O avião acaba de aterrissar na pista de pouso e está estacionando bruscamente para ficar próximo da plataforma de desembarque. Lentamente se aproximando, mal posso sentir o tremor causado pelo contato das rodas com o chão, mas posso ver as cabeças pulando e as pessoas se segurando firmemente em suas poltronas. Está mais frio do que eu pensava, nem mesmo a camisa de manga longa com a jaqueta grossa que estou vestindo estão sendo muito úteis, mas acho dá pra aguentar. Todos estão igualmente encapados como se estivessem indo para o pólo norte, mas daqui a pouco vão estar semi nus com o calor da cidade, que costuma beirar os trinta e cinco graus. Durante o tempo de voo, estive pensando o quanto metade do avião vai reclamar quanto aterrissar. Senti como se estivesse em um show de rock quando todos aqueles braços começaram a levantar para chamar as pobres aeromoças. "Preciso de lenços, aqui está muito úmido", pediu um homem idoso; "não teria um cobertor? Está muito frio", comentou outra senhora; "vocês não dão comida de graça igual a outra companhia? Isso é um roubo!", reclamou um homem vestindo um paletó. Cara chato. Eu mesmo queria pedir um copo d'água, mas depois de ver o sufoco das aeromoças e dos comissários de bordo, contive o pedido. Depois de dar uma das minhas costumeiras olhadas pelo avião para ver se alguém se levantava, volto a olhar para o meu celular e pauso o clipe de uma banda que um amigo da minha cidade... quer dizer, da minha antiga cidade, me recomendou para o cansativo voo de quase duas horas. Uma das coisas que menos gosto na vida é viajar de avião, e esse voo foi um ótimo motivo para me lembrar do por quê. Aquelas turbulências, dor no ouvido e gente roncando. Simplesmente não é para mim.
– Guilherme, vamos logo, vai já encher de gente – diz minha mãe, ainda sentada ao meu lado enquanto me cutuca com sua longa unha pintada. Ela balanças os cabelos fartos e ondulados de um lado para o outro enquanto olha para os passageiros.
– Calma, o avião não vai sair sem todo mundo sair – retruco, sem muita vontade.
– Vamos Gui! Como você planeja ter o melhor ano da sua vida com uma animação dessas? Jesus! – mamãe diz em tom alto. Levanto os olhos, pedindo para qualquer entidade me levar.
Papai, que está sentado na janela, ri e tenta suprimir uma gargalhada com a mão que acaba saindo pelo nariz como uma estranha rajada de ar. Ele apenas se levanta, meio inclinado, com cuidado para não bater a cabeça ou despentear os cabelos castanhos no compartimento interno de bagagem, passa por nós tentando não pisar nos nossos pés e levanta os braços para pegar as malas, assim como outras pessoas que já começam a se levantar e fazer o mesmo.
– Gui, sei que está um pouco cansado, mas pode me ajudar a pegar as malas? – papai pede enquanto abaixa uma mão para fazer um carinho nos meus cabelos ondulados. Ele sabe que eu faço qualquer coisa quando afagam meus cabelos.
Levanto e fico do lado dele para ajudá-lo a tirar as bagagens. Não foi nada difícil, eu tenho quase a mesma altura do meu pai, talvez um pouco maior, mesmo tendo apenas dezessete anos. Pego a mala estilo militar do meu pai e lhe entrego. Faço um pouco mais de esforço para alcançar a bolsa Channel falsificada de minha mãe, que jura de pés juntos ser original, uma pequena mala estampada de desenhos do Romero Britto que tem alguns pertences pequenos de nós três e pego minha mochila surrada. Jogo-a por cima do ombro direito, encaixo os braços e me preparo para sair. Ledo engano. Uma fila gigantesca se forma enquanto eu e meu pai terminamos de distribuir as bagagens, e agora estamos espremidos no meio de tanta gente em pé enquanto as pobres aeromoças tentam dizer "obrigada, voe novamente conosco" para todos que saem, até mesmo para o rabugento homem de terno. Tomei um desgosto do cara sem nem falar com ele.
– Nossa! Tem muita gente pra sair ainda! – minha mãe reclama assim que se levanta da poltrona. – Assim a gente... ai! – mamãe dá um gritinho abafado junto com um pulo quase imperceptível, seguido de uma olhada rápida pelos lados.
Quase não deu pra ver, mas mesmo que eu não tivesse visto eu iria sacar de qualquer forma. Papai deu um beliscão na nádega da minha mãe. É algo bem comum. Eles são muito desinibidos e quando ficam entediados eles começam esses jogos de sedução um com o outro, e mesmo depois de anos e anos eu simplesmente não consigo me acostumar. Acho até bem engraçado e deixo sair uma abafada e gostosa risada.
