou?

— Você manda bem.

Ela sorriu amplamente.

— Eu sempre quis falar com você — confidenciou após um tempo e eu a encarei seriamente.

Estávamos no quarto ano do ensino fundamental e éramos da mesma sala, porém não nos falávamos, já que eu não cultivava amizade com ninguém da escola, por achar uma completa babaquice todos parecerem gostar tanto de criticarem uns aos outros e depois fingirem amizade numa normalidade irritante. Era sinistro ver o quanto algumas crianças, apesar da pouca idade – algumas até mesmo mais novas que eu –, já eram estúpidas e antipáticas, embora eu não devesse me surpreender tanto, visto que era só isso mesmo que deveria se esperar de uma escola particular: crianças fúteis, uma querendo se sobressair sobre a outra.

No entanto, aquele não parecia ser o caso da garota genuinamente simpática que se sentou ao meu lado.

— E por que não falou? — indaguei curiosa, e ela torceu os lábios.

— Não sei, acho que fiquei com medo de você não gostar de mim.

Ela sorriu sem graça e eu analisei-a momentaneamente, procurando alguma razão para não gostar dela, até porque, no pouco tempo em que ela esteve ali, eu já havia gostado. E havia conversado com ela mais do que já conversei com qualquer outra pessoa daquele lugar.

— Bem, quer saber de uma coisa? — questionei e ela assentiu veemente, seus grandes glóbulos escuros encarando-me em expectativa. — Eu gostaria que tivesse falado comigo antes.

Lauren abriu um sorriso de ponta a ponta e eu sorri mais timidamente. Eu não era muito boa em fazer amizades, pois não sabia bem como lidar e o que esperar das pessoas, na realidade, não esperava muita coisa delas. Mas, no fundo, sempre quis amigos de verdade, ainda que fossem poucos, ainda que fosse apenas um. Todavia, nunca soube como cativá-los, tampouco cultivá-los. A

Apesar disso, com Laurence Edwards, desde o início eu assustadoramente senti que estava tudo bem; que estava tudo bem mantê-la por perto e que ainda estaria tudo  perfeitamente bem se continuássemos nos falando daquele dia em diante. 

— Mamãe sempre me diz que nunca é tarde para nada — Lauren disse entusiasmada, despertando-me, e esticou sua mão em minha direção. — Então, amigas?

Olhei-a brevemente e sorri abertamente, pegando sua mão e balançando-a euforicamente.

— Amigas! — repeti e sorrimos ao mesmo tempo.

Admito que, no momento em que parecíamos ter selado um pacto de amizade, eu não imaginei que realmente fossemos chegar tão longe – que nossa amizade ultrapassaria a fronteira que o período estudantil normalmente impõe em quem se conhece por sua influência. Mas, depois daquele dia, Lauren e eu nunca mais nos separamos. Permanecemos juntas o tempo todo, uma sempre ajudando a outra quando era preciso. E até mesmo na sexta série, quando estudamos em turmas diferentes, continuamos inseparáveis e, por isso, eu me sentia tão honrada por ter encontrado nela a amizade autêntica que sempre sonhei em ter. Profundamente feliz por, naquele momento, estarmos dividindo o mesmo teto e era a primeira vez que me sentia em família, em um lar de verdade.

Expirei, dispersando os pensamentos e me levantando. Cambaleando até o quarto, para tomar uma ducha, pois precisava sair para respirar um pouco de ar fresco e relaxar. Durante o banho, decidi que iria até minha cafeteria favorita e depois passaria na biblioteca, para pegar algum livro, já que havia terminado de ler Marley e Eu – que mamãe havia me comprado semanas antes.

Após dificultosamente abandonar a água morna que acariciava minha pele, e me enrolar numa toalha, retornei para o quarto e me produzi com um look confortável – blusa vermelha de manga cumprida, skinny jeans preta e coturno da mesma cor –, pois mesmo com o sol brilhando lá fora, um vento gélido circulava.

