Capítulo 05: Uma lição sobre mentiras
O estômago roncou, grudando-se de tanta fome e abri os olhos. Funguei o aroma de ovos mexidos e percebi que não estava sonhando, mas que ele estava dentro do meu quarto. Empurrei o cobertor branco e felpudo, sentando-me descabelado. O cheiro de óleo queimado do candeeiro aceso na parede misturava-se com o da geleia de amora, do pão esquentado e do café. Havia uma mesa pequena e retangular de madeira apoiada na minha cama e ao lado dela, meu senhor, o Imperador Kaiser de Vorsery, segurando uma bengala marrom com a cabeça dourada de uma onça de boca aberta e olhos de pedras de esmeralda, trajando uma jaqueta verde escura com botões dourados como suas abotoaduras, calça creme e botas marrons.
Travei, sem palavras. O que ele estava fazendo no quarto?
-- Não quis invadir, porém fiquei preocupado, você dormiu a manhã e a tarde toda. - Ele tirou a bengala do chão e apontou para a porta. Seus cabelos estavam contidos em um penteado forçado para trás, os cachos escuros juntando-se na nuca e o rosto leve, quase sorridente. -- Ande, coma o que mandei preparar para você, não quero que fique anêmico.
-- Ahn… - Arranhei um pouco a voz para recuperar o som. -- Sim senhor. - E sentei-me com o cobertor ainda cobrindo o corpo, contemplando aquele monte de comida em cima da bandeja. -- Uau, tudo isso é para mim?
-- Não pensou que eu deixaria você caçar animais no meu jardim, pensou? - Lorde Kaiser deu passos afastando-se da cama e indo até o armário.
Fiquei olhando, ele se virou rapidamente, erguendo as sobrancelhas, exigindo uma resposta. Eu ainda não estava exatamente acostumado a poder falar com meu senhor, de onde vim antes, abrir a boca, fazer um som, não traziam consequências agradáveis.
-- Ah, bem… Para dizer a verdade, considerei o assunto, mas quando o senhor coloca desse jeito percebo o quão… inconsequente é essa ideia.
-- Sim. Esquilos selvagens podem passar doenças. - O Imperador sorriu sem mostrar os assustadores dentes. -- Ande, coma logo.
Peguei um garfo de prata e furei um gomo de ovo mexido, colocando na boca. O sabor era divino, bem temperado, o tipo de refeição que eu nunca sequer provei na vida.
-- Hmmmm!
-- Está bom? - Ele abriu a porta do armário e virou-se, para me olhar.
Acho que olhar para mim é uma boa maneira de me deixar saber que eu tenho que responder, por isso, acenei que sim e complementei:
-- Melhor que qualquer coisa no mundo.
-- Ah, não, não qualquer coisa. - Lorde Kaiser sorriu malicioso.
Abaixei a cabeça e mordi os lábios segurando o sorriso, não queria parecer lisonjeado, feliz, qualquer coisa, mas era exatamente como eu me sentia, como Lorde Kaiser fazia eu me sentir… E era um sentimento que eu não deveria ter. Passei o dedo na geleia do pão e lambi o dedo, provando. Era doce e com bastante gosto de amora, quase como pegar as frutas do pé, mas não de qualquer lugar, da terra mais fértil, mais irrigada. Era suculento.
Enquanto mordi o pão e dei um gole no café e outro no suco, lutando contra a vontade de encher a boca de comida apenas porque o cobertor ao redor do meu corpo era branco demais para eu desejar sujá-lo, Lorde Kaiser começou a remexer o armário cheio de roupas que ele mandou fazer, tirando alguma as peças e jogando na poltrona também branca. Olhei curioso, tentando entender se ele queria que eu vestisse uma camisa e um macacão juntos, mas ele começou a tirar mais coisas, uma por uma, olhando com desgosto para todas as peças, juntando-as em uma pilha de recusa. Até que o armário ficou vazio, ele arfou e andou apoiado em sua bengala, abrindo a porta.
-- Odette! - Berrou. -- Odette!
-- Sim, meu bom senhor, Sua Majestade Lorde Kaiser de Vorsery? - Ela chegou esbaforida na porta, de bochechas vermelhas e a touca, que deveria segurar seus cabelos, escapando.
-- Essas são as únicas roupas que ele tem?
-- Oh. - Ela abriu bem os olhos, percebendo a pilha, o armário vazio, a expressão de desagrado. -- O senhor não aprovou? Hmm… eu posso mandar o alfaiate voltar e…
-- Não há tempo! - Lorde Kaiser bateu a bengala no chão. Odette deu um salto parada no mesmo lugar, arregalando os olhos. -- Mande esse alfaiate embora, ser incompetente! Deixei ordens claras para que ele preparasse um conjunto para o piquenique no jardim, que absurdo! - Esbravejou.
