História Proklyataya (HIATUS) - Terceiro: Gatinho

Era por volta de oito horas daquela noite quente de verão, e sua visão aguçada, porém em tons de preto e branco, enxergavam telhados de grandes casas apontando por entre as copas das árvores daquele lugar até então desconhecido. Lobo caminhava em suas quatro patas pesadas com muita cautela em meio à mata fechada, longe da praia, buscando se esconder de olhares curiosos dos humanos, que, incrivelmente não se escondiam dentro de suas casas quando a noite surgia. Até onde sabia, eles e seus outros 6 companheiros eram os últimos de seu tipo em todo o planeta, então com séculos sem suas presenças amedrontadoras, as pessoas não mais temiam a noite e seus perigos. Por um lado era bom, já que aquilo significava mais presas para que ele pudesse atacar; porém o lado negativo era que ele agora tinha de ser vezes mais cauteloso, já que atrairia olhares com facilidade, ainda mais em sua forma atual de lobo.

Esta sempre fora sua forma preferida, na verdade. A forma mais gigante a ameaçadora, a que lhe dava mais força bruta do que as outras que seu dom também lhe proporcionava. Hoseok poderia se transformar em algumas poucas espécies de animais, como algumas aves de rapina e felinos, mas o lobo era a maior de todas, como se Satanás tivesse lido sua mente e descoberto que aquele era seu animal favorito em toda a fauna existente e lhe tivesse dado aquilo como vantagem, se bem que agora aquele bicho gigante no qual ele se transformara só estava o atrapalhando, ele deveria ser pequeno e silencioso, como um gato, e não espalhafatoso como um lobo de mais de dois metros de altura se ficasse em duas patas.

Como quase sempre, Lobo não pensou direito em suas atitudes e se levou pela ira que o apossou ao se dar conta de quanto anos passou trancafiado naquele caixão, usando quase toda a sua vitalidade proveniente do sangue de Jungkook para se transformar no ser lupino, e agora ele sabia que não teria força o suficiente para tomar outra forma a não ser a sua original, humana. Mas como diabos ele passaria despercebido como humano se não vestia absolutamente nada? De longe, Lobo via os mortais caminhando pelas ruas simples daquele lugar, que pelos letreiros dos estabelecimentos conseguiu discernir que estava no império japonês, e todos vestiam roupas parecidas com a que Inverno usava quando o despertou, incluindo algumas mulheres. Talvez o mago Internet estivesse certo sobre as vestes usadas por todo o mundo.

Ouviu um farfalhar das folhas a alguns poucos metros ao seu lado, porém não sentiu cheiro de humano, era apenas algum animal pequeno. “Ah, que droga! Como pôde ser tão burro, Hoseok?”, pensou consigo mesmo ao se dar conta da ideia tardia que teve. Não seria lá um banquete, mas sugar o sangue de algum animal pelo menos o daria força o suficiente para tomar outra forma menos chamativa, certo?

Lobo se manteve alerta aos barulhos que encurtavam cada vez mais de distância, como se o animal viesse unicamente ao seu encalço, num sacrifício. Olhando de canto percebeu que se tratava de um gatinho malhado de pelagem meio suja, que, arisco como todos os outros de sua espécie, andava devagar em busca de comida e abrigo, com os pelos eriçados pelo cheiro que sentia com seu faro felino aguçado. O pobre animalzinho mal se deu conta da enrascada em que se metia até sentir grandes presas se afundando em seu corpinho frágil, perfurando sua pele e o matando em pequenos instantes.

Lobo com sua velocidade vampírica avançou absurdamente rápido no gatinho, mordendo em seu pequeno pescoço e sorvendo o máximo de sangue que conseguia em uma única mordida, aproveitando para mastigar o pequeno felino logo depois, aproveitando inclusive de sua carne não tão macia assim. Se escondeu ainda mais entre as árvores enquanto sentia sua musculatura ficar um pouquinho mais forte; nada comparado ao delicioso sangue humano, mas tinha que servir por enquanto.

