1. Spirit Fanfics >
  2. Pobres almas desafortunadas >
  3. Arco 1 - Parte 3

História Pobres almas desafortunadas - Arco 1 - Parte 3


Escrita por: Jude_Melody

Capítulo 4 - Arco 1 - Parte 3


Um mês nunca passou tão rápido. Eu mal vi Ariel nesse meio tempo, ocupado como ele estava com os preparativos de um casamento que não aconteceria. Eu cantava sozinho. E preparava a poção. Faltava pouco para alcançar meu objetivo. Ariel estava apaixonado por um tritão, acreditava eu. Seria impossível conquistá-lo depois que se tornasse humano. Naqueles últimos dias, prendi-me ferrenhamente a essa esperança.

Naquela tarde derradeira, nós nos sentamos em silêncio no meu pequeno salão. Lilly não estava presente. Éramos apenas nós dois.

— Ariel — disse, quebrando aquela melancolia. — Tem certeza de que quer seguir em frente?

Ele assentiu, resoluto.

— Muito bem... — Eu ergui um pequeno frasco que continha uma substância verde como os olhos dele. — Amanhã de manhã, quando chegarmos à praia, você vai beber isto. Vai sentir um pouco de dor no início, mas ela logo irá passar. A transformação não é um processo simples, e você terá de treinar um pouco antes de aprender a usar suas pernas.

Ariel fitou o vazio.

— Eu terei pernas.

— Dentre outras surpresas que descobrirá em breve. — Tentei abrir um sorriso, mas não havia clima para tanto. Mantive o semblante sério. — Ariel... Você entende que não existe volta para o que está fazendo?

— Sim, entendo perfeitamente, Daren. — Ele esboçou um sorriso tímido. — Obrigado por me ajudar.

Suspirei. Como o moleque podia ser tão burro? Fora tão fácil enganá-lo, seduzi-lo. Ele depositara toda a sua confiança em mim com uma facilidade tremenda. E aquela confiança seria a sua ruína.

— Daren.

— Sim? — Ergui o rosto para ele.

Ariel parecia um pouco sem graça, mas, quando olhou para mim, seu rosto brilhava confiante.

— Podemos cantar juntos? Uma última vez?

Eu o encarei. Encarei fundo aqueles olhos verdes.

— Mas é claro, minha pequena musa.

Nós cantamos. Primeiro baixinho, depois mais alto. Eu podia sentir o quanto Ariel era enamorado por minha voz, mas era na voz dele que prestava atenção. Ela era incrível, divina, muito mais poderosa do que qualquer feitiço que eu pudesse criar. Se Ariel tivesse consciência de sua real força, talvez não precisasse de mim. Ele tinha poder suficiente para enfrentar o próprio pai. E vencê-lo.

— Ariel — disse em tom sereno, interrompendo a música —, chega. É hora de você ir para casa.

Ele assentiu, mas não pareceu tristonho. No canto de seus lábios, eu vislumbrava a sugestão de um sorriso.

— O que houve, minha pequena musa? Por que estás assim? Tens medo do que o amanhã te reserva?

Ariel balançou a cabeça. Parecia tranquilo. Aproximou-se de mim sem fazer barulho e me fitou com seus olhos verdes.

— Não tenho medo. Sei que tudo dará certo.

Suspirei.

— De onde vem tamanha confiança quando os riscos são tão altos? — Eu senti meu coração palpitar. Não... Não podia ser... — Acredita que será assim tão fácil conquistar o seu amor?

Ariel inspirou fundo.

— Sim. Eu acredito. Porque... aquele que eu amo... é você.

Ele beijou meus lábios. Um beijo tão cálido quanto sua voz. Afastou-se de mim sem dizer uma palavra e se retirou do salão, deixando-me sozinho com as almas que, depois de tantos meses, voltavam a se lamuriar.

 

Elas sabiam. As almas sabiam que um destino perverso aguardava Ariel. Elas não queriam que ele se juntasse a elas. Não queriam que ele fracassasse na conquista de seu amor. Mas ele fracassaria. Pois seu amor era eu. E eu não correspondia aos seus sentimentos. Era só uma questão de tempo até tomar a alma dele para mim. Sim... Eu estava feliz. Era por isso que eu estava feliz.

 

Mainha, espera só mais algumas horas, que Ariel logo chega a nós. Então, realizarei meu plano, e tua morte será vingada.

 

Nós estávamos na praia, escondidos por alguns rochedos. Ariel sorria, transbordando confiança. Eu lhe expliquei uma última vez como funcionava a poção. Ele não queria me ouvir.

— Vamos, antes que os guardas de meus pais nos encontrem.

