Insisto que devemos pagar o que comemos, mas Harry não aceita. Insisto que eu devo pagar o que comi, mas sou ignorado tanto por Harry quanto por Anne, que somente diz "apareça lá em casa para o jantar".
Saímos da lanchonete, e somos recebido pelo quentinho do sol. Quando me dou conta, Harry já está lá na frente, passando do seu carro.
Fico confuso. Pensei que fossemos para a casa dele, mas Harry atravessa a rua dando uma corrida e para de frente para um trailer, do outro lado da rua.
Ignoro minha consciência que me manda ficar exatamente onde estou e deixar Harry resolver seus assuntos e vou atrás dele. Atravesso a rua o mais rápido que consigo.
Harry está batendo na porta do trailer, irritado, e não sei o que fazer. Não sei o que ele está tentando fazer.
Seu merda! - Sua voz rouca sai mais alta, e ele alterna entre bater com os punhos e chutar com o pé.
Após alguns segundos assim, percebo que o trailer está, provavelmente, vazio, e que Harry está xingando o nada.
Harry, o trailer está vazio. - Minha voz sai mais baixa do que gostaria, e me sinto patético quando Harry vira seu olhar para mim, ameassador e imponente.
Harry parece parar para pensar, então simplesmente suspira.
Preciso da chave do trailer. - Ele passa as mãos nervosamento pelo cabelo, e noto que é um tique nervoso.
Não sei porque Harry quer a chave do trailer de um cara que, aparentemente, ele não gosta. Mas parte de mim acredita que seria mais seguro não perguntar.
Ele não está lá dentro? - Sei que provavelmente estou sendo idiota, mas mesmo assim aponto para a lanchonete de onde acabamos de sair. Se Harry não gosta do cara, imagino que ele deve ser um dos bêbados que estava lá.
Não sei.
Ele não era um dos bêbados? - Harry fica confuso, passando as mãos pelo cabelos pela décima vez no último segundo.
Não reparei nisso, Louis. Estava ocupado olhando para você. - O modo como ele fala, olhando nervosamente para os lados como se estivesse procurando o dono do trailer, mostra que ele não se importa por ter falado isso bem na minha frente.
Lembro de uma versão diferente do que aconteceu lá dentro, Harry sentado olhando para o seu isqueiro e eu me sentindo mal.
Mesmo assim me sinto nervoso, suando e passando as mãos pela calça. Harry disse que estava olhando para mim. E não sei como me sinto sobre isso.
Vamos lá dentro.
Harry atravessa a rua antes que eu possa o deter. Harry está de cabeça cheia, e tenho medo do que ele pode fazer por estar assim.
Diferente do que penso, Harry entra e senta na mesma mesa na janela. Sento de frente para ele, esperando que ele faça algo, mas ele permanece em silêncio.
O de barba. - Harry murmura, olhando através da janela. Demoro alguns segundos para entender que está falando de um dos bêbados sentado no balcão.
O homem tem o cabelo mal cortado e barba grosssa. Veste um colete verde musgo com o logotipo do trailer e uma calça jeans rasgada nos joelhos. Parece que não come a muito tempo, pelo jeito como está apressado.
Vejo, ao lado do seu prato, a chave. Tem um chaveiro com o logotipo do colete e do trailer. Antes que Harry me conte seu plano, sei o que tenho que fazer.
Tenho que te contar uma coisa. - Murmuro.
Harry me observa vagarosamente, arqueando a sobrancelha.
Se me pedir desculpas de novo, juro que te mato. - Ele aponta o dedo para mim, bem sério, e por um momento fico com medo.
Não é isso. É que eu… Eu posso voltar no tempo. - Murmuro, me inclinando sob a mesa, como se estivesse contando um segredo de estado.
Espero pacienciosamente até que Harry entenda o que eu disse. Ele arqueia a sobrancelha novamente, e abre um sorriso sarcástico.
É mesmo? - Ele debocha.
Não sei o que me fez pensar que ele acreditaria no que eu disse. Não nos vemos há anos, e de repente eu digo que posso voltar no tempo.
Estou sendo patético mais uma vez.
É mesmo.
Ótimo, então prove. - Ele se recosta na cadeira, com o mesmo sorriso debochado.
Como vou provar para Harry que eu falei a verdade? Como vou provar que posso voltar no tempo? Isso é ridículo.
Quase desisto de provar para ele que, realmente, posso voltar no tempo.
Me mostre o que você tem nos bolsos.
