Já passava das 16h, e durante todo tempo eu só pensava em como conseguia ser tão inconsequente. Havia percebido que Bianca ainda pensava no Michel e mesmo assim eu a seduzi – acabei substituindo meu irmão mais uma vez.
Me sentia enjoada. A comida e a angústia disputavam um espaço apertado dentro de mim, então vomitei pensando que me livraria das duas e que meu estômago ficaria mais aliviado. Só o que consegui foi uma dor de garganta. Escovei os dentes e a língua com força para tentar disfarçar aquele gosto ácido e me deitei, encarando o teto branco. Pensei que fosse chorar novamente, mas as lágrimas não vieram mais.
Logo eu poderia dizer a mim mesma que estava tudo bem. Podia sair para beber naquela mesma noite. Combinei com Tadeu, um colega do fundamental com quem mantive contato, para nos encontrarmos às 21h.
Estava tudo resolvido. Não tinha razão para ficar remoendo o que acontecera pela manhã. Bianca tinha sido apenas mais um alvo meu, mais uma pessoa que deixou um rastro nessa minha vidinha de garota promíscua.
Enquanto decidia que roupa usar, examinando as combinações de blusas, shorts e saias diante do espelho do armário, percebi que a raiz do meu cabelo já começava a crescer. Aqueles fios negros eram minha sina, assim como o formato fino do rosto e dos olhos esverdeados (os meus, castanho esverdeados) – tudo que me fazia ser tão parecida com meu irmão mais velho. No máximo até o fim do mês, eu precisaria descolori-los e renovar a cor avermelhada para continuar negando ao menos aquele traço da minha genética.
Nossa semelhança surpreendia até dentro da família, e na escola chegaram a perguntar se éramos gêmeos. A comparação constante desde a infância nunca chegou a nos incomodar de verdade, e, apesar de eu ser meio birrenta e o Michel meio sarcástico, éramos muito próximos um do outro e sempre andávamos juntos.
Então crescemos. Nos tornamos adolescentes e descobrimos muito rápido um mundo no qual as relações iam além da amizade.
***
No segundo semestre da 7ª série, com apenas 13 anos, comecei a ter meus “namoradinhos”. Perdi a virgindade durante o terceiro “namoro”, que durou até o fim das aulas – minha personalidade teimosa e atrevida me fez crer que eu já era madura o suficiente para isso.
Logo no início do outro ano, numa festinha com pessoas erradas do ensino médio (na qual comecei a beber, aliás), acabei ficando com uma garota. Não pensei muito sobre a questão de ser bissexual, sobre os possíveis julgamentos ou se era errado ou não. Apenas fui em frente com o que senti. Saímos por um mês, mais ou menos, até as aulas começarem.
Já com 14 anos, namorei um garoto do segundo ano de outra escola durante uns três meses, e, depois de algumas puladas de cerca recíprocas, dei uma sossegada.
Nota-se que eu estava explorando bastante a descoberta da minha sexualidade (não exatamente da orientação), mas Michel também não ficou atrás – com 16 anos, já possuía um belo histórico de namoradas e ficantes. Até ouvi falar que ele tinha ficado com um garoto uma vez, mas o boato nunca foi confirmado.
Claro que não tinha como essa fama de conquistadores não chegar aos ouvidos da coordenação. Chamaram nossos pais e acabamos levando uma bronca por conta dos frequentes “pegas” dentro da escola. Papai pareceu bastante chocado ao descobrir que sua filha fazia esse tipo de coisa, e mamãe ficou constrangida ao perceber que não tínhamos qualquer diálogo sobre isso em casa. Tudo que eu e Michel fazíamos, havíamos aprendido sozinhos, na escola, com colegas. Quase literalmente na prática.
No fim daquela semana, na madrugada de sexta para sábado, Michel e eu resolvemos ter uma conversa clara e sincera, como não tínhamos há algum tempo. Acabei contando que era bissexual e que, depois do que havia acontecido, estava com medo de que nossos pais descobrissem.
– Tem certeza disso, Cecí? – ele perguntou.