– Marcelo! — mamãe diz sussurrando de maneira áspera. Seu rosto está corado, mas deixa escapar um sorriso e um olhar de quem entra no jogo.
– Alice, já ouviu falar que a moda entre os jovens agora é se divertir nos banheiros dos aviões? – papai comenta bem próximo ao ouvido dela, virando-se um pouco de lado.
Ele nem pode dizer bem "entre os jovens" já que pra mim eles são quase duas crianças em corpos de adultos nos quarenta anos, mas muito bem preservados... Bom, acho que duas crianças no cio seria uma explicação melhor para o caso deles.
– Ah é? Que tal iniciarmos uma nova moda no corredor? – mamãe comenta com um dos seus famosos olhares de sedução.
Enrubesço instantaneamente. A maioria dos jovens têm pais sérios que brincam de vez em quando e são comportados. Eu não. Fui agraciado, digamos assim, com dois adolescentes eternos. Esse jeitinho meio louco dos dois até engana quem os conhece por vista. Papai trabalha na polícia, na parte de investigação de casos grandes. Por trabalhar nesse ramo, ele tem que ter uma postura séria e quase irredutível, e como gosta muito de computadores, as pessoas tem menos chances ainda de se aproximarem. Apenas os amigos e parentes sabem como ele é animado e carinhoso. Minha mãe já é animada de qualquer maneira e em qualquer lugar. Seus olhos escuros brilhantes são convidativos e amigáveis a qualquer pessoa. Ela trabalha como uma revendedora de cosméticos internacionais e, apesar de não parecer, ela ganha muito com isso. Consegue pagar o próprio carro, as próprias roupas e esbanja com pequenas mordomias frequentemente. Com o ânimo dela, as pessoas devem acabar comprando mais pela sua gentileza e certeza sobre a qualidade dos produtos dela do que pelos cosméticos.
Essa viagem e mudança que estamos fazendo é pelo meu pai. Ele recebeu uma promoção de seu último cargo e foi transferido para outro estado, ou melhor, pra capital do estado, que acho que deve ser duas ou três vezes maior que minha cidade anterior. Mas tudo que eu tinha está lá. Minha escola, a mesma que eu frequentei toda minha infância, meu amigos, quase toda minha família, os lugares que eu gostava de ir... Falta apenas o terceiro ano do ensino médio para que eu termine a escola mas mesmo assim acho que essa mudança vai ser definitiva e a saudade que eu já tenho é o suficiente pra não estar animado como minha mãe ou meu pai pela mudança de vida. Tento o máximo que posso não parecer desanimado com tudo isso.
– Vamos indo antes que o capitão nos tire à força por atentado ao pudor – digo enquanto empurro levemente as costas do papai, que consequentemente acaba empurrando minha mãe.
Dá pra ver uns rostos confusos ao me verem levando meus pais como uma escavadeira e eles rindo e se divertindo tentando não esbarrar nos outros ou sem querer levar um braço ou uma perna. Ah, se esses simples e incomodados cidadãos soubessem o quão normal esse tipo de cena é.
Por sorte o caminho até a esteira foi quase normal, com exceção dos meus pais e suas brincadeiras um com o outro e os olhares curiosos e confusos dos outros passageiros vendo toda aquela interação enquanto eu assobiava e olhava para as propagandas e mensagens de boas-vindas fingindo não os conhecer, mas é difícil fingir que não os conhece quando eles colocam minhas malas no meu carrinho.
Respiro profundamente o ar quente e úmido da cidade e me sinto até mais leve. Acho que o que me faltava era sair daquela maldita caixa metálica voadora. Meu humor melhora bastante depois disso. Até mesmo arrisco uma ou outra piada com meus pais. Seguimos para a área de desembarque onde várias pessoas esperam parentes e amigos que voltam para casa ou mesmo os que estão chegando pela primeira vez. Não há ninguém nos esperando, como eu já suspeitava. Deslizo por toda aquela multidão enquanto meus pais tentam o mesmo, cheios de malas, e logo estamos fora do aeroporto. Meu pai chama um táxi e saímos do aeroporto. Sento atrás com mamãe enquanto papai conversa animadamente com o taxista. Por sorte o taxista parece ter bom gosto e coloca em uma rádio boa com música pop e eletrônica.
Não demora muito tempo vendo a paisagem verde ao longo de uma estrada larga e logo entramos em uma avenida ainda mais larga. Ao longo da avenida, algumas lojas de roupas e de móveis se erguem. Poucas pessoas andam pela calçada, segurando guarda-chuvas, apesar do céu estar claro. Mal termino meu pensamento e algumas gotas de chuva começam a cair, mas param tão inesperadamente quanto vieram. Que clima doido. A cidade é bem arborizada, com pequenas árvores de galhos retorcidos no canteiro central. Realmente belo. O trânsito não está tão caótico para uma sexta-feira à tarde, sendo que ainda faltam três horas para o horário do rush, quando as pessoas saem do trabalho para ir para casa.