Claro, gênio. - Ele revira os olhos, mas puxa o celular, chaves e o isqueiro dos bolsos da calça e os coloca em cima da mesa.
Estendo a mão e fecho os olhos, tenho que respirar fundo para me concentrar, porque sei que Harry está me observando como se eu fosse louco.
A pressão aparece, e sei que funcionou. Tudo rodando, a pressão, a dor, o zumbido, o silêncio. Abro os olhos somente para ver um Harry rodando, mas parado e sério, quase incrédulo, me olhando.
Tudo para, e respiro fundo quando noto que que consegui. Voltei no tempo de novo.
Ouço o barulho da conversa do policial com o outro bêbado, e vejo o bêbado de colete verde comendo.
Se me pedir desculpas de novo, juro que te mato.
Harry está apontando para mim, bem sério, como há minutos atrás.
Eu posso voltar no tempo.
É mesmo? - Ele está debochando.
Posso dizer o que você tem nos bolsos. - Arqueio a sobrancelha, apontando para sua calça preta.
Claro, gênio. - Ele revira os olhos, mas ao invés de mostrar o que tem nos bolsos, cruza os braços.
Você tem um isqueiro prata, um Iphone 5 e as chaves do carro. - Estou bem convicto de que isso pode convencer Harry.
Nossa, estou impressionado. - Ele levanta as mãos. - Você viu o isqueiro e as chaves, gênio. E tudo mundo tem a porra de um Iphone. - Harry revira os olhos novamente, e torna a olhar para a janela.
Merda. Isso não saiu como o planejado. Preciso pensar melhor. Harry precisa acreditar em mim.
Pensa em um número e em uma palavra. - Harry bufa, e me olha quase com desprezo e impaciência.
Espero até que Harry me diga, mas ele fica apenas me encarando com as sobrancelhas arqueadas.
O que? Não vai adivinhar?
Eu disse que posso voltar no tempo, não que sou vidente. - Harry bufa e mostro o dedo do meio para mim.
Vinte e oito. Palavra.
Não falo nada sobre o número vinte e oito, nem sobre a palavra ser palavra. Harry me dá nos nervos, acabei de descobrir isso.
Estendo a mão e respiro fundo, fechando bem os olhos. Penso que não vai funcionar, mas, de repente, a sensação já familiar começa.
Enquanto tudo roda, aproveito para abrir os olhos e ver Harry parado me encarando. Tenho que fazê-lo acreditar em mim.
Ouço o mesmo barulho de talheres, copos e conversas. Abro os olhos e Harry está me olhando
Claro, gênio. - Harry está revirando os olhos e cruzando os braços.
Você tem um isqueiro prata, um Iphone 5 e as chaves do carro. - Harry começa a levantar as mãos. - Sei que você vai dizer que vi o isqueiro prata e as chaves do seu carro, e também sei que todo mundo tem um Iphone 5.
Harry semicerra os olhos, me observando atentamente. Reprimo um sorriso quando ele tira seus pertences dos bolsos.
Isso não prova nada. Você sabe disso. - Ele aponta para mim, ameassadoramente, se debruçando sob a mesa.
Sei. Por isso pedi para você me dizer um número e uma palavra. - Arqueio a sobrancelha de volta. - Pense.
Tanto faz. - Ele revira os olhos e dá de ombros. - Ok. Diga.
Vinte e oito. Palavra.
Harry arqueia as sobrancelhas e semicerra os olhos, se debruçando ainda mais sob a mesa. De repente engolir a saliva fica difícil, com Harry me encarando desse jeito.
Que porra é essa? - Ele diz entredentes, irritado.
Eu disse que posso…
O que você acabou de fazer? Voltou no tempo para saber o que eu ia responder?
Sim. - Assinto várias vezes consecutivas.
Não sei como você fez essa merda, mas preciso que você me arranje a chave daquele cara. - Harry aponta para o mesmo bêbado.
Não sei o que fazer. Como vou conseguir a chave?
Pensa, Louis. Pensa.
Você tem que discutir com ele.
Beleza. - Harry, para a minha surpresa, topa na hora.
Eu pego a chave. Ou você pode tocá-la para cá. - Harry assente, se levantando devagar.
Observo enquanto ele levanta e caminha até o bêbado, empurrando o prato de comida em cima dele.
Fico boquiaberto, e o homem também, encarando Harry com raiva. Muita raiva.
Seu merda! Você não sabe com quem está se metendo! - Ele se levanta, olhando para o prato quebrado no chão e a comida derramada. - Vou acabar com você seu pirralho! - Ele segura Harry pela camisa, puxando-o para si.