Olhei para a pilha de roupas, havia muitos conjuntos soltos ali por cima. Muitos mesmo. Eu era um escravo com o armário mais cheio de roupas do mundo, certamente, feitas em tecidos de ótima qualidade, com uma costura desempenhada por um verdadeiro artista. Aquelas roupas eram melhores que muita coisa e eu não achava justo que o alfaiate fosse mandado embora por ter se esquecido de ter feito uma peça. Larguei o resto do pão em cima do prato, afastei o cobertor e me levantei.
-- Senhor! - Chamei. Lorde Kaiser virou-se para mim atirando com seus olhos vermelho-sangue e Odette ficou branca. -- Quer dizer, Sua Majestade, Lorde Kaiser. - Curvei-me rapidamente. -- Eu peço desculpas, eu fiquei cansado, pedi para o alfaiate me deixar descansar, não é que ele esqueceu, eu não deixei ele fazer a roupa, mas olhe, veja… Essas são muito melhores do que qualquer coisa que já vesti… Meu senhor.
-- Menino, o que está fazendo? - Odette colocou uma das mãos na boca. -- Não contradiga uma autoridade, largue isso, venha, vamos arrumar uma roupa apropriada já.
-- Não, Odette, deixe. - O Imperador ergueu a mão, me encarando. Eu já pegava uma roupa da pilha e colocava ainda em seu cabide, por cima do corpo, provando. -- Por favor, nos deixe e agende o alfaiate para depois do jantar.
-- Claro, majestade. - Odette curvou-se e saiu rapidamente, fechando a porta.
-- Eydwen. - O Imperador me chamou, caminhando na minha direção. Mordi a boca, percebendo que ele vinha rastejando como uma cobra pronta para arrancar minha cabeça. -- Essa história é verdadeira? Ou você inventou para salvar a incompetência do alfaiate?
-- Hm… Um pouco… Dos dois, eu acho.
-- Não minta para mim! - O Imperador me acertou um tapa, fazendo com que eu caísse sentado no chão. Ele atingiu a minha face, mas com certeza não foi com toda a força de seu braço. Já apanhei de senhores algumas vezes e a mão de Lorde Kaiser atingiu-me quase sem forças, ardendo a minha bochecha. Ele é um vampiro, poderia quebrar o meu maxilar. -- Nunca na sua vida, ouse mentir para mim! - Gritou.
Abaixei a cabeça e continuei sentado, procurando não respirar e nem fazer nenhum som. Estava com os ombros comprimidos, com medo, esperando que ele desse uma marretada com a ponta de sua begala, mas o Imperador abaixou, segurou em meu braço na altura do cotovelo e me fez levantar.
-- Responda novamente. - Ordenou entre dentes. -- A história é verdadeira?
-- Não, senhor.
Eu apenas encarava suas botas marrons com o bico dourado por uma placa de ouro e a begala, percebendo que ele não estava se apoiando em um dos joelhos. Que engraçado, sempre ouvi que vampiros são saudáveis e não ficam doentes, que se der um tiro neles com uma arma normal, eles expelem a bala para fora do corpo e o ferimento se fecha em minutos.
-- Por que você inventou uma mentira?
-- Por que… - Apertei a roupa que eu segurava entre os dedos, a seda fina do macacão preto era tão macia. -- Eu vestia um saco de batatas… Quer dizer, me perdoe, não quis tratar seu presente com ingratidão, é só que… É tão melhor do que tudo o que eu já tive para vestir… - As lágrimas arderam nos meus olhos, queimando minha visão, mas não as deixei cair. Engoli aquele sentimento horrível e humilhante que eu estava sentindo, não coloquei a mão no rosto para que ele não soubesse que ainda estava doendo e respirei fundo. -- Perdoe-me meu senhor. Eu certamente não deveria ter mentido ou contradito suas vontades. O senhor entende mais de roupas do que eu e se julga não estarem boas, não estão.
-- Ah. - Lorde Kaiser exalou ar, dando um passo para frente com dificuldade. -- O que vou fazer com você? - Sua mão alcançou minha nuca e ele me puxou conta o seu corpo, me abraçando e aquecendo, depositando um beijo na minha testa. Havia carinho em seu toque, mas eu estava tremendo. -- Não seja tolo, Eydwen. E não insinue que o luxo tenha me cegado de suas necessidades.
-- Perdão, senhor… Eu não… - Estava pronto para dizer que não tinha insinuado nada, mas eu apenas contradiria suas palavras mais uma vez e resolvi me interromper.
-- É claro que você não entende de roupas e se apegou a essas coisas mal costuradas por passar tanto tempo em um saco imundo, nem podemos chamar aquilo de roupa. - Sua mão apertou mais firme minha nuca, estava começando a incomodar. -- Vou perdoar sua ousadia de mentir para um Imperador uma vez, mas que fique claro que valorizo apenas aqueles que dizem a verdade.
-- Sim, senhor.
Lorde Kaiser afrouxou a mão da minha nuca, me empurrou desencostando-me dele e inspirou fundo, mostrando um quase sorriso em seu rosto, agora calmo. Encarei seus pés mais uma vez, arrependido e sentindo toda a minha pequenez diante da magnitude dele.