E só então precisei revelar em detalhes meu histórico para alguém – até que tinha traído meu último namorado algumas vezes. Meu irmão riu da minha impulsividade e aproveitou para me fazer uma confissão também: tinha mesmo ficado com um garoto, mas apenas por curiosidade, e só tinha rolado um beijo. Tive que me controlar para não rir muito alto e acabar acordando o casal que dormia no quarto ao lado.
– Foi mal, mas eu realmente não esperava algo assim de você.
– Claro. – ele debochou – Assim como o papai não esperava que você fosse tão experiente quanto eu. Sério, não sei como ninguém suspeitou de você dormindo na casa de tantas “amigas”.
Rimos do quanto nossos pais nos subestimavam (mais a mim especificamente), e Michel disse que, como só tínhamos um ao outro para nos abrirmos, eu poderia contar com ele para qualquer coisa, mesmo que fosse apenas para conversarmos daquele jeito.
Meu peito se aqueceu no conforto daquelas palavras. Michel era a pessoa em quem eu mais podia confiar, com quem eu poderia desabafar sempre que achasse necessário, alguém que não me julgava e que demonstrava o quanto se importava comigo. Eu tinha um companheiro imbatível ao meu lado.
Quando o segundo semestre começou, dois novos alunos entraram na minha turma. O garoto, muito animado por sinal, tinha cabelos claros e olhos azuis curiosos: era o Tadeu com 15 anos. A garota tinha a mesma idade e se chamava Carmilla: seus cabelos ondulados eram de um tom castanho caramelo e quase passavam da cintura, os olhos eram cor-de-mel, e o sinal em baixo do olho direto tornava suas feições intrigantes, provocativas. Não consegui desviar o olhar quando nos encaramos pela primeira vez. Juro que senti minha boca ficar seca.
Não foi difícil me aproximar dos dois, que descobri também serem bissexuais, e logo nos tornamos amigos. Porém, outra vez eu fui me envolver com pessoas erradas. Tadeu acabou me levando a experimentar algumas drogas, e Carmilla me fez perder as estribeiras de novo.
Ela não disfarçava seu olhar insinuante e até chegava a me roubar uns selinhos dentro da escola. Matamos aula duas vezes para darmos uns amassos escondidas no ginásio antes de começarmos a namorar de verdade. Em nossos encontros, ela não hesitava em me beijar na frente de quem quer que fosse. Dizia que me amava de um jeito manhoso, e eu sempre respondia com um beijo, pois nunca consegui dizer “eu te amo” a alguém. Carmilla compreendia essa pequena timidez e não me cobrava muito.
Eu gostava dela de verdade. Mesmo que a atração física sempre parecesse falar mais alto, mesmo que não conversássemos muito sobre o futuro ou sobre nossas famílias... Eu a amava mesmo que ela também ficasse comentando o quanto eu parecia com meu irmão quando tirava os óculos.
No início, não me incomodava tanto, afinal eu convivi com essa comparação a vida toda, mas depois comecei a sentir ciúmes.
Me tornei um tanto possessiva e passei a ser arisca com o Michel, principalmente nas raras vezes em que levava Carmilla para casa. Expliquei o motivo, e ele logo entendeu e me prometeu não ficar em casa quando eu estivesse acompanhada. Fiquei satisfeita por um tempo, mas ainda percebia como ela perguntava por ele, como olhava nos meus olhos sem me enxergar...
Um dia, no meio da semana de provas, avisei Carmilla que tentaria estudar na biblioteca da escola – minhas notas haviam caído um pouco naquele ano, e eu precisava pelo menos me manter na média.
Nos despedimos e tentei me concentrar me isolando numa das cabines privativas de estudo. Aquele ambiente fechado de paredes brancas, apenas com um aviso de “silêncio” colado ao lado da porta, começou a me sufocar. Não consegui ficar nem meia hora. Decidi que era mais fácil me concentrar em casa, no meu quarto, com meus cadernos rabiscados de minhas tentativas frustradas de desenhar estampas e tatuagens. Eu me sentia mais confortável rodeada por aquela bagunça.