Harry aproveita e pega a chave, mas o homem vê, e empurra Harry. Puxa a mão para trás e, quando está prestes a acertar Harry, a chave cai aos meus pés. Pego-a rapidamente, sabendo que, se ela estiver comigo, quando voltar no tempo ela continuará comigo.
Guardo-a no meu bolso e olho para Harry e o homem trocando socos sob a bancada.
Estendo a mão, fecho os olhos e puxo todo ar que consigo. O barulho da troca de socos para, inclusive o policial que estava prestes a puxar sua arma da calça, e a mãe de Harry boquiaberta atrás do balcão.
Tudo gira na minha frente, e tenho que me concentrar para não ficar enjoado ou cair no chão.
Não sei como você fez essa merda, mas preciso que você me arranje a chave daquele cara. - Harry está apontando para o bêbado que continua comendo em silêncio.
Suspiro, sabendo que, se não tivesse conseguido, Harry poderia ser preso.
Boto a mão no bolso da minha calça e puxo a chave, o chaveiro com o logotipo já conhecido está lá. Coloco-a sobre a mesa e solto um suspiro.
Como você…? - Harry está com os olhos arregalados. Me observando atentamente. - Você…?
É. Voltei no tempo. - Admito, meio catatônico pelo zumbido na minha cabeça.
Isso é… Isso é incrível. - Harry pega a chave e a coloca no bolso da calça junto das suas outras coisas. - Vamos antes que ele termine de comer.
Levantamos ao mesmo tempo e saímos rapidamente da lanchonete.
Não acredito que vou mesmo entrar no trailer daquele cara. Não acredito que ajudei Harry a entrar no trailer daquele cara. Não sei qual a relação do Harry com aquele homem, mas parte de mim, a mais egoísta, prefere não saber.
Atravessamos a rua, Harry correndo até o trailer, e abrindo a porta. Entro logo em seguida.
O trailer é pequeno e apertado, mas a bagunça o deixa menor ainda. Há roupas sujas por toda parte, misturadas com sapatos e ferramentas.
O cheiro é horrível. Aparentemente roupas usadas, chulé e restos de comida não são uma boa mistura.
Harry está vasculhando o trailer, pisando em cima de qualquer coisa, enquanto eu ainda estou na porta, boquiaberto.
O que você está procurando? - Pergunto, incisivo.
Não sei, mas vou saber quando encontrar. - É vago, e não sei se entendo, mas resolvo ajudar.
Crio coragem para pisar em cima de toda aquela sujeira, e tapo o nariz enquanto avanço. Abro toda gaveta que encontro, assim como Harry, e reviro uma pilha de roupas enorme.
Desgraçado. - Harry murmura, irritadiço, e torno a olhá-lo. Ele está encarando uma gaveta jogada no chão, cheia de papéis.
Me aproximo devagar, com medo de afastar Harry, e consigo notar um padrão em todos os papéis. O nome do remetente é o mesmo.
Rachel Louise. E as cartas são de dias alternados, em um espaço de três meses.
Rapidamente me lembro do cartaz que vi no campus no início das aulas. O rosto de uma jovem morena, de cabelos negros e olhos castanhas, sorrindo, estava neles. É a garota que estudava belas artes no ano interior e desapareceu há mais de seis meses. Com certeza foi um dos maiores acontecimentos de Windsor & Eton em, pelo menos, uns trinta anos.
Percebo que Harry está vermelho, bufando, o nariz inflando e os dentes cerrados. Está com as mãos fechadas em punhos, tremendo de raiva.
Minha cabeça está girando. Harry conhece Rachel? A garota que está desaparecida há meses?
Tenho que controlar meus pensamentos para não pensar besteira, como, o que Harry tem haver com Rachel?
Harry pega as cartas, e lê uma por uma, não sei o que está escrito, mas em muitas delas posso ver corações flutuando, então tenho uma noção.
Não conhecia Rachel, mas não consigo acreditar que ela estivesse envolvida romanticamente com o bêbado. Que tipo de pessoa ficaria com aquele homem? Aparentemente Rachel, pela expressão de raiva e nojo de Harry.
Minha mente devaneia, e acabo me perguntando se Harry e Rachel eram namorados, ficantes ou amigos. De qualquer forma, não sei se estou pronto para a resposta.
Acho que já estamos tempo demais aqui. - Murmuro cautelosamente, olhando para a porta aberta do trailer.