— Acalme-se, minha pequena musa — disse em tom manhoso, tocando seu queixo de leve. — Temos ainda muito tempo. O casamento sequer começou. Agora sente-se naquelas pedras e beba a poção.

Ele obedeceu sem contestar. Sentou-se em uma das rochas, destampou o frasco e engoliu o líquido de uma só vez. Um grito de dor escapou de sua garganta. Ariel atirou-se no chão, contorcendo-se e batendo a cauda sem parar. As escamas brilharam e começaram a cair. Em seu lugar, surgiram as pernas, que continuaram se debatendo enquanto Ariel gritava e tossia.

— Ariel — chamei, preocupado. — Ariel, você está bem?

— Daren! — Ele gemeu, encolhendo-se. — Daren, eu consegui. Eu consegui! Sou um humano!

Ariel virou-se para mim, sorrindo de forma deslumbrante. Tentou ficar de pé, mas perdeu o equilíbrio e caiu na água. Eu o tomei em meus braços para impedir que se afogasse.

— Tome cuidado. Vai se machucar.

— Desculpe... — Ele murmurou, tateando meus ombros com as mãos. Parecia não saber o que fazer com elas. — Eu...

Encostei minha testa na dele, apenas para sentir a textura de seus cabelos.

— Feliz aniversário, Ariel.

Eu senti seus lábios se moverem quando ele sorriu outra vez. Sob a água, podia sentir o toque leve de suas pernas em meus tentáculos. Era uma pena que perdesse uma cauda tão bonita, mas o êxtase que iluminava seu rosto compensava qualquer remorso que eu pudesse sentir.

— Vou levá-lo até a praia.

Ele me fitou com seus olhos verdes.

— Está bem. Obrigado por tudo, Daren.

— Não há de quê.

Fiz o que pude. A certa altura, Ariel teve de seguir pelas ondas sozinho. Caiu de joelhos ao alcançar a praia. Eu esperei até que ele se levantasse, arfando do esforço de nadar com pernas humanas, e desapareci.

 

Falta pouco, mainha. Só mais três dias, e a alma de Ariel fará parte de meu jardim. Então, eu só terei de trocá-la pela coroa do Rei Tritão.

 

— Droga — grunhi ao ouvir o som dos golfinhos. — Eles me encontraram mais rápido do que o esperado.

Tateei as prateleiras de meu laboratório até encontrar o frasco perfeito. Quando chegasse o tempo, guardaria a alma de Ariel ali. Dei uma última olhada em meu salão, a tempo de ver Lilly adentrando o cômodo enquanto gritava:

— Ele está aqui! Está aqui! O bruxo do mar que fez um contrato com Ariel. Eu sei que foi ele. Tem de ser!

— Prendam-no! — bradou o Rei Tritão com a mesma voz poderosa com que rendera minha mãe anos atrás. — Mas não o matem. Não o matem até encontrarmos Ariel.

Eu esperei até ver o rei surgir em meu pequeno salão. Ele tinha uma cauda verde parecida com a de Ariel, mas seus olhos não tinham a mesma vida, a mesma coragem. Eu sorri para sua sombra. Abri minha passagem secreta de emergência e escapei de meu covil.

 

Ariel estava na praia quando cheguei a meu destino. Ele caminhava pela areia, envolto em trapos que mais pareciam pedaços da vela de um navio abandonado. Pela dor em sua voz, eu sabia que ele estava chorando. Ocultei-me atrás dos rochedos para observá-lo de longe.

— Daren! — Ele gritava. — Onde você está? Por favor, venha até mim! Eu preciso falar com você!

Recostei-me nas rochas, ouvindo. Passei a tarde inteira assim e o começo da noite também. Quando já era tarde, Ariel buscou abrigo em uma pequena caverna e se encolheu todo. Chorou até o sono pesar suas pálpebras e fazê-lo dormir.

 

Mais dois dias, mainha. Só mais dois dias.

 

Era difícil me esconder perto da superfície. Ao final do segundo dia, ocultei-me entre as embarcações do porto para observar. Ariel não estava muito distante de mim. Dormia em um dos pequenos barcos atracados na praia. Tinha fome e sede. Sabe-se lá onde estava buscando comida e água. Eu não me importava com isso, tampouco.

 

Só mais um dia, mainha. Só mais um dia.

 

Eu tinha certeza de que Ariel iria gritar até perder a voz, mas ele não fez isso. No começo da manhã, escapou de dois homens que, ao encontrarem-no sozinho na praia, ofereceram ajuda. Sem compreender sua língua, Ariel apenas balançou a cabeça e desatou a correr. Afastou-se do porto. Eu o segui pela água, mantendo distância.

Ao cair da noite, Ariel começou a cantar. Era uma das músicas que cantávamos juntos em meu covil. Eu ainda sabia a letra. Conseguia senti-la na ponta de minha língua. Mas eu não cantei. Permaneci escondido, esperando. A noite caiu sobre nós.