Assim que terminei de me arrumar, peguei as chaves do carro, dinheiro o suficiente para meus gastos, fechei as janelas e depois saí, trancando a porta. Felizmente não precisava me preocupar em voltar às pressas, já que a Lauren tinha sua chave, então poderia aproveitar bastante para pôr minhas ideias no lugar e dar uma pausa nas lamentações.

A partida até a cafeteria não foi tão longa, chegando lá, estacionei em uma vaga apropriada – e que não fosse dificultar minha saída caso o local enchesse de uma hora para a outra – e desci do carro, caminhando animadamente. Fazia um tempo que não bebia um bom café e saboreava os deliciosos e meus favoritos brownies de chocolate, por isso, faria valer à pena minha ida até aquele lugar criado pelos deuses, para matar todo o desejo de cafeína e açúcar que eu andava sentindo.

O movimento não estava tão intenso e não havia fila alguma, portanto, não tardei a conseguir fazer meu pedido, e, em seguida, me sentei confortavelmente em uma parte mais reservada. Tomando mais dois copos de café e comprando mais brownies, enquanto mexia em meu celular, até me dar conta do horário e me lembrar que pretendia pegar um livro na biblioteca.

⚜⚜⚜  

Desci os degraus da Secret Garden Bookstore admirando o livro que havia em minhas mãos, afinal de contas, O Morro Dos Ventos Uivantes era, sem dúvida, o livro mais recomendado por Lauren, e era uma das únicas indicações da mesma que eu ainda não havia lido. Apesar de não saber se conseguiria me focar plenamente, eu definitivamente estava precisando ocupar minha cabeça com alguma coisa. E geralmente não existia nada melhor que a leitura. Fugir da realidade, talvez, me ajudasse um pouco.

Respirei fundo e ergui minha cabeça, fitando os arredores, e reparando o sol se pondo de maneira encantadora mais à frente. O fim de tarde era maravilhoso daquele lado da cidade e eu costumava vê-lo mais frequentemente quando o trem de minha vida ainda estava nos trilhos. Aquele céu alaranjado era a visão mais bela e fascinante, o alvorecer e o crepúsculo sempre despertaram uma sensação anestésica em mim.

Sorri abertamente ao sentir uma brisa chicoteando contra o meu rosto e olhei na direção do familiar playground improvisado do outro lado da rua, me deparando com duas crianças correndo animadamente, de um lado para o outro, ao redor de alguém que usava um sobretudo completamente preto, com um capuz estranhamente grande. Maquinalmente meus olhos se estreitaram, estranhando a utilização daquele tipo de vestimenta naquele horário e com uma temperatura parcialmente quente, e, por curiosidade, continuei encarando a cena, até que pude nitidamente ouvir o garoto chamando a pessoa estranha em sua frente de “monstro bizarro”. 

Motivada pela revolta, atravessei a rua inconscientemente e fui me aproximando enquanto apertava o livro em minhas mãos, o vento batendo ainda mais contra o meu rosto, cada vez mais estranhamente frio. E conforme me aproximava mais, e ouvia os insultos que ambas as crianças cuspiam para a pessoa diante deles – que presumi que talvez fosse um pobre morador de rua –, minha fúria apenas aumentava.

Apesar de ter a consciência de que grande parte das pessoas da cidade eram pretensiosas ao extremo e tinham aversivo prazer em fazer jus a sua classe social e outras futilidades, como julgar alguém pela maneira que se veste, isso nunca deixava de particularmente me perturbar.

— O que você faz aqui? Não é o seu lugar! — a garota, que aparentava não passar dos dez anos, cuspiu agressivamente.

— Mamãe disse que você nem ao menos deveria respirar o mesmo ar que os de mais! — ouvi o garoto, que devia ser dois anos mais novo que a outra, dizer com frieza e cerrei o cenho.