Tenho me de que, se demorarmos demais, o homem venha até aqui e nos pegue no flagra. Ele não parecia a pessoa mais amigável do mundo.
Como Harry sequer me olha, continuo procurando algo que possa ser importante. Vasculho umas sacolas, mas só há lixo.
Estou chutando algumas roupas sujas e manchadas quando encontro uma caixa, é pequena e velha, mas mesmo assim pego.
É rosa com listras brancas e há um top amassado em cima. Não combina com o estilo do dono do trailer, por isso fico intrigado. A abro, e lá está uma pequena pulseira colorida, cheia de pingentes pratas.
Harry? - Chamo-o, balançando a pulseira no ar.
Pelas feições de Harry, percebo que devia ser de Rachel, e que ela devia ter dado de presente para o barbudo.
Me dá. - Mas ele pega da minha mão antes que eu possa dar, e a guarda rapidamente no bolso.
Harry procura na gaveta de baixo, e há uma camisa preta dentro, com alguma coisa no meio. Harry pega e tira a camisa.
Uma arma. Parecida com a que Will usará em Harry mais cedo. Se antes eu tinha medo do barbudo, agora tenho ainda mais.
Ele guarda a merda de uma arma, e tenho medo de saber o porque.
Harry guarda a arma na parte da frente da calça, de forma que ela fica pressionando sua barriga. Quando ele abaixa a blusa, ela some.
Quero perguntar porque ele ficou com a arma, mas tenho medo.
No entanto, antes que possa pensar em mais alguma coisa ou alertar Harry, ouço passos rápidos.
O bêbado barbudo entra correndo no trailer, irritadiço, e se vira para Harry.
Seu filho da puta! - E parte para cima de Harry, praticamente se joga em cima dele.
Harry está no chão e recebe dois socos, um na maçã do rosto e outro no queixo. Quero gritar e fazer algo, mas estou paralisado, com os pés presos no chao.
O que você fez com a Rachel? Hã? - Harry inverte, ficando por cima do barbudo, despejando socos na cara dele.
Eu não fiz nada! - Ele acerta outro soco no queixo de Harry, e Harry cambaleia para tras, caindo de costas no chão.
O barbudo fica de pé rapidamente e procura a arma na mesma gaveta que Harry a pegou, mas não acha, e a jogo longe. Pega um taco de baseball e caminha na direção de Harry.
Fico boquiaberto e alarmado. Ele vai matar o Harry se eu não reagir. Vai matá-lo, sei disso.
Harry está tonto no chão, resmugando alguma coisa, e quando o taco aparece na sua visão, perto demais do seu rosto, ele tenta se proteger com a mão.
Quando me dou conta, já estou estendendo o braço e fechando os olhos.
Tudo para e gira. Harry está com a mão na frente do rosto, meio tonto no chão, impossibilitado de reagir e se proteger, e o taco está a cinco centimetros da sua mão.
Como se o tempo rebobinasse e voltasse para quando o barbudo entra, tudo volta ao normal.
Respiro fundo, vendo Harry guardando a arma.
Ele está vindo. - Aviso rapidamente.
Harry me olha e olha para a porta no exato momento que o bêbado passa por ela, irado, e caminha em sua direção.
Seu filho da puta! - Ele pisa duro, pronto para acertar Harry.
O que você fez com a Rachel? Hã? - Harry pergunta, colocando a mão embaixo da camisa.
Eu não fiz nada! - Ele grita, pronto para partir para cima de Harry.
Você a matou? Sumiu com ela? - Harry está com a arma na mão, apontando vagarosamente para o homem. Ele sorri, cheio de raiva e maldade.
Eu nunca faria isso com a Rachel, eu a amava! - Ele berra, batendo com a mão no peito, nada intimidado com a arma.
Você só ama a si mesmo! - Harry está descontrolado, consigo ver isso.
Está tremendo, a arma balançando na sua mão. O barbudo ameaça pegar a arma, e Harry recua.
Juro que vou te amar!
Você não teria coragem de me matar!
Harry da aquele sorriso que me deixa com medo, ameassador e sarcástico.
Ele aperta o gatilho e, antes que eu possa gritar para que pare, a bala já acertou o peito do homem.
Estendo a mão, tentando não entrar em pânico, e fecho os olhos.
Tudo para e volta. Silêncio. Harry.
Abro os olhos e Harry está terminando de guardar a arma na calça.
Tenho que pensar rápido. Tenho que pensar bem rápido ou algo muito ruim vai acontecer. Voltei duas vezes no tempo, na primeira Harry quase morreu e na segunda o barbudo quase morreu.
