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História Quid Pro Quo - Norco


Escrita por: cryomancer

Notas do Autor


A capa é temporária (ou não, eu gostei. Mas eu gosto do Thomas, então minha palavra não vale de nada, pode ter ficado uma merda e eu não vou saber nunca, porque ele está lá)
Ao longo da fanfic, vocês vão se deparar com o uso de drogas ilícitas, e por isso eu já aviso daqui mesmo que tenho ZERO intenções de fazer qualquer apologia ao uso de drogas.
Enfim, vamos lá. Eu prometi a Ari que ia postar uma nova e estou cumprindo o que falei.
Boa leitura.

Capítulo 2 - Norco



Parte 1

Quid Pro Quo, do latim, “tomar uma coisa por outra”

 

"Você ligou para a Ino, se eu não atendi, estou ocupada. Deixe uma mensagem após o bipe e entrarei em contato. Beijos."

"Onde você está? Estou aqui fora. Fazem vinte e cinco minutos que cheguei, você está muito atrasada e marquei um filme com Deidara. Ele vai me matar por causa disso, então por favor, saia assim que ouvir esta mensagem."

Suspiro, estou frustrada. O último ônibus a parar no ponto da faculdade passa exatamente às onze e meia, mas mesmo assim, Ino insistiu que eu fosse buscá-la de carro.

Estou tentando ter algumas horas de paz com o meu namorado há um bom tempo, mas sempre há algum empecilho, e isso está começando a tirá-lo de sério também.

Meus dedos tamborilam a superfície de couro do volante, e observo o painel iluminado do carro. Estou o mantendo ligado, pois a rua não está muito movimentada, e o Civic de Deidara é o único carro no asfalto. Bairros universitários não costumam ter muito movimento em horários não letivos.

Assaltos não são, nem de longe, algo comum aqui. Mas estou receosa mesmo assim, estar sozinha em uma rua deserta às onze horas e quinze não é algo que mereça tanto conforto.

Deidara está esperando por mim em meu apartamento. Nos conhecemos no meu primeiro Bazar de Gastronomia como universitária. Eu estava vendendo meus brownies recheados à preço de banana, porque não saíram com o sabor que eu queria, e a intenção realmente era proporcionar um momento agradável aos universitários, ao invés de lucrar com comida. Mesmo assim, no início da noite, consegui pagar para meus dois amigos um rodízio de pizza com o dinheiro que arrecadei.

Me lembro de naquela noite, enquanto Suigetsu, Ino e eu contemplávamos a pizza de camarão posta em nossa mesa, divagar sobre o homem maravilhoso que eu havia conhecido naquele dia.

Deidara, pele bronzeada, olhos azuis como o oceano e um rosto que apenas homens sortudos podem ter. Ele concluiu o doutorado há dois anos, e desde então, dá aulas três dias por semana na universidade em que estudo.

Depois do bazar, nos esbarramos outra vez na mesma pizzaria próxima ao campus. Eu não tinha almoçado naquele dia, o dinheiro que tinha nos bolsos era o suficiente para duas fatias de pizza, e ele me observou comer como um porco por vinte minutos, até escrever uma nota fofinha em um guardanapo e pedir que um garçom me entregasse. Eu ainda não sabia que ele era um professor; vê-lo na faculdade com vestimentas casuais e carregando uma pasta abaixo do braço não dizia muito sobre sua profissão, afinal, sua aparência é jovem a ponto de permiti-lo ser confundido tranquilamente com um mero estudante.

Mesmo assim, posso afirmar que ali foi onde tudo começou.

Deidara costumava ser sorridente e amável em nossos primeiros meses, no entanto, eu pude conhecer sua persona verdadeira após algum tempo, quando nosso relacionamento se tornou relativamente velho, e então rompemos pela primeira vez aos sete meses, e outra vez aos nove. Mesmo assim, comemoramos juntos nosso aniversário de um ano, e agora temos um ano, quatro meses e duas semanas de namoro.

Eu tenho engolido alguns sapos desde então, não me sinto totalmente bem com isso, mas acredito que é valioso, pois não quero brigar com ele. Não quero tirá-lo de sério.

"Deus," exalo, praguejando alguns palavrões antes de girar a chave na ignição. A luz vai embora, o motor silencia, e eu finalmente empurro a porta do carro. A alça da minha bolsa fica presa à marcha, e por sorte o motor estava desligado, do contrário, o carro teria saltado.

Eu fecho a porta e pressiono um botão na chave para que as trancas se ativem.