Já havia almoçado por achar que passaria a tarde fora, então, quando cheguei em casa, passei direto para meu quarto. Consegui ser produtiva por míseros 20 minutos, quando ouvi a campainha tocar. Ia me levantar para atender a porta, mas ouvi passos vindo pelo corredor – Michel estava em casa e eu nem tinha percebido.
Ele abriu a porta e notei sua voz um tanto nervosa quando exclamou:
– O que você está fazendo aqui?! Vai embora agora!
Não era comum que meu irmão se alterasse daquele jeito. Pelo que pude entender, era uma garota inconformada e obcecada pelo Michel, que tinha rompido o relacionamento (ou caso) justamente por ela deixa-lo sufocado.
Ouvi passos pesados se aproximarem e, então, um baque na minha porta. Michel e a tal garota ficaram em silêncio por alguns segundos, e deduzi que alguém estava forçando um beijo. Provavelmente...
– Para com isso, garota! É asqueroso demais!
Era ela que forçava. Entortei a boca com impaciência.
– Eu não acredito que você não gostou. – ela disse.
Ela.
– Acredite, eu detestei. – Michel retrucou com desprezo – Achei que você já estava bem, que estava mesmo gostando dela, e não que estava fazendo algo tão nojento assim. Será que não percebe o quanto isso é ridículo?!
Ela achou graça com deboche.
– Não é minha culpa ela me atrair por ser tão parecida com você. Esses seus olhos verdes... Sabe o quanto procurei por eles nos olhos dela? Ou o quanto pensava em você quando tocava os cabelos dela?
– Não me toca! E cala essa boca!
Eu repuxava minhas mechas negras com tanta força que minhas mãos tremiam. As lágrimas quentes já escorriam por meu rosto antes que eu me desse conta. A raiva se propagava dentro de mim e me envenenava lentamente. Senti um ódio doentio daqueles cabelos pretos, daquela semelhança andrógina, daquela garota nojenta que dizia me amar. Senti ódio do meu próprio irmão.
Queria gritar de agonia, meus sentimentos ardiam e me sufocavam. Destranquei a porta e tentei abri-la, mas a maçaneta foi segurada com força pelo lado de fora – Michel sabia que eu estava ali.
– Já te mandei sumir daqui, não foi?
– Pra que insistir nisso, Michel? Já está ficando sem graça. Eu sei que você não me esqueceu. Não tem como você ter me esquecido. Eu mesma nunca consegui tirar você da cabeça.
– Realmente, eu nunca esqueci como você é insuportável. Mas por que teve que fazer isso com a Cecí? Não foi suficiente só me atormentar?
– Hu... Realmente. Eu até pensei que um dia ela conseguiria te substituir, mas não. Eu percebi que é você, Michel, só você quem eu quero de verdade.
Meu estômago revirou.
– Não precisa se segurar comigo, Michel. Ela não está aqui. A Cecília não vai saber de nada...
– CARMILLA! – gritei, sentindo seu nome queimar minha boca.
Silêncio.
Michel se afastou e me deixou abrir a porta. Ele encarava o chão, envergonhado, as mechas da franja comprida lhe caindo sobre os olhos. Carmilla me encarava com assombro enquanto dava alguns passos para trás, em direção à sala.
– Calma, Cecília...
Ela ia começar a correr quando avancei rápido e a segurei pelo pulso, sem medir a força que aplicava. Depois puxei seus cabelos para baixo até que ela se deixasse cair no chão e a prendi debaixo de mim, ignorando completamente os chamados do meu irmão.
Uma fúria aterrorizante tomou conta de mim. Eu queria arrancar a pele suave de seu rosto até que pudesse ver os ossos do crânio. Queria que seu tom rosado assumisse a cor de hematomas. Ela dava gritinhos estridentes enquanto eu repuxava suas mechas onduladas e apertava mais seu pulso sobre a cabeça.