Faz menos de dez minutos que saímos do aeroporto e o taxista dá o sinal de que irá para a direita, ameaçando sair da arborizada avenida. Ele entra em uma rua bem mais estreita do que a avenida, mas igualmente grande. Aperto os olhos ao examinar o local e chego à conclusão de que deve ser a rua principal de um bairro ou de um conjunto de casas. Passamos por cinco ruas paralelas à principal e entramos na sexta. O taxista diminui a velocidade, me dando a oportunidade de admirar algumas das casas da rua. São casas bonitas, grandes e que parecem arrumadas. Com certeza não é o bairro mais humilde da cidade. As casas vão passando até que o carro para em frente de uma igualmente grande, pintada de branco e vermelho.
A casa é enorme, pra falar a verdade. Pelo menos parece gigantesca se for comparada com a nossa última, e eu não pareço ser o único surpreso. Papai e mamãe estão quase colados na janela do taxi, deixando o vidro embaçado com suas respirações quentes. O taxista limpa a garganta, chamando a atenção do meu pai. Ele puxa três notas de dez reais da carteira e paga o taxista, que sai do carro para tirar nossas malas. A vizinhança me lembra vagamente as casas de estilo americano, com um espaço de grama entre as casas, seguida de um pequeno muro. Viro-me novamente para comparar as casas. Todas as casas são muito bonitas e igualmente bem decoradas. Nossa casa possui dois andares, assim como a maioria das outras. Uma grande janela escurecida de correr feita inteiramente de vidro me olha do andar de cima, onde eu suponho ser o meu quarto. Um caminho feito de finos blocos de concreto liga a porta da frente à calçada. No lado esquerdo da casa há um pequeno espaço para, creio eu, sentar e pegar um vento enquanto se lê um bom livro. Três árvores perfeitamente verdes sombreiam a grama e deixam uma ou outra folha ser levada pelo fraco vento. É acima das minhas expectativas.
– Uau, é um pouco maior do que nas fotos. E isso porque tem só três quartos – papai comenta, se aproximando e colocando a mão direita sobre os olhos de maneira a protegê-los do sol.
– É grande mesmo – reitera mamãe. – Mas venham, meus carregadores. Mamãe precisa de ajuda com as malas – cantarola e senta em uma das malas maiores.
– Ah, vamos lá Gui, vossa majestade nos espera – papai comenta brincando.
– Vossa majestade sabe que quase todo o peso das malas é das roupas dela? – retruco dando meia volta, retribuindo o riso do meu pai.
– Vossa majestade tem ouvidos, sabiam? – minha mãe responde.
Papai lhe lança um sorriso, pegamos o restante das malas e as levamos até a porta da frente. O taxista vai embora, silencioso como uma sombra. Eu deixo a bagagem encostada na porta de entrada. Eu e mamãe esperamos inquietos, parados olhando para o meu pai. Finalmente vamos poder ver a casa.
– O Fernando e o pessoal da mudança arrumaram a primeira leva dos nossos móveis nos lugares certos, então deve dar pra ficarmos até o resto das coisas chegarem amanhã – papai diz enquanto puxa um molho de chaves. Passa as chaves prateadas entre os dedos uma por uma.
– Espero que tudo já esteja bem arrumado, estou simplesmente sem energias para arrumar casa numa hora dessas – mamãe comenta colocando uma das mãos nos quadris. Limpa a testa seca com as costas da mão.
Papai lança um olhar curioso para ela, levanta uma sobrancelha e dá uma pequena, mas gostosa risada. Ele escolhe a maior chave do molho, a dourada e redonda, e a encaixa na fechadura, girando-a lentamente. Papai aproveita cada segundo de suspense, movimentando a mão em câmera lenta. Um estalo reanima a curiosidade e papai parece satisfeito. Ele gira lentamente a maçaneta, tão lentamente quanto girava a chave, e empurra a pesada porta de madeira com a palma da mão até ela estar completamente aberta.