Se estar segura dentro de um carro me preocupava, estar fora dele é algo que ultrapassa os limites da válvula em meu cérebro que ativa os sentimentos de medo. Por sorte o laboratório está próximo e há um pequeno grupo de alunos de Biomedicina fazendo pesquisas para seminários.

A universidade abria seus portões uma vez por semana, durante a noite, para que alguns estagiários, mais precisamente da área das ciências biológicas, fizessem uso assistido de seu laboratório para pesquisas patrocinadas. O contratante paga ao aluno, que ganha experiência, e repassa parte de seu lucro para a universidade. É quase uma relação de protocooperação.

Ino é uma das usuárias constantes do laboratório. Está cursando o oitavo  período de Biomedicina, e já é remunerada por realizar algumas pesquisas para laboratórios particulares conceituados.

Eu não consegui nada do tipo. Nem mesmo um mísero cargo de auxiliar de temperos em uma lanchonete ou algo semelhante. Eu a invejo por isso.

Esquivo algumas poças de água pelo caminho até a pequena rampa que me leva até os portões abertos da universidade. Vapor sai de minha boca a cada vez que exalo. O clima está tão frio que abraço meu próprio corpo enquanto caminho, e já estou vestindo um casaco quente o bastante que peguei emprestado do meu namorado.

Uma rajada de vento faz com que meus dentes arrastem um contra o outro. Meus cabelos estão voando, eu perco o ritmo das passadas largas que estou dando. Está tão gelado que sinto calafrios, minha pele está eriçada e a sensação que tenho ao tocá-la é de que está dura.

Solto o ar pela boca e ouço o cricrilar dos grilos. Este, além do som de minha própria respiração e passos, são os únicos barulhos que posso ouvir agora. Andar por este caminho que faço todas as manhãs, exceto que passando entre grupos de alunos, pessoas estudando no gramado, é assustador, principalmente porque pareço ser a única alma viva neste lugar.

Nem mesmo um segurança noturno posso ver aqui, e isso está realmente me assustando.

Enfrento problemas ao chegar ao estacionamento de cascalho. Os saltos das minhas botas se enfiam dentre as fendas das rochas, produzindo um ruído seco e quase crocante que me distraem de meu próprio frio por um momento, até que eu alcance a parte pavimentada.

E, outra vez, não há mais nada para me distrair.

Observo o prédio do laboratório de longe, estou a pelo menos vinte e cinco metros de distância dele. O prédio de arquitetura vitoriana pelo qual estou passando agora é a estrutura principal, no qual as visitas são feitas, secretaria, reitoria, diretoria e todas as outras "rias" estão localizadas.

Eu passo por um das dezenas de canteiros que existem ali, alguns deles com apenas grama e tipos de plantas de baixo porte, com lindas flores. Outros, como o que deixo para trás, portando antigos e sisudos carvalhos.

Eu me sinto menos tensa ao perceber três silhuetas à minha diagonal, na escadaria que leva até a entrada do prédio principal. Tiro o celular do bolso do casaco, ansiando por uma nova tentativa de entrar em contato com Ino. No entanto, percebo que são três silhuetas masculinas, e elas não estão paradas.

Muito pelo contrário, um deles está no chão.

Sinto minha própria pulsação acelerar ao perceber o que está acontecendo. É uma briga.

Na verdade, em uma briga, os golpes são compartilhados, há alguém apanhando e revidando em seguida. O que está acontecendo a pelo menos dez metros de mim não é nada disso, visto que o homem no chão não está revidando, e apenas tenta proteger o rosto com os braços dos chutes dados pelo outro.

Sinto um bolo em minha própria garganta ao ouvir os ruídos longínquos de gemidos, tanto do homem sendo agredido, quanto os empenhados do agressor. Imediatamente recuo dois passos, temerosa de que a silhueta parada, apenas observando aquela violência me detecte ali.

 Continuo a observar o que está acontecendo, porém, meu corpo está oculto pelo caule grosso, e eu acredito que estou bem escondida aqui. Meu nariz está colado a superfície áspera, e só o que posso sentir é o forte cheiro de madeira enquanto observo a cena diante de mim, mas não posso parar.

Ainda com o celular em mãos, eu desbloqueio a tela e abro a câmera. Minha mão está trêmula quando aponto a câmera traseira em direção a escadaria e meu dedo desliza de baixo para cima, aumentando o zoom. Posso ver mais de perto agora.

O agressor se ajoelha durante alguns segundos, ele tem cabelos médios, é só o que posso definir por certo, já que não posso ver suas feições claramente. O zoom aniquila a qualidade da câmera.