– Fala que me ama agora, Carmilla! – berrei na cara dela – Fala o quanto gosta do meu cabelo, dos meus olhos, da minha boca! – e mordi seu pescoço com força.
Carmilla gritou mais alto, pedindo ajuda ao Michel, que logo tentou me tirar de cima dela. Eu estava tão histérica que acabei dando uma cotovelada no estômago do meu irmão e um tapa que derrubou aquela piranha quando tentava se levantar. Voltei a atacá-la.
– Fala o quanto pareço com o Michel agora! Fala, sua vagabunda dos infernos! – vociferei, irada. Minhas lágrimas abundantes embaçavam meus óculos e encharcavam seu rosto de boneca, já avermelhado pela força das minhas mãos. – Ele é gentil, não é? Aposto que nunca te deu os tapas que você merece!
– Acertou! – ela conseguiu responder – Ele nunca foi bruto como você é, Cecí! E nem tão controlador.
– Fiquei assim por sua culpa!
– Pois é. Não adiantou nada ficar parecida com um cara tão gato se tinha essa personalidade tão estúpida!
– Para com isso, Carmilla! – Michel a repreendeu, ainda falando com dificuldade e tentando nos separar. Depois que dei outro tapa nela, ele conseguiu me segurar pelos braços e me afastar, mas continuei me debatendo.
– E o Michel não suportou a sua personalidade carente! – rebati – Você só queria consolo comigo, isso sim!
– E nem pra isso você serviu. – ela falou baixo, com escárnio, e se levantou.
Aquilo foi demais para mim.
Me livrei dos braços de Michel com muita violência para tentar alcançar o pescoço dela – eu queria matá-la –, mas Carmilla conseguiu fugir de mim. Saiu correndo, assustada, quase tropeçando ao passar pela porta.
– Então vai pro inferno, Carmilla! – urrei para o corredor – Me deixa em paz! Não quero ouvir sua voz de novo! Não quero lembrar que você existe! Pode se matar que eu não quero nem saber, sua desgraçada!
Minha voz ressoava pelo corredor vazio do andar, mas eu não ligava se havia vizinhos ouvindo ou não. Colocar aqueles sentimentos amargos e sufocantes para fora era mais urgente que manter as aparências. Entrei no apartamento ofegante e até suada por conta do nervosismo, com os cabelos desgrenhados e as mãos trêmulas de tensão. As lágrimas ardiam como ácido. Michel tentou se aproximar de mim, mas não permiti que ele me tocasse.
Não era culpa dele, mas foi por sua causa que aquilo tinha acontecido – fui usada, traída e humilhada.
– Cecí...
– Não me chame assim! E some da minha frente!
– Desculp... Ah!
– Cecília...! – minha mãe chamou, usando aquele tom típico de repreensão.
Perfeito...
– Era você gritando no corredor?
Respirei fundo, para pelo menos não gritar. Tentei enxugar as lágrimas do rosto e respondi sem me virar para ela:
– É o que parece, não? – tentava controlar minha voz embargada – E o que faz aqui tão cedo? Veio me vigiar?
Ela fechou a porta com força.
– Eu não conseguiria nem se tentasse. E só vim buscar uns documentos que esqueci de escanear, mas isso pode esperar um pouco. Pode virar para mim, Cecília?
Eu virei, sem encará-la, mas percebi que ela estava com os braços cruzados.
– Vi uma garota correndo em direção às escadas, e ela parecia estar chorando, muito assustada por sinal. Quem era?
– Só uma piranhazinha... – resmunguei.
– Mas o que é isso, Cecília?!
Percebi que Michel me olhava, talvez apreensivo e cauteloso, querendo que eu lhe desse algum sinal do que seria melhor falar. Mas eu não correspondi. Ele respirou fundo e começou:
– Ela era só uma ex-namorada minha, mãe. Veio aqui só pra me encher, tentando reatar. Não se preocupe com isso.
– E só por isso ela é uma piranha? Não sei o que aconteceu com vocês, mas... – e tornou a olhar para mim – Aliás, o que você tem a ver com isso, Cecília?
