1. Spirit Fanfics >
  2. Relicário de Lembranças - Hiatus >
  3. Fuga

História Relicário de Lembranças - Hiatus - Fuga


Escrita por: EllieSilva

Notas do Autor


Demorei mas cheguei! Hehe

Esqueçam tudo o que eu falei, essa história é completamente diferente do que eu tinha dito que ia fazer. Só mantive o shipp, já que eu já tinha prometido um SesshyKag, então vamos lá:
Relicário de Lembranças está inserida num universo que, apesar de também ser Era Atual, é um tanto mais ingênuo que o de Epicentro (pra quem leu), mesmo que aqui eu esteja planejando um rumo um pouco mais sombrio. Haverá hentai e alguma coisa parecida com romance sim, mas eu não coloquei como gênero porque não serão o foco da história, RDL vai tratar principalmente de crises de identidade, creio eu. Kkk E sim, o Sesshy vai demorar um pouquinho a aparecer, mas eu garanto que ele será bem introduzido ( ͡° ͜ʖ ͡°)
Estou tentando narração em 1ª pessoa, então paciência comigo, ok? Os 2 primeiros capítulos estão um pouco confusos e apáticos por causa da situação da Kagome, mas a partir do terceiro melhora, prometo!

Até as notas finais, pessoal
Boa leitura!

Capítulo 1 - Fuga


Capítulo 1 —

Fuga

 

Tento abrir os olhos como se fosse a primeira vez, e de um jeito estranho... sei que isso é verdade. O vai e vem da respiração, o esforço para movimentar levemente os dedos, o peso que sinto.... Tudo isso é familiar, mas...

Há um vazio…

Eu não me lembro de ter realizado esses movimentos — não me lembro de ter feito qualquer coisa —, mas sei que posso fazê-los. Eu sei como abrir os olhos, tenho absoluta certeza. Apenas não faço ideia de como eu sei disso.

Meu corpo pesa tanto...

As pálpebras... minhas pálpebras parecem pesar toneladas. O único fio de consciência que tenho fica indo e vindo, vai e se es... vai. E é tão doloroso estar acordada, ainda que de olhos fechados....

Não deveria ser assim.

Alguma coisa está errada. Mas o quê?

Pensar... dói.

Nada. Antes desse momento, eu estava lá; num lugar escuro e acolhedor onde essa dor insana não existia, e onde meu corpo também não estava tão pesado. Tudo o que quero fazer é voltar para dentro daquele lugar, estar lá e abraçar cada pedaço dele, porquê.... Bem, eu não tenho motivos para ficar. Não tem sentido estar aqui e sentir essa dor que nem sei de onde vem, então talvez... Acho que eu posso só...

— Kagome?

Uma voz. Essa voz...

Dói.

Dói pensar sobre o que de há tão aconchegante nesse timbre desconhecido, nessa voz macia perto de mim chamando uma completa estranha. Eu deveria ficar assustada em saber que tem outra pessoa perto? Acho que sim, mas... eu me sinto bem. Quase aliviada por saber que não estou sozinha.

Chamam novamente, e dessa vez eu luto contra o peso das minhas pálpebras.

Acordo.

Dou de cara com um par de olhos grandes, assustados. Eles têm uma cor estranha e bonita, quase violeta, e... Estão olhando para mim? São confortáveis. Faz bem olhar para eles, embora eu não os reconheça.

Mas... a... dor....

Cerro meus próprios olhos como se isso fosse levar a dor embora, mesmo sabendo que não vai adiantar. Somente o vazio faria isso por mim, o que o faz parecer muito mais tentador. Mais saudável. Mais definitivo.

Eu realmente teria escolhido ir, se não fosse...

— Ka-Kagome? Ah meu... Deus! Meu Deus, alguém chame um médico! Ela acordou, ela acordou!

Aparentemente eu estava certa, tem mesmo algo errado. Deve ser a dor, e o médico vai vir e fazê-la passar. Calma. Quando ele chegar, eu vou poder descobrir quem é o dono da voz. Onde ele está? Aquele moreno bonito dos olhos embargados... quero vê-lo. Quero que ele diga porque parece tão chocado em me ver.

O vazio ainda está próximo, quase ao alcance da minha mão.

Não quero mais estar dentro dele.

Eu posso suportar a dor.