Suas mãos agarram a gola da camisa do cara no chão e ele o puxa com brutalidade em direção a seu próprio rosto. Agora ele está falando algo que não posso ouvir, mas vejo na câmera que sacode o corpo inerte em suas mãos, e o outro sequer consegue reagir.

Ele desfere um forte soco no rosto do homem antes que o solte, e o corpo desfalece sobre o piso; outra vez, os chutes impiedosos se iniciam, eu começo a filmar. A vítima não consegue mais forças para sequer proteger o próprio rosto, como antes, e eu tenho sérias desconfianças de que está desacordado agora, talvez até morto, afinal, não sei por quanto tempo esteve apanhando.

Mas o agressor não para, nem por um segundo.

Quando a humanidade dentro de mim me implora por um pequeno intervalo daquela violência, desvio minha atenção até o homem em pé, com os quadris apoiados ao corrimão de ferro. Ele está de braços cruzados e assiste com muita cordialidade o que está acontecendo. Seus cabelos são mais claros, loiros. Eu o filmo durante alguns segundos também.

De forma alguma continuarei meu caminho em direção ao Laboratório. Não sei o que está acontecendo aqui ou mesmo quem são estas pessoas, mas não quero que me vejam. Meu mísero conhecimento em krav magá não poderia me proteger de um deles, quem dirá de dois. Então eu penso que devo ir embora, o mais rápido e silenciosamente possível.

Inalo uma respiração profunda, a exalando em partes. Preciso me acalmar, a desvantagem dos saltos caso eu seja vista já é o suficiente.

Enfio o celular no bolso traseiro dos meus jeans, e devidamente apoiada à árvore, volto a respirar intensamente para juntar um pouco de fôlego. Preciso ligar para a emergência, a polícia ou mesmo os dois, mas preciso fazer alguma coisa.

O farei quando estiver segura dentro do carro, não agora.

Dou o primeiro passo para fora da proteção que o caule outrora trouxera. Meu salto produz um forte ruído contra o asfalto quando o faço, e minha pele se eriça outra vez. Eu olho para trás, e está tudo bem. Nenhum deles me viu.

Mas o motivo, percebo, é por estarem indo embora.

Eu paro para assistir as duas silhuetas masculinas se afastarem do corpo. Me escondo atrás dos bancos de concreto, assistindo a ambos enquanto andam para longe, em direção ao Laboratório. Porém, eles nunca ultrapassam a porta de entrada, pelo contrário, seguem adiante até sumirem do meu campo de visão.

A indecisão me ataca, e eu penso por alguns segundos sobre o que devo fazer. Jamais estive em uma situação semelhante antes, eu não sei o que está acontecendo, quem é aquele homem, ou mesmo se devo ajudá-lo. Mesmo assim, um traço de altruísmo fala mais alto dentro de mim, e eu corro em direção às escadarias.

O homem está imóvel e de olhos fechados, suas pálpebras estão inchadas, há sangue por todo lugar em seu rosto, assim como fissuras nos lábios e sobrancelhas. Eu sinto uma onda de emoção se apoderar de mim, e grito ao me ajoelhar a seu lado.  "Ei! Por favor, acorde!"

Mal posso enxergar o momento em que abre os olhos, visto que sua face está inchada. Os cortes em sua pele me preocupam, e quando puxo o celular do bolso outra vez, me sinto aflita.

Ouço um gemido fraco quando seus olhos se abrem e íris esverdeadas me observam sem muito foco. "Olá, está tudo bem?" eu me sinto ridícula por perguntar isso, "O que aconteceu com você? Por que eles estavam te batendo?"

Seus lábios ensanguentados se movem compulsivamente enquanto ele tenta articular palavras, mas não consegue falar. Ele começa a tossir sangue, e eu me desespero. "Pelo amor de Deus, eles estudam aqui? Você estuda aqui? O que acabou de acontecer?" nenhuma resposta. Pelo contrário, suas tossidas permanecem cortando minhas perguntas. Ele para, deixando que sua cabeça caia sobre o concreto e começa a hiperventilar. "Me deixe te ajudar!"   eu esbravejo, aflita.

Talvez fosse demais exigir dele que diga alguma coisa, considerando o estado no qual se encontra, mas eu preciso de respostas. Eu preciso que ele me ajude para que eu possa ajudá-lo.

Nervosa, lembro do celular em minhas mãos e começo a discar o número da emergência.

"Qual é o seu nome? Vou chamar uma ambulância e... a políci-"

"Não!" ele brada, e seus olhos se arregalam. Suas mãos trêmulas tentam alcançar o celular, mas eu o impeço com facilidade. "Sem-," ele geme "sem polícia. Sem polícia."