— Me deixem em paz — uma voz, rouca e baixa, murmurou quando eu já estava mais próxima; havia sido quase um rosnado. 

— Seu lugar é no manicômio, seu doente! — a menina acusou com nojo.

Apressei meus passos, determinada a acabar de uma vez por todas com aquele desrespeito infundado. Afinal de contas, o que aquelas crianças insignificantes achavam que estavam fazendo? Quais direitos àqueles dois imbecis mirins achavam que tinham para ofender alguém daquela maneira baixa e cruel? Senti meu sangue ferver em minhas veias. Como eu odiava aquele tipo de pessoa, como eu odiava ainda mais o fato dos meus pais terem a intenção de me transformar em um monstro como aqueles pirralhos malcriados que, sem dúvida alguma, nunca haviam levado uma boa correção por serem tão impertinentes.

— Ei, o que está acontecendo aqui? — inquiri saber, sem ao menos olhar para a pessoa que eles estavam ofendendo, olhando diretamente para as crianças que ficaram visivelmente surpresas com a minha aproximação.

— Na-nada — o garoto gaguejou, fingindo-se de desentendido.

Franzi o cenho, demonstrando-me totalmente irritada.

— Se estão fazendo nada, vão embora então — ordenei incisiva, olhando-os seriamente e ambos se entreolharam.

— Quem você pensa que é? — a garota questionou, erguendo uma sobrancelha para mim.

— Quem você pensa que é? — repeti, frisando as palavras e ela recuou quando me aproximei. — O que estão esperando para darem o fora daqui? — Cruzei os braços diante do meu peito. — Andem logo, sumam!

— Vamos embora, Ambrie — o garoto sugeriu baixinho.

A menina olhou-me feio uma última vez antes de se dar por vencida e assentir para o mais novo, que presumi ser seu irmão por conta da semelhança física. Ambos bufaram e começaram a caminhar, devagar.

— Teve sorte, Creed — Ambrie, a criança mais abusada e, de acordo com meu querido pé, de traseiro mais chutável, sussurrou ao passar ao lado do desabrigado cujo meus olhos se fixaram assim que as crianças se afastaram.

O vento uivou, bagunçando alguns fios de meu cabelo.

O capuz enorme não me permitia ver nenhuma parte do rosto dele e me perguntei quem estava por baixo de todos aqueles panos; confesso que nem todas as teorias me agradaram. Logo, concluí que se ele fosse tão perigoso assim àquelas crianças não estariam o desafiando daquela maneira. Além do mais, elas pareciam não ter medo algum dele. Ou talvez só estivessem se aproveitando por estarem em um local público.

— E aí — comecei, meio sem jeito, sem saber como prosseguir. — Tudo bem?

Em ato automático, dei um passo para frente e ele recuou, abaixando ainda mais a cabeça. Estreitei os olhos e cocei a sobrancelha, coloquei uma mexa de cabelo atrás da orelha e soltei o ar pesadamente.

— Ahn... Eu sinto muito pela falta de educação das crianças, sabe? Esse lado da cidade não é muito conhecido por ter as pessoas mais cordiais.

Tentei me aproximar novamente, mais sorrateiramente, e ele novamente se afastou. Bufei maquinalmente e ele ergueu o rosto minimamente, dando visão para uma parte de seu pescoço. Arqueei as sobrancelhas, pois, embora estivesse vendo tão pouco, o mesmo não parecia ser velho, mesmo assim, ainda não dava para tirar qualquer conclusão. 

Além disso, eu não estava conseguido me concentrar direito, porque, por mais insano e impossível que pudesse parecer, já que seu rosto permanecia oculto, podia sentir como se ele estivesse me observando e aquilo estava começando a me deixar inquieta, e um pouco sobressaltada.

— Você precisa de ajuda? — questionei com cautela, afastando-me dois passos e ele se aproximou, abaixou o rosto, cobrindo o pouco que havia descoberto, e passou apressado ao meu lado sem ao menos dizer uma palavra.