Eu realmente posso, e vou, esperar o rapaz bonito voltar.

E ele não demora a chegar, com um sorriso bobo esticado de orelha a orelha. Vem junto de uma mulher e um homem; ela, uma senhorinha enrugada de cabelos grisalhos, e ele um jovem adulto loiríssimo, ambos vestidos de branco. Nunca os vi antes, mas sei com toda certeza que são o médico e a enfermeira.

— Kagome? — o rapaz moreno chama de novo. — Ah, Kagome, você finalmente acordou! — ele suspira, absolutamente feliz. — O que você queria, fazer minha bunda criar raiz nessa cadeira?! Sua fedelha irritante! Nunca mais, e vou repetir pra não ficar dúvida, nunca mais você vai namorar de novo, entendeu?!

O médico sorri. A enfermeira também. Tudo o que digo é:

— Hm... Kagome?

Minha voz sai rouca, entrecortada e estranha.

Como tudo ao meu redor, também não a reconheço.

— É, você mesma.  Vai dar uma de desentendida agora? — ele solta algo entre um suspiro e um riso. — Olha, eu sei que sempre disse pra você parar de ser tão certinha, coisa e tal, mas nunca passou pela minha cabeça que você ia fugir com o bad boy!

Bad... boy?

Esse rapaz fala tão rápido que faz a minha dor de cabeça piorar. Consigo apenas manter meus olhos entreabertos enquanto permaneço deitada nessa cama exageradamente branca, sentindo-me absurdamente fraca. E ele com certeza não está ajudando. Talvez não tenha sido uma boa ideia ficar para conversar já que ainda estou um pouco zonza, e ele parece ansioso demais. Ele me olha confuso demais.

Vejo o moreno abrir a boca de novo, mas o médico aperta seu ombro antes que fale alguma coisa.

— Higurashi-san? — o doutor chama. Viro-me para a enfermeira. — Kagome?

Olho, mas não respondo. Percebo que isso o deixa preocupado.

— Como você está? — ele pergunta a ninguém específico, e sua voz é grave, muito grave. Parece pertencer a alguém muito mais velho, o que ele definitivamente não é. O médico é magro e bastante alto, quase um rapaz, embora não tão bonito quanto o moreno que agora olha para mim com desconfiança. E ele continua olhando para mim.

Só aí que percebo que faz um silêncio sepulcral na sala. E considerando o fato de que sou eu a pessoa deitada numa maca, parece lógico deduzir que a paciente que deve dizer como está sou eu.

— Minha cabeça dói... muito!

Ele tira alguma coisa do bolso, um objeto prateado com uma luzinha na ponta, e aponta-a para meus olhos.

— Isso é normal devido ao trauma que você sofreu, não se preocupe. Mais alguma coisa dói fora sua cabeça? — nego com um aceno, cerrando os olhos ao perceber essa não foi uma boa forma de resposta. Ele toca em meu joelho, e eu me encolho. — Consegue mexer os dedos? — balanço a mão, e ele sorri de forma gentil. — Os dos pés também? — assinto. — Sabe porque está aqui?

Começo a ficar tensa, percebendo que há uma infinidade de coisas que eu não sei. Nego novamente com a cabeça, dessa vez porque simplesmente não consigo encontrar minha voz. Acho que o doutor percebe minha aflição, ele me olha de um jeito tão terno.... Parece alguém que quer acalmar outra pessoa.

— Tudo bem, não se preocupe. Sou Edward Jenkins — ele me estende a mão cumprimento. Olho agoniada para ela, sabendo que mesmo que eu a aperte não vou saber o que dizer.

— Érr, e-eu...

— Tudo bem, não precisa ficar nervosa, só me escute com atenção. Você acaba de acordar de um coma. — Ele faz uma pausa, me desse dando tempo para absorver a informação. — Qual a última coisa de que se lembra?

— Ai meu... DEUS! — o rapaz moreno grita de repente, levando as mãos aos cabelos bagunçados ao ouvir a pergunta que o doutor me faz.

— Kaede, tire ele daqui, por favor.

A enfermeira começa a puxá-lo pelo braço enquanto o rapaz me encara assombrado, tentando dizer algo que não consegue. Procuro me sentar para vê-lo sair, mas o movimento faz uma pontada latejar em minha cabeça e o doutor me impede de continuar tentando. A dor está voltando mais forte, como se só estivesse esperando o rapaz dos olhos bonitos ir embora. Finalmente desisto de estar acordada, mas Dr. Jenkins aponta aquele objeto novamente para mim.