É quando eu estou convicta de que algo muito, muito errado e ilícito aconteceu aqui, e eu acabo de me inserir no meio do fogo cruzado sem sequer saber o que está havendo.

Meu lábio inferior começa a tremer, e a opção de simplesmente sair correndo daqui assola minha mente. Claramente ele não deseja ser ajudado, e só estou perdendo meu tempo. Deixando imagens em minha cabeçadas quais lembrarei por um bom tempo em vão.

"Por que não?" questiono, o tom errático em minha voz soa como a pergunta de alguém que não tem a certeza de que deseja ouvir respostas. Mesmo assim, eu continuo. "Quem são aquelas pessoas? Por que fizeram isso com você?"

"Qual..."  ele suspira, os olhos fechados com grande força e uma expressão dolorosa em seu rosto, como se o simples ato de respirar o causasse desconforto "Qual é o seu nome?"

"Meu... meu nome é Sakura, e o seu?" meus olhos perseguem os dele. Estou desesperada, até mais do que o próprio rapaz agonizando no chão, mas ele não me olha, não parece me levar a sério ou está indisposto a me falar o que aconteceu. Como não demonstra intenções de responder, eu engulo com tensão antes de fazer uma oferta. "O meu carro está no portão de entrada. Podemos conseguir ajuda."

Os vasos sanguíneos em seus olhos parecem dilatados, de forma que a vermelhidão que adorna suas íris verdes é agoniante para mim. Ele me olha, e sua boca se abre para responder.

Sua atenção desvia do meu rosto para observar sobre meu ombro. Em seguida, sinto um forte aperto em meu pulso. Seus dedos ensanguentados estão me apertando com força, e ele tosse antes de exclamar com veemência. "Eles estão voltando!" o tom em sua própria voz é terrificado, demonstrando todo o medo que sente por seu próprio futuro, "Corra, Sakura! Agora!" e pelo meu.

O peso do mundo cai sobre minha cabeça, e meu rosto se contorce em pavor. Eu faço isso, vir buscá-la, sempre que recebe alguma oferta de pesquisa, é algo normal. O fluxo de guardas noturnos nunca foi exemplar, mas sempre, sempre havia algum à espreita. E agora tudo está simplesmente vazio, eu não posso acreditar nisso.

Eu não o contrario ou insisto em ficar. Já estou correndo como se a minha vida dependesse disso, e não sei realmente, talvez dependa. Minha respiração acelera, enquanto faço o esforço hercúleo de correr relativamente rápido usando botas.

É o que a adrenalina faz comigo. O estímulo da luta pelo próprio bem-estar me torna, de certa forma, blindada, até que tudo pare. E é quando sinto as consequências. O cansaço, a dor, o martírio.

Eu olho para trás, e ele tinha razão. De fato, há uma silhueta se movendo com grande rapidez atrás de mim, mas como disparei no momento em que fui alertada, abri uma boa vantagem de distância, de modo que o homem a me perseguir está à bons de metros de mim.

O outro, para ao lado do rapaz que tentei salvar, e no milésimo de segundo em que me virei para saber com o que estava lidando, eu o vi desferir outro chute impiedosamente contra ele. Mas não tive tempo para lamentar, quando seu parceiro me perseguia viciosamente.

Deus, um forte calafrio crepita através do meu corpo quando eu me desequilibro sobre os saltos, mas não caio. Meus dedos se fecham fortemente contra o celular quente em minha mão dominante, enquanto a outra rumina desesperadamente no bolso da minha calça em busca das chaves do carro.

"Socorro!"  eu grito. Talvez alguém esteja circulando pelo campus e possa me ouvir, me ajudar. Eu estou com tanto medo que meu peito gela a cada nova batida agravada do meu coração.

Começo a choramingar quando chego ao estacionamento de cascalho. Todas estas pedrinhas vão me atrasar muito e ele, que definitivamente não está de saltos e tem pernas mais longas que as minhas vai me alcançar logo.

Eu encontro as chaves e ergo o braço esquerdo, pressionando o botão para que as portas do carro se destravem. Minhas unhas atingem outro botão adjacente e o alarme do carro dispara, eu vejo as luzes piscarem na rua escura e espero que o barulho o assuste a ponto de fazê-lo me deixar em paz, mas não funciona. Ainda posso ouvir seus passos firmes e ágeis atrás de mim.

"Merda, merda, merda!" praguejo a um só fôlego. Não funcionou.