Após curtos minutos com Hoseok deitado na terra esperando que se estômago fizesse a digestão da carne ingerida, sentiu que já estava na hora de se transmutar novamente. Olhou para os lados, conferindo mais uma vez que ninguém o via, e se concentrou, acordando seu dom novamente. Os pelos em seu corpo se mantiveram, porém mais curtos; assim como seu tamanho, que diminuiu drasticamente. Seu focinho longo se achatou e a aparência aterrorizante de Lobo deu lugar ao aspecto fofo e frágil do gatinho de pelos acinzentados que ele agora se tornara.

Sua velocidade sobrenatural ainda se fazia presente, o que o fez chegar às ruas japonesas facilmente, onde ele diminuiu o passo e começou a caminhar com mais tranquilidade, analisando os humanos mais de perto, tendo até algumas mulheres a pararem seus caminhos para tentarem fazer carinho no pequeno gatinho, que ronronava ao sentir o calor das mãos das mortais, se segurando para não avançar em ninguém ali mesmo. Seguiu seu caminho até chegar onde ele precisava, a área pobre da cidade. Sempre foi mais fácil matar os menos abastados, pessoas ricas têm seguranças e a sociedade sente falta delas quando elas morrem, porém ninguém liga para o corpo de um miserável estirado no chão, o que facilitava muito o seu trabalho.

Impressionantemente, a área pobre daquele pedaço do império japonês era visivelmente melhor do que o que ele já conhecia antes de ser trancado no caixão de prata, mas como ali as casas eram ligeiramente menores e menos enfeitadas do que as que ele viu, a dedução foi fácil.

Farejou as entradas das pequenas casas a procura da que não tivesse nenhum cão de guarda em seu interior, o que dificultaria sua missão. Encontrou uma, com a porta de entrada entreaberta, como um sinal para que o bichano entrasse sorrateiramente. Não havia ninguém no primeiro cômodo da residência, mas Hoseok sentia cheiro de humano, então não se atentou a investigar nada ali por agora, sua fome era maior. Foi seguindo seu faro apurado e rumou até o que julgou ser a cozinha da pequena casa, completamente diferente do que ele conhecia como uma, mas os elementos principais estavam ali: mesa, cadeiras, pratos, panelas, fogão...

— Ora, mas se não é um gatinho fofinho! — o homem forte de aproximadamente 30 anos exclamou com sua voz rouca devido aos severos anos de consumo de cigarros. — Psst, psst, vem cá. — ele se agachou e chamou pelo bichinho fofinho, que seguiu miando até sua mão estendida, onde esfregou seu rostinho, recebendo o carinho de bom grado. — Aah, que gracinha...! Você tá ronronando! De onde você veio, hein? Tão dócil assim, não parece ser de rua. Você tem dono? — perguntou, recebendo o olhar atento do felino antes do miado fininho e manhoso, provavelmente pedindo por comida.

A cena era até divertida para Hoseok, os humanos sempre são tão amigáveis com animais fofos, ainda mais pessoas como aquele homem, que provavelmente vivia sozinho ali naquela pequena casa. O homem se pôs de pé e murmurou algo relacionado a não saber o que gatos comem enquanto abria a porta de uma caixa branca um pouco menor que ele. Ela emanava um ar frio, como o dom de Inverno e por um instante Hoseok se assustou. Teria o vampiro o seguido até ali? Mas tão rápido? E como, se ele não sentia o cheiro do amigo por perto? Não fazia sentido. Seguiu até a caixa esquisita devagarinho, se enfiando por entre as pernas humanas e vendo algo como uma estante gelada, onde ele conseguiu sentir o cheiro de carne bovina, leite meio estragado e ovos de galinha, além de coisas que ele nunca sentira o cheiro na vida.