Não quero que ninguém morra, ninguém merece morrer dessa forma. Preciso fazer algo para impedir.
Dessa vez não falo nada, apenas caminho até o taco de baseball e o pego. Sinto o olhar de Harry sob mim, mas não falo nada, apenas seguro-o da forma certa, perto da porta e espero.
O barbudo entra, com a mesma pose e semblante, e para ao me ver na defensiva.
Seu filho da puta! - Ele olha para Harry e dá o primeiro passo.
Antes que ele dê o segundo, puxo o taco para trás e para frente, acertando sua cabeça em cheio. Ele cai na hora, e parece ter morrido.
Largo o taco e me abaixo, ignorando toda a sujeira, e me aproximo o suficiente para ter certeza de que ele ainda está vivo. Está respirando, e consigo respirar fundo de alívio.
O que foi isso? - Harry está incrédulo, parado me olhando.
Acredite em mim, foi a melhor decisão. - Minha respiração está irregular quando levanto do chão.
A adrenalina está passando, mas ainda sinto o sangue pulsando.
Harry, pela primeira vez, fica calado. Me observa minuciosamente, mas não fala nada.
Acho melhor irmos. - Ele fala baixo, com a voz bem rouca.
Saímos do trailer e jogamos a chave para dentro.
Caminhamos até o outro lado da rua, onde sua picape está estacionada, e entramos.
Harry liga o rádio numa estação alternativa e ficamos em silêncio.
Salvei a vida de Harry pela segunda vez no mesmo dia, e ele não tem ideia. Ninguém sequer imagina. Na verdade, eu mal acredito que consigo voltar no tempo. Preciso pesquisar sobre isso, me inteirar sobre o assunto.
Você e a Rachel eram amigos? - Quando me dou conta já estou perguntando. Estou curioso sobre muitas coisas a respeito de Harry, mas Rachel não sai da minha cabeça.
Sim. - Ele responde prontamente. Os olhos vidrados na estrada e as mãos tensas no volante. - Ela era a minha melhor amiga. A única que eu tinha, na verdade.
Meu peito dói e se aperta. Culpa. Conheço bem esse sentimento agora, aqui, perto de Harry. Não consigo parar de pensar em como sou idiota. Parte de mim sente ciume, quase inveja de Rachel, mas afundo e afasto esse pensamento.
Ela e aquele cara…
Sei tanto quanto você sobre os dois. Richard sempre foi um merda drogado, não sei o que Rachel viu nele. - Ele fica mais tenso, e fala com mais raiva. Me encolho no meu assento.
Ele vende drogas?
Richard tem cara de traficante, mas meu coração se aperta quando lembro de Harry no banheiro da faculdade, morto por Will. Harry está devendo dois mil euros para Will, mas não sei porque. Há algo nessa história que não se encaixa, algo que eu não sei. Harry conhece Will e Richard bem, e isso me deixa surpreendentemente preocupado e angustiado.
Vende. - Harry tem o cenho franzido, curioso. - Rachel e eu usávamos às vezes. Um pouco - Ele completa.
Meu peito afunda, dolorido. Harry está pior do que imaginei. Ele usa drogas agora. Está acabando com a sua própria vida aos poucos, mas não parece preocupado. Mal consigo ver alguma semelhança entre esse Harry e o meu Harry.
Quero dar um sermão nele, mas sei que não tenho o direito. Sumi da sua vida por vontade própria, praticamente o obriguei a cair nas drogas e se afundar, sem ninguém para ajudá-lo e ficar do seu lado.
Will também vende?
Vendia para mim, antes de eu ser expulso. Não apareço na W&E College há meses, por isso ele reagiu daquele jeito.
Porque você faz isso? - Minha voz sai fraca e baixa. Não devia estar me metendo tanto, fazendo tantas perguntas.
O pouco que sei desse Harry se resume em seu temperamente estranho e sua escuridão pessoal.
Porque você se importa? - Sua voz rouca e grave, mas baixa e irritadiça, me machuca. Machuca porque eu ainda me importo.
Sei o que ele está fazendo. Está bravo com o mundo, irritado com tudo e com todo mundo, e acaba descontando em si mesmo. Ele devia saber que isso não leva a lugar nenhum. Olha só como ele está agora.
Pode parecer que não, mas eu me importo.
Você não sabe de nada, Louis. Nada. - Ele esbraveja. - Você não sabe a merda que a minha vida é, então não fique tirando opiniões precipitadas.