Com sorte, chego ao piso pavimentado outra vez. Posso ouvi-lo tão perto agora que meus dentes estão rangendo ruidosamente.

Minha mão se apoia as grades do portão para que eu vire a esquina do muro rochoso que cerca o campus da Universidade, e agora estou fora, correndo pela calçada. A tiara que mantinha minha franja presa junto ao cabelo desliza até cair no chão, mas está totalmente fora de circulação a possibilidade de que eu perca ao menos um segundo para recuperá-la.

Não há nada para provocar uma queda, mas tropeço em meus próprios pés ao chegar perto do carro, e caio sobre ele. Minhas mãos se apoiam ao vidro das janelas, é como consigo me manter em pé. E eu corro ao redor dele para chegar ao lado do motorista. Puxo a maçaneta, e salto sobre o assento tão com tamanho descuido que minha costela atinge fortemente a marcha e o freio de mão, causando uma dor que consegue arrancar lágrimas dos meus olhos imediatamente.

Mas esta dor não afeta em nada o meu instinto de sobrevivência.

Dou a partida no carro e o motor range. Ouço batidas na lataria, e meus olhos procuram a fonte do ruído. Um par de mãos bate insistentemente contra o vidro. Tudo é tão rápido que eu sequer consigo ver o rosto do meu perseguidor. Piso fortemente sobre o acelerador, o que faz os pneus cantarem sonoramente com minha partida brusca.

Eu gemo. Meus dedos apertam a superfície do volante quando eu consigo respirar uniformemente. Estou desesperada, absolutamente desesperada, e ainda posso ouvir minha própria pulsação dentro de meus ouvidos.

Minha visão procura imediatamente o retrovisor, e eu consigo enxergá-lo mesmo com a sombra da noite. Ele é alto, esguio e moreno. Foi o de cabelos mais longos que me seguiu.

 Ele caminha em direção ao muro, e posso perceber que acerta um soco contra a construção, como se recriminasse a si próprio por me deixar escapar.

Pisco excessivamente quando minha atenção volta à direção. Eu arranco o cachecol do meu próprio pescoço e o arremesso sobre o banco do carona, enquanto inspiro com a boca aberta.

Eu, definitivamente, não compreendo o que acabou de acontecer. Mas consegui escapar ilesa, e isso é tudo que importa. Ao menos por ora.


        "Sakura. Você está atrasada." é como Deidara me recepciona no momento em que dou o primeiro passo para dentro de meu próprio apartamento.

Empurro as chaves de seu carro contra seu peito e não me dou ao trabalho de sequer olhar em seus olhos, apenas faço meu caminho em direção ao banheiro.

Ele reclamou outra vez por eu gastar tempo indo buscar Ino em uma das poucas noites que temos para passar juntos, e nós brigamos.

"Amor,"  seu tom se altera drasticamente quando ele me segue pelo corredor. "Sakura, o que aconteceu?"  ele questiona, consternado "Sakura..."

Eu fecho a porta mesmo após ver o seu rosto do outro lado, e ele não tarda a bater contra a madeira insistentemente, repetindo o meu nome.

Observo meu próprio reflexo no espelho. Estou pálida. Toda a cor parece ter deixado minha face, até mesmo meus lábios estão opacos.

Preciso entrar em contato com Ino o mais rápido possível e, de alguma forma, explicar o motivo da minha ausência e ao mesmo tempo omitir o que aconteceu comigo.

Talvez eu poupe até mesmo o meu namorado da verdade.

Apoio o peso do meu corpo aos braços quando minhas mãos repousam sobre as bordas da pia, e encaro meus próprios pés por um momento, antes de fitar meu próprio reflexo outra vez. Giro a manopla, liberando uma torrente forte de água fria, e junto minhas mãos em concha para acumular uma boa quantidade, jogando-a em meu próprio rosto.

Certo, eu posso contar a verdade, mas precisaria explicá-lo absolutamente tudo o que aconteceu. Ele me encheria de perguntas e, como a criatura metódica que é, tentaria me convencer a acionar a polícia.

É o que qualquer pessoa racional faria. Chamar a polícia. Mas depois do que o garoto sussurrou, seu memorável pedido para que eu não envolvesse nenhuma autoridade em toda esta bagunça me garante uma incerteza torturante do que devo ou não fazer.

Respiro profundamente antes de abrir a porta, e a expressão preocupada no rosto de Deidara me faz repensar que atitude tomar. Ele não acreditaria em qualquer coisa, e eu estou com o meu celular aqui, então não posso fingir um assalto.

"Sakura, o que aconteceu?"