— Ah, que gatinho curioso! — o humano exclamou ao ver o bichinho com os olhinhos arregalados, admirando o arzinho frio e a luminosidade de sua geladeira. Pegou a caixa de leite que estava depositada na prateleira da porta do eletrodoméstico e a abriu para cheirar e verificar se o produto ainda estava na validade, o que constatou não estar assim que o cheiro meio azedo entrou por suas narinas. — Iih gatinho, eu não tenho mais leite, e agora? — perguntou, como se estivesse mesmo mantendo uma conversa com o felino e se espantou levemente ao receber um miado em resposta, um tanto irritado, ele diria. — Então, o que você quer, hein?

Hoseok então ponderou rapidamente sobre os alimentos que ele conhecia naquela caixa estranha e gelada e optou pela carne bovina crua que estava ali, se esticando e querendo subir pelas prateleiras até chegar onde queria, mas foi interrompido pelo homem que o pegou no colo gentilmente e o tirou dali, pegando a bandeja de isopor com o bife cru antes de fechar a porta da geladeira.

— Você é um bichinho muito esperto, viu? Só vou te dar carne essa vez, não se acostuma não. — advertiu com um pequeno sorriso no rosto; nunca antes tivera um bichinho de estimação, e estava achando toda a curta experiência muito divertida até agora, ele não imaginava que gatos pudessem ser tão inteligentes assim. Colocou o bichano em pé sobre a mesa antes de desembalar a carne e a colocar num prato de vidro que retirou do armário, o entregando ao bicho que fungou o bife inúmeras vezes antes de tentar mordiscar alguns pequenos filetes, mal mastigando, tamanha era sua fome, pobrezinho.

O humano se esticou até a outra ponta da mesa, onde havia deixado seu notebook, sentando-se em uma das cadeiras e retomando a pesquisa que fazia online, agora com um gatinho fofinho devorando um bife cru ao seu lado. Poucos minutos depois o bichano já havia comido toda a carne disposta ali e caminhava pela mesa de madeira com cautela, curioso sobre o objeto luminoso em que o humano concentrava sua atenção. Lobo escutava um pequeno ruído, como minúsculas explosões, além de um ventinho quente saindo de algum lugar daquela... Coisa que ele não fazia ideia do que era.

— O que foi, gatinho? Quer mexer na internet também? — o humano indagou, fazendo as orelhinhas do animal se enrijecerem. Então era aquilo, o tal Internet estava naquele artefato que mais se parecia um livro aberto; aquilo era como uma bíblia então? Mas por que o humano lia o tal livro horizontalmente? E por que ele emanava aquela luz? Hoseok, tomado por sua curiosidade, caminhou miando até o aparelho, subindo em cima deste e sentindo aquele calorzinho estranho em suas patinhas. — Hey, hey! No teclado não! Eu tenho que terminar esse relatório ainda hoje! — ele exclamou, tentando tirar o bichinho dali, mas ele sempre voltava e ficava admirando a tela do Word enquanto praticamente dançava em cima do teclado, fazendo assim seu texto ficar com mais e mais “palavras” completamente desconexas. — Espera aí, vem cá. — pegou o gato e o sentou em suas coxas, clicando para minimizar a tela do software de texto e abrindo seu navegador. — olha, isso é a internet. É aqui que eu busco material pro meu trabalho, e você pode pesquisar o que você quiser aqui, é só digitar com as teclas onde você tava pisando antes. — explicou, se achando incrivelmente idiota por estar conversando com uma gato sobre internet, mas o olhar do bichinho estava tão compenetrado na tela e no teclado de seu notebook que por alguns instante ele chegou a cogitar que o animal o entendia.

A mente de Hoseok estava fervilhando. Então era só ele usar aquelas pequenas coisas onde ele estava pisando — o que ele aprendeu que se chamavam “teclas” — para enfim buscar as respostas que ele queria, sobre tudo. Naqueles minutos, Lobo até se esqueceu de sua sede, porcamente saciada pela carne bovina, focando agora em como mais aquele humano poderia lhe ser útil sobre a Internet.