— Quem é aquele? — pergunto sobre o rapaz que saiu. Primeiro o médico suspira longamente, e depois decide me responder com outra pergunta.

— Sabe porque te chamamos de Kagome?

— Não... É alguma brincadeira por causa daquela canção infantil?

— Ela se lembra da música, bom sinal... — ele diz baixo, quase se eu não devesse tê-lo ouvido. — Te chamamos assim porque esse é o seu nome, senhorita Higurashi. E aquele rapaz que acabou de passar pela porta é o seu irmão.

 

⊱⊰⋇⊱⊰

 

— Muito bem, Kagome, vamos de novo! — a enfermeira ordena, usando aquele tom de autoridade de que gosta tanto. E é claro, ela nem me espera confirmar nada antes de tomar o pequeno espelho das minhas mãos.

Kaede é uma boa pessoa, apesar de não fazer a velhinha doce. E embora ela seja alguém de quem todas as enfermeiras mais novas tem medo, eu sei que mais que ninguém ela está empenhada em me fazer voltar para casa.

Até mais que eu.

Não que eu queira viver aqui para sempre, mas pelo que pude perceber dos últimos dias eu não tenho muitos motivos para deixar esse mundinho de hospital. É horrível dizer algo assim, mas eu realmente não fui muito com a cara dos meus pais; ou mãe, melhor dizendo. O meu pai faleceu a poucos anos num acidente, pelo que me disseram, mas eu tenho um padrasto. O pai do Miroku, meu meio-irmão tagarela e inteligente. É quase engraçado pensar que a gente não tem nenhum laço de sangue e mesmo assim ele é a única pessoa que eu consigo reconhecer como família.

— Vamos logo menina, você não é a única nesse hospital, sabia?! Não tenho o dia todo! — Kaede ralha, impaciente com a minha divagação infinita. Não que eu possa culpa-la.

Fecho os olhos em obediência, começando em voz alta a contagem que antecede o exercício.

— Cabelos pretos na metade das costas. Olhos castanhos puxadinhos, e bochechas não muito grandes. Rosto ovalado, queixo discreto, nariz pequeno... lábios finos e boca miúda, também.

Essa é a descrição do meu rosto.

Quando acordei, nove semanas atrás, sem me lembrar dele, Kaede quase teve um infarto. Aquele dia o doutor Edward me deu um espelho e o tomou de mim depois de trinta segundos, me pedindo para dizer o que eu lembrasse do que vi. Claro que não há necessidade de continuar fazendo isso depois de tanto tempo, mas Kaede é insistente e eu sempre faço tudo que posso para não deixa-la irritada. Infelizmente, ela é ótima em achar motivos para reclamar.

— E como é o seu corpo? — ela pergunta.

— Eu estaria feliz com um pouquinho mais de panturrilha.

— Então aproveite que vai sair daqui pra começar a se exercitar, menina, porque não vão te aparecer músculos do dia pra noite. Aquela fisioterapeuta pega leve demais!

A fisioterapeuta de quem Kaede fala com tanta gentileza é uma morena muito jovem, chamada Koraru, que apesar de ser uma pessoa extremamente doce definitivamente não pega nada leve. Muito embora eu desconfie que depois de quatro meses imóvel num coma qualquer coisa seja pegar pesado para mim.

— Kaede... — chamo com um suspiro. — Eu vou embora daqui a duas horas. Duas horas! Tem certeza que é assim que você quer passar nossos últimos momentos?

— Ora, menina, deixe de falar besteiras! Parece até que vai morrer.

— Mas vou me mudar, e você sabe... Ishikawa não é exatamente aqui do lado.

— Drama seu! Já lhe disse que desde o ano passado, quando inauguraram aquele trem novo, a viagem diminuiu bastante. Duas horas e meia não vão te matar! — Ela emburra, virando o rosto para não me deixar ver seus olhos cheios d’água. — Ou por acaso a senhorita está querendo dizer que vai ficar ocupada demais com as novas amigas pra visitar uma velha? Sua degenerada!