Fecho a porta atrás de mim e cruzo os braços sobre o peito. Eu fungo, o observando enquanto ele aguarda por explicações.

"Eu também não sei."  opto pela sinceridade. Não posso esconder algo tão substancioso assim dele. "Eu... eu estava esperando a Ino sair do prédio. Mas ela demorou muito e não estava atendendo o celular, então eu decidi ir para o laboratório esperá-la nas proximidades. Quando eu passei pela frente do prédio principal, vi três homens brigando na escadaria."  eu o olho, e suas sobrancelhas loiras agora estão contraídas. "Brigando não, um deles estava sendo espancado em um dos degraus. Então eu me escondi atrás de uma árvore e... e eu filmei e... de repente os agressores foram embora, então eu fui até o cara no chão para oferecer ajuda. Ele estava muito machucado..."  meus pelos se eriçam com a mera lembrança de quanta violência aquele rapaz sofrera, e minhas mãos deslizam por meus braços, acalentando-os.

"Você não devia ter feito isso-"

"Eu falei com ele, eu falei. Por pouco tempo." interrompo sua fala, "Mas então ele começou a gritar que os caras estavam voltando, e então eu corri. Um deles me perseguiu até a calçada. Eu... eu nem sei como consegui." a voz começa a morrer em minha garganta. Deidara puxa meus ombros bruscamente, e eu me deixo ser abraçada.

Minhas pálpebras se fecham e eu busco o conforto nele, em seu peito quente. Minhas mãos deslizam por seu ombro esquerdo, e eu ouço a sutil vibração que a voz produz em seu peito. "Precisamos ir até a polícia."

Claro. É claro. Eu sabia que seria a primeira coisa que diria.

Mudo de assunto. "Existe algum clube de lutas secreto entre as fraternidades?"

"Não que eu saiba."

A possibilidade rapidamente é extinta quando assimilo que, se houvessem atividades do gênero acontecendo na surdina, eu, como estudante,  seria a mais provável a saber, e não um professor.

"Enfim, eu estou bem agora. Nada aconteceu comigo."

"Você teve sorte."  seus lábios se fecham em um beijo sobre meus cabelos, e eu me afasto do abraço para olhá-lo durante alguns segundos, "Me desculpe por estar aqui. Eu irei junto na próxima vez, ok?" ele acaricia meu queixo. "Eu estou feliz que está bem."

Eu também estou feliz por estar bem.

Mesmo assim, não consegui pregar o olho a noite inteira, pensando naquele garoto e o que pode ter acontecido com ele.

Eu podia ter ficado lá, encarado aqueles dois homens nos olhos e ter material o suficiente para um retrato falado, mas tudo o que tenho agora é o medo e uma filmagem ruim.

Eles voltaram depois. Eles voltaram, e se fizeram isso, é porque o que quer que tenha sido aquela agressão ainda não havia acabado.

Eu sinto vontade de chorar por isso. Pela falta de limites daqueles bandidos, e o que eles podiam ter feito comigo se houvessem me alcançado.

Deidara me abraçou a noite inteira, eu me refugiei em seu corpo da sensação de vulnerabilidade que me acometia, e mesmo assim não consegui dormir.

Antes de irmos para a cama, deixei algumas mensagens de voz para Ino, a explicando da forma mais superficial possível que enfrentei problemas e por isso não pude esperá-la. Espero que tenha conseguido uma carona com alguém.

Eu sou despertada carinhosamente por Deidara apenas quarenta minutos depois de conseguir dormir. Ele me deixa no quarto, saindo com a justificativa de que fará nosso café da manhã, e aproveito para tomar um banho quente antes de começar a me preparar para mais um dia de aula.

Se é que terei, de fato, uma aula hoje.

Deidara abre a porta, e com um pão entre os dentes, abre o box.

"Ei!" eu o reprimo, mas ele puxa desfaz a dobra da toalha limpa que deixei sobre a pia e me entrega. "O que é isso?!"  exclamo, incomodada pela interrupção. Estou finalmente conseguindo relaxar após a madrugada de tensão, e ele invade o meu banho, me chamando para fora.

Ele tira o pão da boca, "Está passando na televisão. Venha ver."

Praticamente dou um bote na toalha em sua mão quando o ouço. A enrolo em meu próprio corpo e seco os pés para sair correndo do banheiro em direção a sala.

A primeira coisa que observo ao chegar na sala é a âncora do jornal matinal do canal seis, e ao seu lado, uma foto em que o rapaz ruivo que tentei ajudar ontem aparece sorrindo e sadio. Meu queixo vibra com o frio de sair abruptamente de um banho quente, mas me sento sobre a poltrona velha em frente à televisão, aumentando o volume.