A vergonha na cara, o respeito e o medo de me revelar desapareceram. Eu não ligava para mais nada. A mágoa e a raiva que eu sentia queriam explodir e atingir quem estivesse ao meu redor. Eu não seria a única a sair ferida ali.
– Há! Isso é engraçado. Ela me confundiu com o Michel por quase dois meses, não é uma piada? Parece que a retardada finalmente percebeu que eu não tenho um pênis. – debochei.
– Mas o que você está dizendo?... – mamãe indagou, temerosa.
Michel estava agitado ao meu lado. Talvez quisesse me preservar, manter o meu segredo, mas eu não queria aceitar aquela defesa. Não queria ser acobertada por ele.
– Estou dizendo que ela era minha namorada, mãe!
– Como assim...?
– Eu sou bissexual, entendeu agora? Mas relaxa, que eu e aquela garota acabamos de terminar porque, na verdade, ela só queria o Michel. Viu como ela saiu apavorada daqui com medo de morrer? Eu quase virei uma assassina. – falei com escárnio.
Minha mãe emudeceu. Provavelmente, nem sabia o que dizer depois de tanto desgosto gratuito. Meu irmão foi até ela para controlar qualquer reação extrema, e aproveitei a brecha para me trancar no quarto.
Minha voz não havia falhado em momento algum, mas vi que minhas mãos ainda tremiam. Não sabia o que sentir depois de tudo que acontecera. Meu coração, que já fervia de ira, se rasgava mais a cada palavra minha que retornava à memória. Eu queria esquecer aquele dia, queria esquecer qualquer coisa que existia fora dali. Queria sair daquela realidade, fugir daquela dor.
Acho que eu tinha apagado quando, à noite, ouvi meu pai esmurrando a porta. Ainda estava meio grogue por ter fumado demais algo que tinha conseguido com o Tadeu, então demorei um pouco para atender.
Aconteceu muito rápido. Lembro de ter sido puxada com violência do quarto para a sala e, então, jogada no sofá. Minha cabeça latejava, e só com muito custo eu entendia o que aqueles berros queriam dizer.
“Não acredito...”
“Que vergonha de você...”
“Para, pai!”
“Tá me escutando, Cecília?!”
Sei que gritei de volta, mandando todo mundo calar a boca. Mas acho que falei mais outras coisas e chamei alguns palavrões, porque levei um tapa tão forte que a armação dos meus óculos entortou e me feriu no canto do olho direito. Fiquei tão irada que atirei o abajur que estava ao lado do sofá nos pés do meu pai antes de sair correndo para me trancar de novo, sem me importar com os cacos que feriram minhas pernas. Gritei e chorei até ficar exausta e apagar de vez.
Não fui mais para a escola naquela semana e ignorava totalmente minha família me chamando do outro lado da porta. Não queria olhar na cara de ninguém. Recebia algumas ligações de colegas de classe, mas sempre as rejeitava. Se eu fazia uma refeição por dia já era muito. Ficava enjoada e ao mesmo tempo tomada de ódio só por lembrar o motivo de eu estar tão deprimida.
Ter sido usada como substituta só porque era parecida com meu irmão era ridículo. Comecei a pensar que a culpa era dele por não ter me contado que já tinha namorado aquela maluca.
No sábado, assim que anoiteceu, Tadeu me mandou uma mensagem.
“Tá viva? Quer conversar?”
Eu não tinha contado nada, mas ele já devia saber um mínimo.
“Tá de brincadeira, né?” respondi.
“Então quer sair? Sei lá... Pirar um pouco?”
Eu sabia o que “pirar” queria dizer, e aquilo não ia me fazer bem.
“Ok”
Mas eu não queria ficar bem.
Fugi de casa, e ele me levou a outra festinha com gente errada. Bebi até ficar “alegrinha” e comecei a dançar.