Me virei na direção dele e analisei-o enquanto andava completamente desengonçado até uma Kombi velha, estacionada próxima dali. Sem hesitar, ele entrou no automóvel e bateu a porta com uma força desnecessária, o ranger do motor tornou-se audível.

— Disponha! — gritei, acenando com ironia, e ele arrancou com o carro sem nem olhar para os lados ou tirar aquele maldito capuz da cabeça. — Imbecil.

Soprei a mecha de cabelo que soltou novamente, irritada por ter sido generosa e não ter recebido nenhuma gratidão básica, aliás, ele não precisava ter revelado o seu rosto se não quisesse, só bastava ter dito uma simples porcaria de “obrigado”. Aposto que não morreria por isso! 

Olhei ao redor e a rua estava pouco movimentada, o sol já havia se posto completamente e já era hora de voltar para casa. Caminhei até o meu carro, entrei e enfiei a chave na ignição. Dei uma última olhada na direção em que o homem estranho antes estava e fiz sinal negativo com a cabeça, desdenhando da minha atitude. 

— Deveria ter deixado ele se virar sozinho — resmunguei, com ressentimento.

Virei à chave com agressividade e quando o motor ligou, manobrei para fora do estacionamento e pisei fundo no acelerador, decidida a tirar aquele acontecimento da minha cabeça. Apesar disso, completamente diferente do que eu desejava, aquilo me atormentou durante toda a partida.

Ao parar em um sinal vermelho, fiquei batucando no volante, irrequieta. Possivelmente não existia nada mundo que eu detestasse mais do que ser ignorada, ainda mais após praticar um ato de bondade. Não que eu o houvesse ajudado esperando pelo agradecimento – aliás, eu havia ido por vontade própria –, mas, maldição!, muito provavelmente se tratava de um maldito desafortunado, então, qual era o problema em reconhecer minha ajuda ao invés de ficar se afastando de mim como se eu tivesse alguma doença contagiosa? 

Aí estava o ponto chave: minha ira não se dava somente por conta da ingratidão e sim, em grande parte, pela rejeição.

Até por um estranho qualquer eu era reprovada.

Estacionei em frente à casa da Lauren e desci rapidamente, ativando o alarme e indo às pressas até a porta. Após entrar, sem demora, me joguei no sofá e fechei os olhos. Suspirei pesadamente, pela milésima vez desde o acontecido.

— Onde você estava? — Lauren perguntou, adentrando a sala e eu abri os olhos, fitando-a brevemente. Ela me analisou e estreitou as sobrancelhas. — O que aconteceu?

— Nada — resmunguei, ignorando a pergunta anterior.

— Com essa sua cara de quem comeu e não gostou, é impossível não ter acontecido nada — provocou, aproximando-se e pegou o livro que eu havia deixado sobre a mesinha de centro, analisando-o com um sorriso de lado.  — Vamos, me conte.

Colocou o livro no lugar, levantou minhas pernas e se sentou, colocando-as em seu colo.

— Pode me contando, Darling — insistiu.

Expirei e olhei para o teto, pensando na melhor maneira de dizer para ela que eu estava daquela maneira porque havia ajudado um potencial desabrigado e ele não havia me agradecido, mas no fundo eu sabia que aquilo não era tudo. E que naquele momento minha irritação não tinha mais nada a ver com a ingratidão e tampouco com a rejeição, mas sim com meu maldito lado curioso, acionado por conta da estranheza daquele sujeito. Afinal, ninguém em sã consciência andaria vestido daquela maneira em plena luz do dia.

— Desenvolve, Savannah — ela pediu, dando um tapa leve em minha perna e eu respirei resignada, dando-me por vencida.