...Identificado como Sabaku No Gaara, o corpo do jovem de vinte e três anos foi localizado hoje pela manhã nas escadarias da Universidade Aoyama Gakuin e levado em estado grave ao Aiiku Hospital. A família do universitário foi contatada, e de acordo com a última atualização, está em estado de coma primário devido à forte violência sofrida. Ainda não existem informações ou suspeitos, bem como testemunhas, porém, a polícia municipal está trabalhando no caso...

Eu sequer consigo chorar, e minhas mãos estão tremendo quando tapo minha própria boca. Deidara, em pé ao lado da televisão, apenas me olha com um aspecto de lamentação nos olhos.

Ele se agacha, e seus dedos pressionam o botão do volume na televisão, deixando-a muda.

"Ele está em coma!" eu grito à plenos pulmões. É quando Deidara caminha em minha direção e se ajoelha em minha frente. Sem se importar com meus cabelos melados de condicionador, ele me abraça ternamente, sussurrando que ainda existem chances para Gaara, e que ele ficará bem.

"Fique aqui hoje. Com certeza não haverá aulas, a polícia certamente está na Universidade, e os reitores se ocuparão apenas com isso a manhã inteira." ele sussurra, e por um momento, um breve momento, eu considero sua oferta.

Passar a manhã com ele me parece muito melhor do que encarar aquele dia como se eu não houvesse testemunhado este caso bárbaro de violência e ele não houvesse me afetado tanto.

Mas eu preciso ir, preciso de mais informações sobre o que aconteceu, saber o que os alunos estão comentando.

Preciso saber quem é Sabaku No Gaara, ouvir todas as teorias possíveis sobre o que aconteceu, sobre quem o espancou de tal forma, e sobretudo, o porquê.

"Não, se não fossem haver aulas eu tenho certeza que a reitoria emitiria uma nota no jornal, mas nada foi dito, ou foi?" eu argumento, meus lábios pressionados contra os ombros desnudos do meu namorado.

"Eu podia mentir e dizer que sim."

"Não faça isso." eu colho seu rosto entre minhas duas mãos e o faço olhar para mim. "Você vai estar aqui quando eu voltar?"

"É claro que sim." ele sorri minimamente.

Eu o beijo, tentando absorver dele forças para encarar aquele dia.

                                                    _______

 

Eu não posso usar seu carro durante o dia, muito menos para ir à faculdade em plena luz do sol, quando o fluxo de alunos, seus alunos, é caótico.

Apenas Ino e Suigetsu sabem de nosso namoro, e confio neles o suficiente para crer que ninguém mais, exceto Konan, tem conhecimento disso.

O táxi me entrega alguns centavos de troco, e eu deixo o carro, observando a minha universidade.

Parada sobre a calçada, posso perceber com facilidade a movimentação atípica no campus. Há também duas viaturas estacionadas nas vagas à frente de onde o meu táxi está parado. Até mesmo o motorista está juntando as sobrancelhas, curioso sobre o que pode estar acontecendo aqui.

Engulo em seco ao observar dois policiais conversando ao lado do portão, mas mantenho a compostura e ultrapasso a entrada com a cabeça erguida.

É impossível esquecer que fiz este mesmo caminho horas antes, em circunstâncias diferentes, quando eu ainda não era a testemunha de um crime.

À passos lentos, faço meu caminho em direção à escadaria, onde um grande grupo de pessoas está acumulado ao redor de faixas amarelas sinalizando a área na qual o corpo fora encontrado. Posso ver os reitores dando seus depoimentos a outra dupla de oficiais, e uma policial anota em um bloco o que dizem.

Meus dedos se fecham contra a alça da minha própria bolsa e pessoas passam correndo ao meu lado, até que se juntem à aglomeração, para adicionar mais um trio de pares de olhos curiosos a todos os outros.

"Com licença," minhas mãos tentam abrir caminho dentre a multidão, enquanto tento manter a educação. "com licença. Licença." eu esbarro em uma garota, que distraída em uma conversa paralela com amigos, sequer dá importância. "Desculpe. Com licença."

Eu preciso chegar até a frente, preciso assistir ao que está acontecendo. Então continuo a subir os degraus com isso em mente.

Fico na ponta dos pés quando um rapaz muito alto se põe como a única coisa entre mim e a fita amarela. Eu toco seu ombro, numa tentativa de chamar sua atenção. "Com licença, me deixa olhar?" forço um sorriso, e ele simplesmente dá um passo para o lado, abrindo uma mínima brecha na qual entro.