A música alta, o ambiente mal iluminado, o cheiro forte das bebidas e dos cigarros acesos: tudo ali me fazia perder a noção das coisas, de onde eu estava e até de quem eu era. Senti Tadeu colar seu peito às minhas costas e envolver minha cintura com os braços para dançarmos juntos. Quando dei por mim, já estávamos nos agarrando sem pudor algum num canto da sala, assim como vários outros casais, e acabamos transando por ali mesmo.
– Você colocou alguma coisa na minha bebida, não foi? – perguntei, gemendo alto. Quase não escutava minha própria voz.
– Não. Na verdade, coloquei na minha. – gargalhou e continuou metendo fundo.
Acordei sabe Deus que horas no outro dia, e com uma dor de cabeça que não sabia que era capaz de sentir e continuar vivendo. Tadeu dormia ao meu lado no sofá, com a cabeça apoiada em meu ombro, mas, mesmo lembrando em flashes o que havia acontecido entre nós, não me senti constrangida. Na verdade, depois de perceber que meu peito já não apertava tanto, senti até certa gratidão.
Um pouco mais tarde, enquanto as pessoas que também dormiram ali iam embora, percebi que conhecia aquele apartamento: era do Vitor, meu ex do início do ano, que estava sozinho porque o pai, divorciado, havia viajado a trabalho.
– Vamos, Cecília. – Tadeu me chamou para irmos embora.
– Eu... Não quero ir pra casa. Ainda não...
– Não precisa ir agora se não quiser. – Vitor disse, segurando meu queixo para olhar para ele – Meu pai só volta quinta ou sexta, então vamos poder... Quero dizer, você vai poder ficar bem à vontade.
– Acho melhor nã... – Tadeu ia interferir, mas foi interrompido.
– O que você acha, Cecília?
Não precisei pensar muito. Eu sabia o que “ficar à vontade” significava.
– Aceito. Obrigada. – respondi, ignorando Tadeu, que prendia os lábios, apreensivo.
Mandei uma mensagem para o Michel avisando que estava viva e que pretendia continuar, só para que não chamassem a polícia, e passei a semana seguinte desaparecida. Na sexta à noite, fui para a casa do Tadeu. Só voltei ao “lar” no domingo, umas 21h da noite, com o cabelo mais curto e repicado e a língua mais afiada.
Comecei a sair com quem me desse na telha, mas nunca para namorar – tinha percebido que só assim dava certo para mim. Desde gente da festa, colegiais que não fossem da minha escola, até pessoas um pouco mais velhas. A adrenalina e o prazer se tornaram sedativos que me faziam esquecer a dor e a humilhação que havia passado. Me isolava na escola e matava muitas aulas, além de estar pouco me importando com as provas.
Antes que eu me desse conta, já não havia como eu ser aprovada naquele ano.
– Você já não tinha me envergonhado o bastante, não é, sua piranha inconsequente? – meu pai rosnou e jogou a pasta com meu boletim e outros documentos em mim.
– Aconteceu. Não posso fazer nada. – respondi friamente.
– Eu devia te dar uma surra, Cecília, pra ver se você se emenda. – ameaçou.
– Isso não me faria te respeitar mais. – Encarei minhas unhas, percebendo o quão nervoso ele estava. – Não quer tentar outra coisa? Me transferir, por exemplo?
Sua mão tremia ansiosa para me acertar. Ele não devia estar acreditando naquela minha afronta, mas acabou concordando.
Mudei de escola, mas não entrei nos eixos. Continuei saindo bastante à noite, fugindo das brigas, sumindo de casa e matando algumas aulas. Também evitava me envolver com os colegas e com gente que por acaso conhecesse o Michel e acabasse nos comparando. Odiava aquilo. Ficava agressiva, como se um uma arma fosse apontada contra mim toda vez que mencionavam nossa semelhança. Não foram poucas as vezes em que me chamaram de louca.
Por outro lado, por estar fazendo a 8ª série pela segunda vez, eu já tinha muita matéria adiantada, então adquiri total controle sobre minhas avaliações. Eu chegava a escolher que notas viriam no boletim e passei a usar isso como provocação contra meus pais: fiquei de recuperação de propósito só para tirar a nota máxima na prova final e jogar na cara deles. Eu continuava livre para sair quando quisesse e minhas notas saiam como eu bem entendesse.