— Ah, claro, com certeza as garotas de Kanazawa vão fazer fila pra falar comigo — rio sem humor. — “Olhem, a desmemoriada da capital que nem sabe como o namorado morreu!”.

Abaixo o olhar diante da tentativa — falha — de fazer piada, mas ainda consigo ver a expressão de Kaede mudar para pena. Detesto quando ela faz isso, muito embora a enfermeira não seja a única. Infelizmente.

Todos nesse hospital me tratam muito bem e eu realmente não tenho do que reclamar, mas... Sempre que acontece alguma coisa que os faz lembrar do que me trouxe até aqui, eles me lançam os mesmos olhares condoídos.

Aparentemente o cara com quem eu estava saindo — o tal bad boy que Miroku tanto falou — matou meu ex-namorado na minha frente, e eu, a única testemunha, de algum jeito acabei em baixo de um barranco com uma ferida enorme na cabeça e nenhuma memória dentro dela. Eu já tinha recebido duas visitas da polícia por causa disso. A última foi a três dias, quando me levaram até o lugar do “acidente” esperando que isso me ajudasse a lembrar de alguma coisa.

Não ajudou.

— Você não tem que ir, Kagome... — Kaede lembra, usando um tom doce que ouço pela primeira vez. — É até melhor para o seu tratamento que você continue em Tóquio, entende? Perto dos lugares aonde estão suas lembranças...

— Você ficaria? — sorrio de forma triste, e como sempre, Kaede entende o que quero dizer.

Só de olhar para mim.

— Tem razão, provavelmente eu faria o mesmo. Aquela mulher é–

— Ela é uma completa estranha.

— É. Acho que estranha é uma boa palavra.

Alguém bate na porta do quarto, e coincidência ou não é justamente a pessoa de quem estamos falando.

Kazuyo surge no quarto impecavelmente vestida, como sempre, apesar de modesta. Usa uma saia cor de goiaba na altura dos joelhos, uma blusa branca e seu inseparável casaquinho verde-claro. Serena, ela faz uma singela reverencia para nós que eu retribuo com igual formalidade, enquanto Kaede revira olhos.

A senhora Higurashi tem cabelo curto, um pouco mais claro que o meu, mas exatamente os mesmos olhos. Vê-la, entretanto, não é como olhar para uma versão mais velha de mim mesma. Não há quase nada nela que eu reconheça apesar da semelhança física, bem porque ela não faz o menor esforço para se aproximar de mim. Penso que devo tê-la magoado por acordar um dia sem saber quem ela é, mas não há muita coisa que eu possa fazer a respeito.

— Trouxe uma muda de roupa para você, Kagome. O restante das malas Miyatsu¹ trará quando vier busca-la.

— Obrigada — agradeço e me levanto para pegar as ditas roupas, que me são entregues sem contato visual.

Das poucas coisas que sei sobre mim, burra eu sei que decididamente não sou.

Eu sei que minha mãe está me evitando, o que não sei é o motivo.

— Irei tomar um banho, Kaede. Ainda te vejo antes de ir?

— Vou dar uma olhada nos outros pacientes e depois passo aqui — ela me aponta o dedo, sabendo bem o quanto eu demoro no banheiro. — E vê se não gasta a água toda do hospital, porque eu não perdi nove semanas cuidando de você pra te encontrar afogada no chuveiro!

Sorrio e fecho a porta do banheiro. Essa vai ser a primeira vez que troco a camisola hospitalar por uma roupa de verdade, e estou ansiosa. Acabo tomando um banho relaxante, apesar de não demorar quanto Kaede previu.

Fico receosa pelo silêncio em que provavelmente o quarto vai mergulhar enquanto for ocupado apenas por mim e Kazuyo, mas quando saio, ainda enxugando os cabelos, encontro três garotas me esperando com sorrisos ansiosos nos rostos. São Eri, Ayumi e Yuka, minhas melhores amigas — ou pelo menos foi o que elas disseram.

— Ka-chan! — Ayumi vem correndo em minha direção, me abraçando apertado.

— Ohayo, Ayumi-chan. Como você está?

Ela responde com um sorriso enorme e caloroso, enquanto as outras duas apenas acenam. Elas parecem não saber bem como reagir, já que claramente eu não me lembro delas. Ayumi é a única que simplesmente ignora esse fato e tagarela por nós três, desculpando-se por um tal de Houjo — que aparentemente tem uma paixonite por mim desde que o mundo é mundo — que teve que ir para um intercambio nos Estados Unidos e não pôde vir, embora já tivesse me visitado três vezes durante os meses que fiquei desacordada.