— Então, o que você quer pesquisar? Peixes? Ratos? Novelos de lã? — o humano perguntou, rindo se mesmo logo após; porém viu o bichano se empinar todo, apoiando suas patinhas dianteiras na mesa, chegando mais perto do notebook, como se quisesse subir nele novamente. Não deu tempo do animalzinho sapatear pelo teclado pela segunda vez pois a tela do eletrônico logo se enegreceu pela bateria fraca, fazendo o gatinho olhar para o homem como se buscasse respostas. — Iih, acabou a bateria, eu tenho que recarregar, tá? Espera aqui.

Lobo foi colocado na cadeira onde o humano antes estava sentado, enquanto o via se levantar e voltar para a cozinha minutos depois, com um fio negro em suas mãos, que mais lhe parecia um chicote. Ele não ia chicoteá-lo, ia? Não fazia sentido, mas de qualquer forma o corpinho pequeno se encolheu ainda mais na cadeira, enrijecendo sua musculatura e se preparando para o possível ataque do humano; mas aquilo não aconteceu. Na verdade, o homem pegou o fio e enfiou no aparelho, pegando sua outra extremidade e a colocando em um pequeno buraco na parede. Mas o que diabos ele estava fazendo?

— Pronto, tá carregando. Daqui a algumas horas a gente liga o notebook de novo e mexe na internet, tá bem? — explicou para o bichano mais uma vez, lhe afagando o pelo macio de suas orelhinhas antes de se virar para ir até a sala, onde se sentou no pequeno sofá e ligou sua TV.

Hoseok se manteve na cadeira por mais alguns instantes, antes de subir novamente na mesa e checar aquela ligação entre o tal notebook e a parede, reparando bem onde cada extremidade deveria ser conectada, afinal, precisaria saber fazer tudo aquilo sozinho depois... e isso o lembrou de outra coisa: fome. Lobo estava com o pequeno estômago queimando de fome. Queria sangue humano, e já estava ficando entediado sem a Internet. Já sabia onde deveria ir para pesquisar o que queria, não precisava mais da tutela humana, então, com muito cuidado, Hoseok rumou até o cômodo da casa onde o homem estava, se posicionando atrás do estofado e juntando suas últimas forças para retornar à sua forma humana. Seus pelos começaram a desaparecer e seu tamanho foi aumentado gradativamente, suas patinhas viraram mãos e pés pálidos e gelados, e olhar ferino e negro deu lugar às írises escarlates dentro de seus olhos rasgados. Respirou fundo por puro hábito antes de puxar os cabelos negros do humano com certa força, o assustando e o forçando a se levantar do estofado.

— Acho que você não vai mexer na Internet mais. — sussurrou com sua voz assustadoramente grossa rente ao ouvido do homem, que não conseguia entender de onde aquele cara surgiu, porém suas indagações deram espaço para a dor aguda que ele sentiu em seu pescoço ao ter dentes afiados perfurando sua pele e sorvendo seu sangue avidamente, até fazê-lo perder a consciência.

Lobo sugava o sangue quente e delicioso com tanta vontade que gotas e mais gotas do líquido espesso vazavam de sua boca e escorriam por seu queixo, fazendo um pequeno caminho até seu pescoço gelado. Aquilo era incrivelmente revigorante para o vampiro, que não se contentou e deu uma bela mordia no pescoço humano, arrancando um grande pedaço de pele e deixando que ainda mais sangue vertesse do corpo que a cada segundo chegava mais e mais perto da morte. Hoseok sugou, como nunca havia feito antes; tomou aquela vida para si com tanta gana que pela primeira vez em sua vida maldita ele sentiu que o corpo já não tinha mais nenhuma gota a lhe oferecer, o que o fez largar o corpo desfalecido e ressecado de uma forma que deixou o vampiro um pouco enojado, mas segundo depois lá estava Lobo seguindo novamente em direção ao notebook, o abrindo novamente e se deparando com sua tela negra mais uma vez.

— Droga, como que eu acendo isso agora?