Em fevereiro do outro ano, com 16 anos e o cabelo recém pintado de vermelho cereja, fui a uma pequena reunião (que não era uma festinha com gente errada!) e lá conheci o Giovanne. Conversamos sobre várias coisas, e ele acabou desabafando sobre seu ex-namorado. Resumindo: o cara disse que era melhor manter o relacionamento em segredo e aproveitava para sair com outras pessoas. Fez ele de brinquedinho. No fim, depois de descobrir as traições, o coitado acabou levando um pé na bunda sem dó nem piedade.
Concluí que o “Sr. Pegador” só queria comer o Giovanne porque ele era muito fofinho e inexperiente.
– Ouvir isso não ajuda muito, sabe?... – ele falou amargamente, quase chorando.
– Você ainda está se recuperando, mas isso vai passar. Confia em mim, que eu sei como é. Você só precisa se distrair, parar de pensar nisso. – encorajei. E foi quando percebi que, mesmo tentando ajudar, na verdade eu não sentia nada. Não entendia mais aquele sentimento mais profundo que o tesão de uma boa transa. A ferida no meu coração havia se tornado uma cicatriz grossa, rígida e dormente.
Trocamos mensagens até meados de abril e, então nos afastamos. Talvez ele tenha começado a usar o mesmo “sedativo” que eu e ficou sem tempo para mim. Ok, a vida que segue.
Pouco depois, arranjei uma identidade falsa, e a faixa etária das minhas companhias aumentou mais um pouco. Cheguei a ir para a cama com um cara de uns 27 anos, que era muito gostoso por sinal. Alguns começaram a me dar presente, e reconheci na hora que estava meio que me prostituindo. Eu nunca pedia nada em troca quando queria sexo, mas também não era besta de recusar.
Tinha sido transferida pela segunda vez, agora junto com o Michel, e continuava pouco simpática com meus colegas. Achei engraçado quando ouvi boatos de que eu era drogada, pois, desde a metade da “segunda 8ª série” que eu não mexia mais com isso – Tadeu tinha parado de comprar e me fornecer, e também não fui atrás. Mesmo assim, meus pais foram chamados pela orientadora.
A conversa não rendeu muito, já que eu não me comportava mal, não existiam provas ou testemunhas contra mim e minhas notas estavam na média. O único ponto negativo era a minha convivência com os demais alunos, pois eu tinha o costume de retrucar as provocações com grosserias bem... “Impróprias”. Nada relevante.
Naquele ano, eu tirei 10,0 pts de novo na recuperação final.
– Parabéns pela filha que vocês têm. – declarei com ironia.
Meu pai apenas deu uma risada meio debochada e bagunçou meu cabelo. Naquele tempo, a relação já tinha deixado de ser agressiva. Passamos a ter conversas curtas e superficiais no lugar de discussões barulhentas. A frequência das minhas fugas também havia caído. Voltei a falar com o Michel aos poucos, mas não como antes, pois já não conseguia mais vê-lo como um confidente.
Eu não queria um confidente, nem piedade, nem intimidade...
***
O que eu quero afinal?... pensei, virando o quarto ou quinto copo de vodka com soda.
– Assim você vai ficar mais azeda ainda. – Tadeu disse, me abraçando por trás – Tá bebendo muito, hein, Cecília?
– E desde quando eu não bebo muito? – retruquei enquanto cheirava o limão no fundo do copo.
– Hmm... Aconteceu alguma coisa?
– Não... – menti, me amaldiçoando por minha voz ter afinado.
– Tem certeza? – ele perguntou e mordiscou minha orelha.
– Eu não quero contar pra você, ok? – respondi emburrada, dando um empurrão para afastá-lo – Me deixa em paz, que hoje não vai rolar nada.
– Nossa, o que foi isso? Não era você que ficava toda animadinha depois de tomar umas? Então não vai rolar nem comigo? Quando foi que você virou beata, que não lembro agora?