No fim, surpreendentemente temos assunto até a hora que Miroku chega.

— Mas o que é isso, um clube da Luluzinha? — ele pergunta com um sorriso no rosto, entrando sem cerimônia.

É engraçado ver as meninas ruborizando quando põem olhos nele.

Agora que sei que Miroku é meu meio-irmão ficou bem mais difícil admitir a beleza dele, mas não tenho problemas para reconhecer que ele é um perfeito cafajeste. Vive jogando charme para as enfermeiras, médicas, e qualquer ser humano do sexo feminino que passe a menos de cinco metros. Eu até já tinha descoberto os sinais que ele dá quando está “caçando”, por exemplo: Miroku sempre joga a franja para o lado antes de sorrir.

E é exatamente o que ele faz, com os olhos fixos em Yuka.

A garota tem a minha idade, eca! Não que ele seja muito mais velho, mas seus vinte e quatro anos já dão uma boa diferença. Ele é formado em administração a dois e ano passado mudou-se para Kanazawa, em Ishikawa, por um emprego, enquanto Yuka acabou de começar o primeiro semestre da faculdade. Além disso, eu sei da namorada dele.

— Já está na hora? — tenho que perguntar.

— Está sim, Kagome. O oyaji já está esperando no carro.

Vejo pelo canto dos olhos quando Kazuyo se levanta, tão quieta o tempo todo que eu tinha esquecido que ela estava ali. Ayumi aproveita e vem de novo com outro abraço apertado, mas dessa vez as meninas a acompanham. Elas se despedem bastante emocionadas, me fazendo prometer que vou entrar em contato sempre que puder.

Elas não entendem minha decisão de ir embora.

A verdade é que depois de nove semanas e milhares de rostos supostamente conhecidos, eu não lembrei de ninguém. E é um bocado chato quando todos percebem que não, não são tão importantes para que eu me lembre deles.

Mas o pior definitivamente são os que acham a situação engraçada, normalmente inventando histórias sobre o meu passado — em que eu acredito, como a tapada que agora sei que sou — para depois desmentir entre risadas. Eles não entendem que minha amnésia não é piada, e que eu não vejo graça nenhuma em não lembrar sequer do que devia ser importante para mim. Doí um bocado, na verdade.

— Vamos indo? — Miroku sorri afável, segurando meu braço como se me confortasse. — Nosso trem tem hora, não podemos atrasar.

— Claro.

Ele percebeu a minha mudança de humor, tenho certeza. Preciso lembrar que apesar do jeito brincalhão Miroku parece também ser muito perceptivo, essa não é a primeira vez que acho que ele está lendo meus pensamentos.

Deixamos o quarto, e para a minha surpresa há várias pessoas esperando no corredor do lado de fora. Kaede, Koharu, doutor Jenkins e todos que cuidaram de mim nesse tempo. Me despeço de cada um com cuidado para não esquecer nenhum nome como forma de agradecimento — e também porque se eu esquecer de alguém Kaede provavelmente revoga minha alta. Nem sei se ela pode, mas esse é com certeza o tipo de coisa que ela faria. Por ela eu não sairia desse hospital tão cedo, principalmente para enfrentar uma viagem até Ishikawa.

Eu não deveria mesmo estar tão bem.

O normal depois de tanto tempo desacordada seria ter dificuldades para me mexer, o que deixou a Koharu bem assustada depois da minha primeira avaliação física. Ela disse que eu estaria pronta para voltar para casa após duas semanas de fisioterapia, mas sabendo da viagem, o doutor Jenkins insistiu que eu ficasse outra semana no hospital em tratamento intensivo. Ainda assim, ao nos despedirmos, ele me dá o número de seu celular de trabalho e pede para que eu ligue caso aconteça qualquer coisa, pelo menos até eu me acostumar com o novo médico de Kanazawa.

Mas dentre todas as despedidas sem dúvida a de Kaede é a mais difícil. Ele parece mais irritada que nunca, e até rejeita me abraçar — coisa que só faço porque sou uma garota persistente, minhas nove semanas de segunda vida confirmam. Quando a puxo pelo jaleco mesmo assim ela ralha comigo, chora, e me dá soquinhos nas costas.

