O lugar estava em extremo silencio, tão quieto que a mulher de pele mulata e cabelos cacheados grossos podia ouvir seu próprio coração batendo em alta velocidade, respirava pausadamente e mantinha os olhos, que tinham um tom de castanho tão claro que pareciam amarelos, fixos no homem de cabelos grisalhos a sua frente. Ele estava atrás de um púlpito segurando um martelo pequeno de madeira bruta, ele golpeou a mesa com o mesmo assim fazendo um som estridente. Ao escutar a batida o seu corpo gelou e a partir deste momento não pode ouvir mais nada, enxergou os lábios do homem se moverem com raiva, mas seus ouvidos não foram capazes de captar o som das palavras ditas. Seus pulsos estavam algemados para trás e neste momento sentiu alguém os agarrar e puxar, sem chances de falar ou reagir, a mulher foi levada e agora tudo a sua volta estava em câmera lenta para ela, caminhou forçada, por um corredor que levava para fora da sala, haviam tantos olhares a condenando que ela quase foi esmagada, continuava a respirar pausadamente e logo, sua visão se escureceu em uma lembrança não tão distante.
Era uma noite de lua cheia, o clima estava fresco, então assim que a mulher se levantou da cadeira do escritório, pegou uma blusa de lã que estava pendurada no encosto, vestiu-a e ajeitou a gola que cobria seu pescoço, depois ajeitou os longos cabelos cacheados que estavam penteados para trás, os fios circulares caiam até a metade das costas da mulata. Pegou sua bolsa e a pôs no ombro esquerdo, saiu do lugar e trancou a porta, caminhou com seus saltos fazendo barulho pelo chão até o elevador. Ao sair na rua sentiu o vento bater em suas costas e se arrepiou, estava tarde então precisava ter cautela, seu apartamento não era tão longe do trabalho, porém era preciso passar por uma passarela escura, ela sentia medo toda vez que caminhava por lá, mas sua coragem era maior.
Caminhava a uma velocidade normal, mas aos poucos a luz da rua ia se tornando mais escassa, alguns dos postes não estavam funcionando, outros falhavam, a mulher diminui a cadência de seus passos, ouvia ao fundo latidos e barulhos que se pareciam com coisas caindo, olhou ao seu redor e não enxergou ninguém, nem nada. Repentinamente gritos e tiros foram escutados, pela altura, não era muito longe, aquilo a assustou e a fez acelerar a caminhada, estava quase se aproximando da passarela e o local já estava praticamente um breu.
Os sons iam se aproximando, quando a mulher estava atravessando o local virou-se para trás e pode ver duas garotas, elas corriam e logo atrás das mesmas estavam policiais armados, a mulata paralisou com a cena, seu corpo começou a tremer e sua respiração começou a falhar. Um dos policiais se posicionou com um joelho no chão, mirou na garota que estava mais para trás e sem piedade atirou. A garota caiu como uma pedra no chão, provavelmente morta. A segunda seguiu correndo, gritou um nome que a mulher não identificou, certamente o da garota morta, os policiais voltaram a correr atrás da garota que havia sobrado. A corredora já estava próxima da mulata, ela chorava e estava ofegante, foi quando suplicou.
- Por favor, eu não fiz nada – ela soluçava e sua voz falhava, estava em desespero – Me ajude, eu não quero morrer!
A mulher ainda estava paralisada, não sabia o que fazer, a garota chegou perto da mesma e segurou seus braços, assim podia ver que a mais nova tinha cabelos cor de rosa, adornos pelo rosto, tatuagens e roupas extravagantes. Agora podia entender o que estava acontecendo.