Dei uma gargalhada e, em seguida, um selinho nele. Aquele garoto era impossível.
– Ai, ai... Não sei por que ainda saio contigo.
– É porque você me ama, mas eu sou muito difícil.
Agora gargalhei fazendo jus à minha condição de bêbada. Se tinha uma palavra que não definia o Tadeu era “difícil”. Aquele cara, que era a pessoa mais próxima que eu tinha de um amigo, era tanto um palhaço hilário quanto uma peste insuportável, mas eu gostava de tê-lo comigo.
Meu celular tocou e quase caiu da minha mão quando fui atender, mas era só uma mensagem. E logo de quem?... Já passava de 1h da manhã.
“Você está bem?”
Guardei o celular e pedi mais um copo.
– Hmm... Quem era?
– Não me enche, Tadeu!
– Algo me diz que era a pessoa a quem você dedica essa bebedeira.
– Cala essa boca... – sibilei, tentando me manter calma, mas estava muito difícil.
– Então é isso mesmo? Você não me ama mais? Acho que fiquei magoado. – ironizou, muito irritante – Quem você ama agora, Cecília? – perguntou e arrancou o copo da minha mão.
– Ninguém, droga! Não exagera! Era só uma garota com quem eu fiquei! – respondi nervosa, tomando o copo de volta.
– Ai, que fofo... E ela roubou seu coração?
– Tadeu, por que não vai chupar alguém em algum canto e me deixa aqui, sozinha? Quem sabe assim seus dentes continuem no lugar.
– Ah, partiu pra ameaça? Que seja, me dá isso aqui!
Travamos uma pequena batalha enquanto ele tentava tirar o celular do meu bolso. O desgraçado estava mais sóbrio que eu e conseguiu.
– Ladrão de merda!
– Shiu! Olha a boca, menina! – Tadeu me repreendeu e destravou a tela – Vejamos... Caixa de entrada... Bianca?
– É do colégio. Você não conhece.
– Realmente, não conheci muitas “Biancas”. A última foi uma loirinha muito fofa que conheci no fim de outubro, quando ainda estava com o Giovanne. Mas ela estava com o seu irmão, se não me engano.
– Sim, é ela! Tá satisfeito, porcaria?! Devolve meu celular! – berrei, guardando o aparelho e virando o sexto copo – Ah, quer saber? Tchau! Eu queria espairecer, mas você ferrou com tudo!
Paguei minha conta e saí andando meio sem rumo, mas Tadeu me segurou.
– Espera, eu vou com você. Tinha um cara de olho em mim, mas acho que ele só queria minha carteira.
– E o que eu tenho a ver com isso? Me solta! – Tentei puxar meu braço.
– Para com isso. Eu te levo. – ele disse e me puxou de volta.
– De moto? Jura? Não, obrigada.
– Não bebi tanto assim. Vem logo!
Aquele “vai e vem” acabou me fazendo vomitar, e tive que sair de lá praticamente carregada. Depois de lavar a boca, aceitei a tal carona ao mesmo tempo em que xingava o Tadeu de tudo que conseguia lembrar. Fiquei meio tonta por andar de moto, então quase não consegui me manter em pé quando chegamos ao meu prédio.
Vi quando saímos do elevador. Tadeu pegou a chave no meu bolso e entrou comigo no apartamento. Eu já estava meio apagada quando ouvi aquela conversinha sussurrada de novo.
Era raro eu voltar para casa depois de um porre. Normalmente eu passaria a noite fora com alguém, e nem estaria tão bêbada. Mas sempre que eu dormia em casa, sonhava com uma fada verde – que associava à fada do absinto, de Moulin Rouge.
Acordei com uma ressaca que fazia tempo que não sentia. Era uma mistura de remorso, cansaço, álcool e limão, mas não foi isso que fez meu pouco ânimo piorar.
Uma mensagem que recebi às 10h21 fez meu estômago querer devolver o pouco que eu havia comido no café da manhã.
Era uma foto. Uma foto minha com a Bianca na festa de formatura.
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