Vou sentir uma falta enorme dela.

Deixo aquele lugar sem olhar para trás, apesar de tudo. Eu quero e preciso abandonar essa aura de doença para começar a viver. Não posso me prender a um passado que não lembro, mesmo que minhas lembranças não voltem. Mesmo com Kaede e minhas “amigas de infância”, eu sei que não me vou me arrepender de deixar para trás tudo o que me lembra as coisas que esqueci.

Não há como ter saudade de ser conhecida e não conhecer ninguém.

Um Honda Fit nos espera na garagem, a porta do carona aberta. Dá para ver o homem ao telefone no assento do motorista falando algo sobre atrasos no recebimento de uma carga de pasta de amendoim ou coisa assim.

Miyatsu é quase aquele tipo de homem modesto que a gente vê nos filmes, inteiramente dedicado ao trabalho. Ele trabalha como algum tipo de gerente de baixo escalão no porto de Tóquio, e por isso está sempre ocupado com esse tipo de coisa sem importância. Meu padrasto até costuma tentar ser simpático comigo, mas vez ou outra olha para mim com um ar acusador que não entendo — e como há várias coisas que eu não sei sobre mim, talvez ele até tenha razão.

Infelizmente, eu também não gosto muito dele.

Ele e Kazuyo não parecem más pessoas, mas também não agem como muito mais que isso. Como pais, quero dizer. Depois que acordei o máximo de uma palavra carinhosa que ouvi deles foi um “Como você está se sentindo? ”.

Olho para eles do banco de trás, sentada ao lado de Miroku. Mesmo que os dois me visitem com frequência nunca houve muita conversa, quase como se por obrigação. Para que ninguém os acuse de me abandonar a filha desmemoriada.

E tudo bem, podem me achar cruel por falar assim. Talvez eu seja mesmo esse tipo de pessoa horrorosa sai por aí falando mal de quem a ajuda, mas eu preciso lembrar que só conheço os dois a nove semanas. E não houve muitas demonstrações de afeto durante esses dias.

Quando chegamos à estação, pulo imediatamente do carro. Estou louca para respirar o ar não-tão-puro da cidade simplesmente porque ele não cheira a éter. O lugar é moderno, apinhado de gente que vem e vai apressado. Paro por um momento pensando se no meio de tantas pessoas haveria alguém que eu reconheceria se fosse a Kagome de antigamente, e quando dou por mim Miroku está estendendo uma mochila amarela na minha direção.

— Cuide dessa bolsa como se você não tivesse nada além no mundo, porque você não tem.

— Como é?

— Bom — ele dá de ombros — pelo menos não até que suas coisas cheguem lá em casa amanhã. Por enquanto você vai ter que se virar com isso.

Faço alguns cálculos na cabeça: agora são exatamente duas da tarde e nosso trem sai em meia hora, o que quer dizer que devemos chegar a Kanazawa por volta das cinco. Provavelmente às seis já estaremos na casa de Miroku, então acho que não vou precisar de muitas coisas até que minha mudança chegue no domingo.

Entramos na estação, eu ao lado de Miroku. Miyatsu e Kazuyo vem mais atrás, ele ao telefone e ela em silêncio. Confirmamos o local de embarque, passamos a bagagem pela segurança e logo estamos prontos para entrar no trem. Ainda faltam quinze minutos para essa coisa sair andando, mas eu quero embarcar logo. Despedir-me dos meus “pais” vai ser no mínimo constrangedor.

— Tem certeza que não quer ficar? — Kazuyo pergunta com a voz doce, mas alguma coisa em seus olhos meio que me pede para negar. E é o que faço, com uma mesura polida e formal.

— Obrigada, mas eu realmente quero ir para um lugar onde um rosto “novo” seja realmente novo pra mim.

Ela assente, sorrindo sem muito ânimo. Miyatsu então vem até mais perto, tapando o celular com uma das mãos para que a pessoa do outro lado da linha não o escute.

— Aproveite e ponha um pouco de um pouco de juízo na cabeça do meu filho, Kagome. Se precisar que as coisas entrem na linha ligue pra mim, ou chame a polícia!