Fico em silêncio, porque sei que já perdi a discussão. Não tenho argumentos contra Harry. Abandonei-o quando ele mais precisou, e agora ele virou isso. A culpa é minha também. Boa parte dela. Mas há coisas na vida que simplesmente não se pode mudar. Não posso voltar no tempo e mudar o passado.
-X-
A casa de Harry continua a mesma, exatamente como eu me lembrava. A tinta amarela clara está desbotada e descascada e o mesmo vaso que eu e Harry quebramos esta ao lado, remendado.
Descemos do carro, e espero Harry caminhar na frente e abrir a porta. A janela quebrada está do mesmo jeito também, remendada com fita adesiva. Nada mudou por aqui, e me sinto mais nostálgico do que nunca. Ficava aqui tanto quanto na casa dos meus avós. Harry era a minha segunda famíllia, o irmão que nunca tive. Parte de mim, a sonhadora, espera que, assim que a porta se abra, o Harry que eu conhecia surja com seus cachos e olhos verdes dóceis.
Harry entra primeiro e, como o esperado, segue direito para seu quarto. A pequena sala de estar tem os mesmo móveis, assim como a cozinha e a sala de jantar. Nada mudou por aqui. Reconheço cada canto dessa casa onde eu e Harry brincávamos e ríamos. Tia Anne fazia panquecas com ovos nos cafés da manhã aos domingos, e Robyn brincava e fazia piadas sobre as habilidades culinárias de sua esposa.
Subo a escada branca e descascada rapidamente. O quarto de Harry é o primeiro, logo de frente para a escada, e a porta está entreaberta. Onde antes haviam nossas palmas das mãos desenhas com tintas azuis e verdes, agora há um adesivo "não pertube" em vermelho.
Abro a porta devagar e entro. Lembro do trailer de Richard quando vejo as roupas espalhadas, limpas e sujas, e caixas de pizzas com garrafas de cervejas.
Harry agora tem uma cama de casal, completamente bagunçada, de ferro, também descascada. Há travesseiros nos chãos com cobertores e lençóis.
A janela, ao lado da cama, está sendo aberta por Harry, revelando o sol. Em cima da antiga escrivaninha há um computador moderno e uma caixa de som portátil. As fotos que Harry falou estão lá, atrás do computador. Um mural cheio de fotos dos seus momentos mais importantes está lá, e eu estou na maioria das fotos. Na época feliz da vida de Harry. Noto que poucas fotos são atuais, a maioria são da época em que eu morava aqui em W&E.
Me aproximo para vê-las melhor. Há uma selfie de Harry, mal consigo ver seu rosto, está tudo escuro, vejo apenos metada da sombra do seu rosto e o pouco brilho que seus olhos carregam. É assustador.
Há uma de Rachel, a mesma que vi nos cartazes de desaparecida. Ela está sorrindo, e só então noto a pulseira em seu pulso. A pulseira que Harry achou no trailer de Richard.
Será que Richard a matou? Ele disse que a amava, e, pelas cartas, Rachel também o amava. Esse tipo de relação entre traficante e usuária me parece bastante suspeita. E se Rachel ficou devendo dinheiro para ele? E se ela fugiu dele?
Perguntas e mais perguntas pairam na minha cabeça. Não sei o que pensar, não a conhecia, mas espero que nada de ruim tenha acontecido com ela.
Vejo abaixo, uma foto muito especial nossa. Nossa última foto. Harry e eu, um do lado do outro. Estávamos sorrindo e felizes em uma manhã de domingo aqui. Lembro de Tia Anne fazendo suas típicas panquecas com ovos. Implorei para que Harry tirasse a foto, e tio Robyn a bateu.
Na época, eu ainda era maior que Harry, e vestia suas roupas. Harry tinha muitos cachos e seus olhos eram vivos e brilhosos.
Então a sensação de nostálgia e saudade vão embora rápido demais quando lembro do final daquele dia.
Tomamos café da manhã depois da foto e tia Anne saiu para trabalhar na lanchonete. Eu e Harry estávamos limpando a cozinha quando Anne ligou para Robyn, pedindo para que ele a fosse buscar, pois resolverá tirar o dia de folga. Ajudei Robyn a encontrar a chave do seu carro e eu ele foi. E nunca mais voltou.
Tio Robyn sofreu um acidente no meio do trajeto de quinze minutos. E desde aquele dia eu nunca esqueci da maldita chave que eu o ajudei a encontrar.
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