Ariel não parou de cantar.

 

Está feito, minha querida mãe. Nunca estive tão perto...

 

Quando amanheceu, Ariel estava sentado na praia, ainda envolto pelos farrapos que recolhera. Abraçava as próprias pernas, escondendo o rosto entre os joelhos. Não ergueu a cabeça quando eu emergi. Não reagiu quando eu falei:

— Seu tempo acabou, Ariel.

Ficamos os dois em silêncio, aguardando. Lentamente, Ariel pôs-se de pé e se arrastou até mim. Entrou no mar, deixou que a roupa improvisada desprendesse de seu corpo e flutuasse pela água como seus cabelos costumavam fazer. Não... Aqueles trapos não tinham a mesma graciosidade.

Ariel chegou perto de mim. A água agora atingia seu peito. Ele só ergueu o rosto quando deu o último passo. Seus olhos estavam secos.

— Você me enganou.

Não respondi. Encarei-o em silêncio.

— Quem matou sua mãe, Daren?

Permaneci em silêncio.

— Quem matou sua mãe?

Desviei o olhar. Ouvi um leve soluço e soube que Ariel estava chorando. Seus olhos ficaram marejados, e as lágrimas caíram.

— Foi o meu pai, não foi?

Olhei para ele. Não precisava responder. Ele já sabia tudo.

— Que estupidez a minha... Eu deveria ter percebido. Era tão óbvio! Por isso todos no reino têm medo do bruxo do mar! Por isso a Lilly ficava tão tensa quando eu ia visitá-lo! Eu devia saber! Eu escutava as histórias quando era criança!

Uma onde violenta bateu contra seu peito e atingiu seu rosto. Ele tossiu, mas não recuou.

— Meu pai contava as histórias... Daquela vilã... Daquela bruxa... Úrsula. Ela era a sua mãe, não era?

Inspirei fundo.

— Há quanto tempo sabe disso, Ariel?

Ele engoliu em seco.

— Há muito tempo. Eu só fazia de conta que não sabia. Eu queria acreditar que você era bom, então tentava não te associar à Úrsula. Mas, pelo visto, eu me enganei.

— Minha mãe não fazia nada de mais. Ela apenas realizava contratos com sereias e tritões que estavam insatisfeitos com a própria vida. Acontece que nem todos podiam pagar o preço. Nada mais justo do que compensarem com a própria alma.

Ariel balançou a cabeça com vigor. Os cabelos secos e sujos golpearam seu rosto.

— Que preço cruel ela exigia, Daren.

Eu me enfureci.

— Tudo, Ariel, tem um preço! Minha mãe só queria ganhar a vida e criar o próprio filho, mas o seu pai não foi capaz de aceitar isso. Ele a matou, Ariel! Matou-a na minha frente! Só não me matou também porque eu estava escondido! Porque ele não sabia que eu existia! Se soubesse, teria me matado e...

— Você nunca se perguntou por que meu pai não foi atrás de você quando os primeiros boatos sobre um novo bruxo do mar surgiram?

Calei-me. Não por conta do teor da pergunta, mas pela forma como Ariel me olhava. Ele nunca parecera tão confiante. Não... a palavra era outra. Eu não sabia qual era.

— É porque a minha mãe pediu.

Ficamos em silêncio por algum tempo. A brisa brincava com nossos cabelos, secava nossos rostos. Ela tinha um cheiro salgado.

— Isso é verdade?

Ariel deu de ombros.

— Possivelmente. A minha mãe era uma sereia boa. Não gostava de resolver as coisas com violência. Você era adolescente quando começou a fazer as poções, não é? Ela se oporia à morte de alguém tão jovem.

Ri, sarcástico.

— Mas não se opôs à morte de minha mãe.

Ariel abaixou a cabeça.

— Você tem razão. Meu pai não tinha o direito de matar a Úrsula. Ele poderia prendê-la, libertar as almas que ela escravizara... Mas não deveria tê-la matado. — Ariel encarou-me. Seus olhos verdes brilhavam. De tristeza. — Por favor, Daren, perdoe meu pai. Eu lhe peço perdão em nome dele.

Eu olhei para ele. Olhei para aquele jovem que me ensinara a cantar, que invadira meu quarto, que sempre sorria quando trocávamos olhares. O jovem que dissera que me amava e que acreditara que eu corresponderia a seu amor para que ele pudesse viver como humano para sempre.

— Seu tempo acabou, Ariel — repeti, estendendo o frasco de vidro.

Ariel fechou os olhos e abriu um sorriso leve. Seu corpo desapareceu em meio à brisa. Sua alma apareceu dentro do frasco.



Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...