Alguma coisa no seu tom deixa bem claro que ele não está falando de Miroku, mas dos meus assuntos inacabados com a polícia. E então eu lembro, é exatamente por causa dessas indiretas travestidas de piada que não gosto dele.

— Deixe de drama, oyaji. Juízo é meu nome do meio — Miroku me abraça de lado, fazendo-me relaxar.

— Vamos entrar? — eu pergunto, fingindo estar animada. — Kaede-sama me disse que esses trens chegam a 260 km/h, estou curiosa pra saber como vai ser a viagem.

Os três me encaram como se eu tivesse dito a pior blasfêmia.

— Seu pedido é uma ordem, milady — Miroku é o primeiro a se recuperar do aparente choque e se vira para os nossos pais, fazendo uma faz uma reverência. Imito o gesto.

Depois das despedidas formalizadas entramos no trem. Não temos dinheiro para separar uma cabine, então sentamos nos assentos comuns e com sorte eu consigo um lugar à janela. Meu meio-irmão também, logo a minha frente.

— Um detalhe sobre você — ele diz, inclinando-se com um olhar divertido. — Você odeia qualquer coisa mais rápida que um burrinho. Lembre-se disso da próxima vez que for inventar uma desculpa para sair de junto daqueles dois.

— Ué, porquê?

Ele ri, fazendo um gesto para que eu esperasse. Encarando o relógio de pulso, ele começa a enumerar nos dedos: 4... 3... 2... 1. O trem entra em movimento com uma arrancada. Não vejo motivos para pânico num primeiro instante, até o tem começar a ganhar velocidade. Apesar do movimento macio, um enjoo crescente me atinge o estômago.

Acabo de descobrir o que Miroku quis dizer, e detesto a novidade.

Essa viagem vai ser absurdamente longa!

Miroku me estende um saquinho com alguns comprimidos e uma garrafa de água, exibindo um sorrisinho cínico nos lábios finos que me lembram bastante o pai dele. Fazer careta para a semelhança é uma reação automática.

— Me agradeça fazendo o jantar quando chegarmos em casa — ele diz.

— Mas eu não sei cozinhar!

— Ah, minha cara, acredite em mim: você com certeza sabe.

Ele pode ter dito isso, mas o resultado a que chegamos mais tarde é impiedoso.

Macarrão com queijo.

Esse foi o nosso glorioso jantar, quase quatro horas depois.

Miroku não sabia aonde ficava absolutamente nada no próprio apartamento porque, aparentemente, quando não é a namorada que cozinha ele sempre pede comida ou janta fora. E isso nos rende algumas boas piadas enquanto preparamos o jantar, que realmente não fica ruim, embora comamos em silêncio. Eu me sinto mental, física e espiritualmente esgotada. E por algum milagre tenho um irmão mais velho que entende isso sem fazer cobranças.

Miroku sabe que, do meu ponto de vista, essa é a primeira vez que estou fora do hospital; que a carona de Miyatsu foi minha primeira vez dentro de um carro, e que as duas horas e meia seguintes foram minha primeira viagem de trem ou de qualquer outra coisa. Ele também sabe que essa é minha primeira vez cozinhando, e que isso é muita coisa nova para assimilar de uma vez.

Por isso não me sinto nenhum pouco culpada quando peço cama, mesmo tendo dormido por quatro meses inteiros. Miroku me guia por um corredor pequeno e abre uma porta branca, dando passagem para um cômodo pintado de azul-claro com pouco mais que uma cama, guarda-roupa e persianas na janela. Era a definição de simplicidade, mas ainda parecia infinitamente mais aconchegante que meu quarto no hospital.

É assim que se parece um quarto, então...

Me atiro na cama e enfio a cara no travesseiro, sem pensar mais.

— Que bom que já se sente em casa — ouço as risadinhas do dono da casa e viro-me para ele, sentando e me agarrando ao travesseiro.

— Miroku... Muito obrigada por tudo. De verdade.

Ele coça a nuca e dá um suspiro longo. Seus olhos estão fixos no teto, como se pedisse resposta para alguma pergunta complicada. Com passos calmos, Miroku vem e se senta na beirada da cama. Ele tira de dentro do bolso algo que fica escondido entre suas mãos grandes e fica sério. Sério ao ponto de me pegar desprevenida.