Três policiais estão agachados ao redor de uma pequena mancha de sangue, e por um momento, parece que um assassinato ocorreu aqui. Penso ser uma abordagem desnecessária, mas o garoto está em coma, e seu corpo fora encontrado desacordado aqui.

Ele continuou a ser agredido mesmo após o momento em que fui embora, o mero pensamento me faz encolher os ombros e tomar para mim as dores dele.

Abraço a meu próprio corpo enquanto assisto os policiais se moverem dentro do círculo. As imagens da noite anterior continuam se repetindo em minha cabeça, e eu expiro de forma entrecortada, arrependida por não seguir o conselho do Deidara e ficar em casa.

Sinto um aperto em meus ombros, e imediatamente viro o queixo à esquerda.

"Garota!" Ino exclama atrás de mim, e eu giro sobre meus calcanhares para conversar com ela, que está um degrau abaixo de mim. "Sakura, precisamos conversar. Você precisa depor!"

"O quê?!"  eu gaguejo, com os olhos arregalados.

Ela puxa minha cabeça para encontrar a sua, e dá um sussurro gritado em meu ouvido direito. "Você estava aqui ontem à noite, não estava? Você viu alguma coisa?"

"Não, não. Eu... não." continuo gaguejando, "Eu não vi nada! Eu deixei mensagens para você ontem, o Deidara precisou de mim em casa!"

"Mesmo?" questiona, sem se preocupar em demonstrar credulidade ao que eu disse. "Por quê? O que era tão urgente?"

Esfrego meu próprio rosto. Estou suando frio. "Ele comprou uma pizza para nós e a carteira dele estava no carro, tudo bem? Eu precisei voltar porque o entregador estava impaciente, e você demorou muito. Então eu voltei!"

No momento, é a melhor desculpa que consigo fabricar. Meu corpo está funcionando eletricamente, e não consigo me concentrar em nada, nem mesmo nela, por isso meus olhos circulam ao redor dos rostos, atentos à investigação acontecendo atrás de mim.

Não me importo se ela acreditou ou não, eu manteria esta versão, e diria a Deidara para falar o mesmo, ao menos até que eu decida contá-la ou não.

Droga, eu preciso decidir até mesmo se irei até a Polícia depor.

"Não vamos falar sobre isso aqui, muito menos agora, tudo bem?" eu seguro seus ombros, sacudindo-os até que ela faça que sim com a cabeça e se mantenha calada. "Obrigada."

Eu me viro de volta, sem se importar se meu cabelo atingiu seu rosto.

Meus olhos estão atentos à conversa discreta do trio de policiais, mas não posso ouvir coisa alguma. Ninguém pode, principalmente quando ninguém parece querer calar a boca, mantendo murmúrios de especulações sobre o acontecido como zumbidos constantes em meus ouvidos.

Eu suspiro profundamente, recordando de meu desgosto por grandes aglomerações. E, no entanto, eu permaneço aqui. Não posso sair.

Eu paro de observar os policiais, e meus olhos varrem os inúmeros rostos curiosos de estudantes assistindo a tudo no lado oposto ao meu. É quando percebo que há um cara me observando.

Quando o encaro, ele não desvia, e sua insistência em manter contato visual faz com que eu junte as sobrancelhas.

A expressão em seu rosto é tão neutra que eu acharia que ele está apenas me checando por um breve momento se não houvesse mantido os olhos em mim, contudo, posso ver apenas sua cabeça entre os ombros de duas garotas.

Ele tem cabelos escuros, sua pele é pálida. Um de seus braços está cruzado, com o cotovelo apoiado ao dorso de sua mão esquerda, enquanto a direita está fechada, pressionada contra seu nariz e lábios, de forma que não posso ver seu rosto por inteiro.

Desconfortável, sou eu quem desvia o olhar. Talvez tenha me achado atraente, mas quando o procuro outra vez dentre o grupo, ele não está mais olhando para mim, e logo em seguida dá as costas, saindo.

Seu lugar rapidamente é preenchido por mais uma curiosa, e eu decido focar no que realmente importa. A cena do crime, descobrir no que me meti e quem é aquele garoto.

Eu não sei o que aconteceu aqui ontem, mas definitivamente vou descobrir.

 

 

 


Notas Finais


Ai, ufa, é isso ai.
Eu literalmente postei 4 vezes hoje e agora quero sumir.
ESPERO QUE VOCÊS TENHAM GOSTADO, até a próxima.


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