— Quando eu estava saindo da biblioteca, vi duas crianças ofendendo um cara naquele playground em frente — comecei enquanto ainda fitava o teto e podia sentir o olhar da Lauren em minha direção. — Aí, a boa-samaritana aqui foi lá expulsar aqueles pestinhas por estarem zombando de um suposto pobre morador de rua — fiz aspas com os dedos. — Fiz o maior papel de idiota, para depois o cara ir embora sem nem me agradecer. E eu ainda puxei assunto — ergui o indicador, como se estivesse ressaltando minha defesa —, perguntei se ele precisava de ajuda, mas ele parecia assustado ou — franzi a testa, confusa. Perdendo-me em meu próprio raciocínio e fechei os olhos com força, respirando densamente. — Eu sei lá.

Aquilo tudo era uma imensa besteira, eu concluí.

— Está assim só por que um morador de rua não agradeceu sua ajuda? — Laurie indagou, tirando-me das abstrações.

— Não sei bem se ele era um morador de rua — torci meus lábios, enrugando o nariz. — Ele tinha um carro, uma Kombi branca.

Senti as mãos da Lauren se apertarem ao redor de minha perna, me fazendo abrir os olhos para encará-la e a mesma encarava o chão, perplexa.

— Como era esse cara, exatamente? — perguntou, ainda mantendo seus olhos no mesmo ponto invisível.

— Ele estava usando um sobretudo preto bem gasto, com um capuz enorme que cobre o rosto inteiro — contei sem demora. — As crianças estavam o ofendendo e teve um momento em que a garota o chamou de — pausei, estreitando os olhos. Como era mesmo? Cliff? Cliver? Cheed? — Creed! — praticamente gritei e vi o queixo da Lauren cair, sua boca se abrindo em um perfeito “O”.

— Ai, meu Deus! — Lauren exclamou surpresa, levando as mãos até sua escancarada e seus olhos estavam arregalados. — Meu Deus! Meu Deus, Savannah! Você o viu! — Ela me fitou, exageradamente pasma. — Meu Deus, você viu o Creed!

Estreitei minhas sobrancelhas, sem entender o porquê daquela reação toda e ela subitamente ficou em silêncio. Parecia estar perdida em devaneios e quando seus olhos vieram em minha direção, encarei-a completamente com dúvida.

— O nome deveria significar alguma coisa para mim? — perguntei e ela me fitou incrédula. — Qual é? Ele já foi ingrato com você também? — arrisquei, sentando-me.

Lauren permaneceu com aquela expressão vazia e descrente, como se nada daquilo fizesse sentido, e não fazia mesmo, mas só que era para mim! Até porque eu nem sabia o que estava acontecendo e muito menos quem era Creed, e ela parecia saber bem. Mas estava aérea demais para me dizer. 

Qual era o problema com o encapuzado, afinal?

— Você ficou perto dele? — indagou, ignorando minhas outras perguntas.

Revirei os olhos, mais frustrada ainda com aquele interrogatório.

— Fiquei frente a frente com ele, Lauren! — respondi, desinteressada e ela arregalou os olhos. — Qual é o problema? Você está começando a me assustar!

Ela respirou fundo, antes de disparar:

— Você provavelmente já deve ter escutado a história do cara esquizofrênico, que aos dez anos possivelmente causou o acidente dos pais e agora mora em uma das matas de Portland, certo? 

Eu a fitei como se ela fosse uma espécie de assombração, um bicho com sete cabeças e com sinistros focinhos enormes em cada uma delas.

— O Andrew me contava essa história o tempo todo — respondi, ressabiada. — Mas é Lenda Urbana, você sabe. Ninguém nunca o viu, ele nem deve existir.

Sacudi os ombros e me levantei, caminhando despreocupadamente até a cozinha. Ouvi os passos apressados de Lauren me seguindo.

— Ele existe! — ela assegurou, encostando-se ao balcão enquanto eu pegava a garrafa de refrigerante na geladeira e dois copos no escorredor de louças sobre a pia.

— Não viaja, Laurence. — Ri com escárnio e ela bufou contrariada. 