-- Sei que deve ser difícil livrar-se dos vícios aprendidos enquanto conviveu naquela imundice humana, por isso, faremos um acordo, certo, Eydwen? - Ele segurou no meu queixo me forçando a olhar para ele, ops, eu esqueci disso. -- Você me dirá a verdade em toda e qualquer situação. Se achar as roupas bonitas, terá autoridade para falar o que sente, o que acha… Eu não pergunto muito, não estou acostumado a perguntar o que os outros pensam e como um Imperador, preciso estar sempre atento às necessidades do povo, será como um exercício. Você me lembrará que opiniões divergentes a minha as vezes existem, mas será com toda sinceridade e com palavras verdadeiras, que venham de seu coração. Estamos acordados.
-- Sim, majestade. - Concordei.
-- Muito bem. - Ele soltou o meu queixo, girou a bengala e apontou a pilha de roupas. -- O que acha de suas novas roupas? Quer ficar com elas?
Mordi a boca, pensando, mas Lorde Kaiser balançou as sobrancelhas, me obrigando a responder.
-- Se o senhor acha que não me serve, não serve, mas sempre tem alguém precisando e eu não gostaria de jogá-las fora, posso dá-las?
-- Muito bem. - Ele sorriu e agora as pontas dos caninos assustadores apareceram, lembrando-me de que minha condição era ainda mais crítica do que a de um escravo e seu senhor. Eu era sua comida. -- Escolha a que vestirá agora, o resto mandarei Odette levar para os outros escravos, direi que foi um presente seu. Se não as quer, ficará sem. - E deu-me as costas. -- Termine de se arrumar e não demore, já estamos atrasados.
Ele abriu a porta e fechou, saindo.
Respirei fundo, fechando os olhos, tentando não chorar. Não conseguia entender as reações dele e isso me criava desespero. Lorde Kaiser de Vorsery era imprevisível e eu era apenas um instrumento para sua diversão.
Escolhi usar o macacão que estava na minha mão, com uma jaqueta por cima, que achei útil guardar para os dias que eu sentisse frio. Troquei a roupa rapidamente, coloquei os acessórios, para não parecer ingrato e acabar mostrando que eu não queria usá-los e saí.
Lorde Kaiser estava conversando com esse garoto de cabelos loiros e olhos bem azuis, que tinha rosto de menina e usava uma roupa bem bonita, como um nobre.
-- Oh. - O rapaz olhou bem firme para mim e estreitou os olhos. -- Foi por ele que o senhor me substituiu? - Parecia bravo, enciumado. -- É tão jovem!
-- Benjamin. - Lorde Kaiser o repreendeu. O garoto fechou a boca, olhou para o Imperador e cerrou o maxilar, com raiva. -- Quando eu te transferi dessa ala, achei ter deixado claro que não quero você perambulando por esse corredor sem autorização, o que está fazendo aqui?
-- Claro, majestade. Perdão, mas quando esvaziaram meu quarto, deixaram na gaveta algo que me pertence, eu vim buscar.
-- Não é seu quarto. - Lorde Kaiser disse sério, apoiado na bengala.
-- Perdão, perdão. - O rapaz se curvou para o Imperador, seu cabelo loiro caiu todo para frente, em seu rosto. -- Não voltarei sem autorização.
-- O que você perdeu? - O Imperador perguntou, como se não estivesse impressionado, esperei que ele bocejasse, mas ele permaneceu impassível. -- Estou curioso.
-- Meu… Meu broche, senhor.
-- Ah, seu broche. - Lorde Kaiser colocou a mão no bolso, tirando o que parecia ser um broche dourado, com o símbolo que vi nas bandeiras da Casa de Vorsery, uma gota alada. Benjamin abriu bem os olhos quando viu o objeto, ele pareceu quase feliz de ter encontrado novamente seu broche. O Imperador virou-se para mim e prendeu o broche na lapela da jaqueta. -- É de Eydwen. - E segurou no meu rosto, forçando que eu tirasse os olhos do rapaz. -- Use-o sempre que estiver no Castelo e fora dele, assim todos saberão exatamente quem você é aqui dentro: meu favorito.
Segurei o engasgo que senti com o peso daquela palavra. Olhei para Benjamin, ele estava curvado, com a cabeça baixa em sinal de respeito ao Imperador, mas vi as gotas de suas lágrimas manchando no chão.
-- Como disse... - O Imperador virou-se e apoiou a bengala, andando. -- Valorizo aqueles que são verdadeiros em seu interior. - Completou. -- Vamos Eydwen?
-- Sim… Sim senhor. - Sai rapidamente dali, seguindo o Imperador.
As portas do corredor se abriram. Antes de sair, olhei por cima do ombro em tempo de ver Benjamin erguer a cabeça, as lágrimas escorrendo de seus olhos e sua expressão de ódio endereçada a mim.
(Continua)
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