— Kagome... Eu sei que você veio pra cá fugir das cobranças, de todo mundo estar sempre tentando te forçar a lembrar de alguma coisa, mas... tem algo que eu não posso esconder de você.

Ele pesa o objeto nas mãos antes de me entregar. É uma corrente fina de prata, discreta e comprida, que brilha mesmo sobre a luz fraca do único abajur do quarto. Ao invés de um pingente o colar sustenta um relicário de vidro, que por vários motivos me parece diferente. Não é um daqueles objetos cafonas que escondem fotos de famílias felizes ou casais apaixonados, mas um botão de sakura ainda por desabrochar; um botãozinho pequeno e rosado, mantido intacto sei lá por quanto tempo quase que por... magia.

Não sei o motivo, mas sinto meu coração apertar. Levo as mãos ao peito numa surpresa emocionada, confusa por saber, por sentir que esse relicário significa alguma coisa importante que eu estou deixando passar.

— O que é isso?

— Estava com você quando sofreu o acidente — Miroku responde sem olhar para mim. — Engraçado que não tenha se partido, não é?

— Miroku...

— Era do seu namorado. Ele quem te deu.

— Como assim? Do tal bad boy que eu estava saindo?

— Não, não, do seu namorado. Do seu ex-namorado — ele encara o chão, fazendo-me engolir seco. — Você nunca me explicou o que aconteceu pra vocês terminarem, mas tava na cara que ainda se gostavam; só um cego não veria. Mas aí o outro cara apareceu, e você começou a agir estranho... ousada, sabe? Chegou até a andar de moto! — ele ri, lembrando de algo. — Kazuyo ficou roxa de preocupação, mas eu achei que ele te fazia bem. Você finalmente ia sair das asas da sua mãe e deixar de ser tão certinha, parecia até mais... viva. E eu achei... achei que ele te fazia bem.

Miroku para de falar, mas não é preciso ser nenhum gênio para notar que ele ainda não disse tudo o que queria. Ponho minhas mãos sobre as dele tentando dar apoio para que continue, porque de algum jeito tenho certeza que é disso que ele precisa. E ele realmente continua, depois de alguns segundos. Os olhos firmes nos meus.

Os olhos violeta, embargados, firmes nos meus.

— Me desculpe, Ka... — ele pede fungando, e o som faz meus olhos se enxerem de lágrimas também. — Me desculpe por não ter percebido que ele era um monstro antes que o desgraçado matasse o cara que você gostava... Antes que ele te deixasse pra morrer embaixo de um barranco!

Abraço Miroku com toda força que tenho, chorando; as primeiras lágrimas em nove semanas. Eu não me lembro de como era a relação com minha família, muito menos faço ideia do que aconteceu durante esse tempo que Miroku falava, porque para mim essa época é como a vida de outra pessoa, agora morta e enterrada.

Só que não é assim, não para ele.

Na perspectiva do meu irmão tudo ainda está muito fresco, e mesmo que eu o conheça a pouco tempo... dói mais que tudo vê-lo desse jeito, por mim. Machuca cada pedacinho de mim não ter o que dizer para confortá-lo.

O Miroku me acolheu. Não temos laços de sangue, mas ele me aceitou na sua casa. Dentro da vida dele. Ele aceitou cuidar de mim de bom grado quando até minha mãe parecia uma estranha para mim. Me acompanhou em cada sessão de fisioterapia, e contribuiu em cada sorriso sincero que eu já me lembro de ter dado.

E eu não posso fazer nada por ele.

Choramos muito, nós dois. E como novata em matéria de lágrimas, eu posso dizer que a sensação é triste, densa e... leve. Eu sentia como se estivesse tirando um peso das costas, abraçada por um alívio tão grande que acabo dormindo. Ali mesmo, com a cabeça no colo do meu irmão mais velho. E com um relicário guardado entre as mãos.

Eu ainda não sabia, mas aquela noite eu teria a minha primeira lembrança.

 

 

 

 


Notas Finais


¹ Miyatsu na verdade é o nome do avô de Miroku, e não do pai. Mas como o nome do pai não é citado na obra da Rumiko vamos ignorar isso. Peguei essa caroninha na dica da Okaasan (licença aqui viu flor kkk)


Ainda não posso prometer postagens regulares gente, mas espero que gostem!
Vou fazer de tudo pra não demorar muito, bjão!


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...