Coloquei os copos sobre o balcão e os servi,  entreguei o dela e dei a primeira golada no meu.

— Estou falando sério.

— Sério? 

Ela franziu os olhos. Detestava quando não levavam o que ela dizia a sério, ainda mais quando ela levava o que dizia a sério, e pude perceber que ela estava se levando totalmente a sério.

— Eu tenho para mim que é só mais uma das histórias falsas que esses idiotas inventam para propagar o caos — comentei, desdenhando.

— O seu problema, às vezes, é não acreditar no óbvio.

Lauren adotou uma expressão fechada e ficou em silêncio, deixou o copo sobre a bancada, sem beber um gole sequer do refrigerante que eu havia lhe servido, e ficou olhando fixamente para o chão. Seu mutismo repentino começou a me incomodar. Permaneci entornando minha bebida para me distrair, mas até beber algo com aquele silêncio todo se tornou incômodo para mim.

— Tudo bem, se ele existe mesmo, por que ninguém nunca o viu?

— São poucas as pessoas que já o viram, por exemplo, eu nunca vi. — Balançou os ombros, casualmente. — Mas você já!

Lauren ergueu o olhar em minha direção, esboçando uma expressão engraçada e eu não pude conter uma gargalhada. Em seguida, neguei veemente.

— Não, eu nunca o vi também.

— Sim! Você já o viu! — ela persistiu e eu revirei os olhos pela milésima vez em menos de uma hora.

— Fala sério, Lauren! Estávamos falando de uma coisa e do nada você inventa de falar dessa história sem sentido.

— Você é a pessoa mais inteligente que eu já conheci, mas, em certos momentos, é muito lerda — ela retrucou, sacudindo-me pelos ombros e eu a fitei seriamente, ultrajada. — Como você não é capaz de entender algo tão visível?

— Talvez se fosse mais objetiva... Você acha mesmo que se eu já tivesse visto aquele sujeito, não me recordaria? — rebati defensiva, começando a me descontrolar. — E essa história já não tem nada a ver com o não-morador de rua que eu ajudei e você só está colaborando para que eu fique mais irritada!

Lauren permaneceu quieta, encarando-me com displicência, e, tempo depois, ela finalmente bebeu um pouco de seu refrigerante, antes de me responder:

— Claro que tem a ver com o não-morador de rua — garantiu e eu a encarei, inexpressiva. 

Fiquei a olhando, esperando que ela explicasse algo que lá no fundo eu já sabia, até que preferi desistir e ir para o quarto, tomar um banho e relaxar, esquecer o que havia acontecido.

Apesar disso, antes que pudesse atravessar a porta da cozinha, Lauren voltou a se pronunciar:

— O Creed e o não-morador de rua são a mesma pessoa, Savannah.

Meu corpo automaticamente retesou e meus olhos se arregalaram. Me engasguei com a minha própria saliva, ficando sem ar por um tempo. Me virei para Lauren, meus olhos arregalados e meus lábios entreabertos.

— Pois é, minha cara amiga — ela voltou a dizer, serenamente. — Você ficou frente a frente com o famoso esquizofrênico da cidade.

As palavras dela chegaram ao meu ouvido como um eco distante e me perdi na perplexidade, questionando incansavelmente a veracidade de sua afirmação.


Notas Finais


Oi chuchus <3. Gente, eu só tenho que agradecer pelos comentários maravilhosos que Paranoid está recebendo, eu realmente fico mega feliz que vocês estejam gostando e espero que continue assim. Sempre darei o meu melhor por isso! ;). Quero agradecer também pelos 100 favoritos com apenas 6 dias de postagem, isso significa MUITO para mim e eu só tenho a agradecer a cada um de vocês, pelo reconhecimento, carinho e incentivo! Eu já tenho um carinho enorme e especial por cada um(a). Muito obrigado, de coração! Até o próximo capítulo meus anjos. xX


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