Estas duas viviam em um mundo onde humanos não podiam ter suas próprias ideias, não podiam ser diferentes, não podiam amar de todas as formas, não podiam ser eles mesmos. Provavelmente as garotas eram um casal e ao mesmo tempo que foram descobertas, foram condenadas. Relações Homoafetivas não eram permitidas, tatuagens não eram permitidas, roupas, cabelos, pensamentos diferentes não eram permitidos, estavam em um mundo onde você segue as regras ou morre. A mulata estava em um impasse, se ela ajudasse a garota seria condenada, ajudar diferentes levava a pena de morte assim como ser um diferente. Ela não queria ver a garota morrer, mas também não queria morrer logo, teria que fugir se ajudasse, e teria que fugir se não ajudasse. Mas aquilo a repudiava, não poder escolher como viver, não ter respeito de seus semelhantes, ser visto com outros olhos a repudiava. Ela sabia o que era certo fazer, era muito difícil viver em uma sociedade sem respeito, sem justiça e principalmente, sem ela mesma.
Agarrou um dos braços da menor e a fez correr com ela, no final e a baixo da passarela havia um vão quebrado que dava para os esgotos da cidade, sua esperança era ajudar e sair livre, fez com que a garota de cabelos coloridos entrasse ali.
- Qual seu nome? – A garota mais nova disse com a voz tremula após ter passado pelo vão que agora as separava.
- Tolerância Fairquietly – Sua voz era confiante e rígida.
- Eu nunca vou me esquecer. – Falou com um sorriso aliviado e triste ao mesmo tempo, não demorou para sair dali pelos tuneis indefinidos.
Quando a mulher se levantou já era tarde, teve seus braços presos por algemas e não a deram tempo de reagir pois um golpe repentino em sua nuca fez com que perdesse a consciência.
Ela sabia seu destino a partir daquele momento, mas foi decisão própria, foi contra a sociedade padronizada e pensou por si só, iria aceitar as consequências com um sorriso no rosto.
Assim que recobrou a consciência percebeu que estava em uma cama dentro de uma cela, fora de cela haviam mesas com homens uniformizados, eram policiais. O telefone não parava de tocar e as pessoas não paravam de passar de lá para cá.
Levantou-se e caminhou lentamente, seus pés doíam, pois tinha passado a noite toda com os saltos, foi até a grade e segurou as barras com as mãos algemadas, não estava prestando muita atenção, seu olhar estava perdido então não percebeu quando um dos policiais abriu a porta da cela ao seu lado. O notou apenas quando ele falou.
- Toma aqui, veste isso, você ainda vai ficar uns dias por aqui até ir a julgamento, apesar de que já sabemos o seu destino não é mesmo, sua delinquente de merda. – Enquanto falava jogou na mulher roupas de cor cinza e um par de tênis brancos.
Realmente, ela já sabia o que iria acontecer, mas sua mente estava tão limpa e leve que aquilo estranhamente não a preocupava. Não era uma mulher tão nova, já estava quase na casa dos 50, era viúva, não tinha filhos e seu parente mais próximo era uma irmã que morava em outra cidade e não falava com ela há mais de cinco anos. Já tinha vivido o ápice, sua vida não teria muita mudança, isso a reconfortava e a fazia não se arrepender.
Passaram-se três dias até o julgamento, a mulata foi levada ao juiz e então sua audiência teve início. A seção levou quase quatro horas para acabar, e ela se encontrou a frente do juiz o olhando fixamente.
- Tolerância Fairquietly, 47 anos, nascida na cidade de Restraint, Corretora de imóveis, viúva. Acusada de ajudar diferentes a fugir da condenação, foi pega agindo. Eu a declaro – O som de seu martelo ecoou pelo lugar – Culpada! Sentenciada a morte por fuzilamento.
Ela foi levada da sala de volta a cela onde passou a noite, no outro dia pela manhã sua sentença estava sendo encaminhada, ao meio dia sua refeição foi farta e por volta das três horas da tarde alguém a buscou, a mulher foi levada até um campo não muito grande perto da delegacia. Estava de costas para uma parede alta, haviam cerca de dez homens com fuzis apontados para ela, ouviu um deles falar algo que não identificou, fechou os olhos e respirou tão fundo que pode sentir o aroma das flores de uma arvore de Ipê que havia perto da mesma, abriu os olhos lentamente e um sorriso singelo se formou em seus lábios.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.