Dou dois curtos e atrapalhados passos para ser o primeiro a entrar. Há um cheiro inconfundível de móveis novos e aromatizante. Tateio a parede com a mão espalmada até acertar o interruptor e a luz se acender. A visão do lugar é incrível. Não é gigante como parece ser, mas ainda assim é enorme. Uma sala espaçosa com dois sofás cinzentos, um de dois lugares e outro com quatro lugares, apontados para uma televisão pendurada na parede branca, em cima de uma grande estante de madeira envernizada. À direita uma escada em madeira escura, similar ao granito, sobe em diagonal até o andar de cima. Ainda embaixo, avanço em passos curtos, devagar, olhando para todo o lugar. É a primeira vez que experimento uma mudança de casa e tudo parece simplesmente muito novo e diferente. Atravesso a sala e sigo por um corredor estreito entre a escada e a área da televisão. No meio do corredor há uma porta com detalhes talhados na madeira, um pouco aberta, pelo menos o suficiente para perceber que é um banheiro. Chego ao final do corredor e encaro a cozinha mais ampla e moderna que já vi na vida. Armários brancos colados nas paredes, uma pequena bancada subindo do chão quase esconde a área onde um fogão prateado se encosta na parede, ao lado da vasta pia. Mamãe vai pedir o divórcio e se casar com o fogão, tenho certeza. Uma mesa larga de mármore, protegida por uma fina película de plástico, ocupa grande parte da cozinha, assim como seus três pares de cadeiras. Ao fundo da cozinha, uma modesta porta de alumínio que deixa alguns raios de sol jorrarem para dentro me diz que guarda o quintal. Seguro a curiosidade. Preciso ir ver a parte mais importante da casa: meu quarto.
Giro nos calcanhares, entro no corredor e encontro minha mãe, que deve ter ficado contemplando a sala de estar e ia entrar na cozinha. Ela passa por mim animada como sempre, em pulinhos desajeitados. Mal chego na sala e ouço seu gritinho agudo de pura felicidade. Deem doces a uma criança e uma cozinha para minha mãe.
– Gente, eles até fizeram as compras que eu pedi! Tem tudo aqui! – ouço-a dizer da cozinha. – Marcelo, me lembre de fazer um preço especial pro Fernando quando ele quiser comprar perfumes para ele ou para a mulher dele.
Papai me olha com um sorriso que parece dizer "você é quem manda". Ele ainda contempla a sala e os mínimos detalhes, parecendo satisfeito. Aproxima-se de mim ainda olhando o lugar.
– E aí Gui, o que achou da casa? – pergunta enquanto mexe nos meus cabelos. Ele olha para minhas orelhas.
– Só vi a sala e a cozinha, vou ver os quartos ainda – digo, arrumando os fios de cabelo que meu pai deixou desarrumados... pelo menos mais desarrumados do que costumam ficar.
– Falta apenas limpar e dar uma nova pintura – murmura. Claro, esqueci da sua estranha mania por limpeza.
Papai ignora o corredor atrás de mim e segue para as escadas à direita. Ele as sobe com a agilidade de uma criança e, já no andar superior, faz um sinal com a mão para que o siga. Subo as escadas de madeira até parar do seu lado. O andar de cima é ainda mais bem iluminado que o de baixo, graças às três grandes janelas de vidro à direita. Nos deparamos com um longo corredor enfeitado com um tapete macio e igualmente longo. Três portas de madeira escura e lisa seguem pela esquerda, com espaços consideráveis as intercalando. Maquino em minha cabeça qual deve ser o meu. Para ter acesso à janela da frente da casa eu preciso ter o quarto da primeira porta, pelo menos com uma análise prévia da casa. Mesmo que não seja esse, eu já o quero.
– Pai, posso ficar com esse quarto? – pergunto. Olho para os lados, sem encontrá-lo. – Pai! – grito pelo corredor.
– O quê? – ouço ele gritar dentro do quarto ao lado do que eu queria.
– Posso ficar com o quarto da primeira porta? – grito de volta.
Ele mantém um silêncio por poucos segundos.
– Ah, pode. De manhã o sol bate de frente na janela dele de qualquer forma – papai termina a afirmação com uma gargalhada.
Ele realmente merece essa promoção, ele pensa em tudo! Agora eu vou ter que acordar junto com o sol toda manhã, mas pelo menos vou ter uma boa vista da rua.
Com meu quarto já garantido, só falta dar uma olhada no meu templo de privacidade. Meu antigo quarto só poderia ser explicado como uma minúscula caixa repleta de bugigangas, com tão pouco espaço que ninguém duvidaria se eu contasse que dormia em pé. A memória me faz rir. Coloco minha mão na maçaneta prateada e com um pouco de força a puxo para baixo e a porta se abre com um pequeno estalido. Empurro a porta com cuidado e fico encantado com a visão do meu novo quarto. Uma cama grande e nova já com colchão está encostada em um dos cantos da parede de frente para uma televisão moderadamente grande em uma estante com algumas tralhas que ficavam no meu antigo quarto. Uma mesa do outro lado do quarto guarda meu computador e algumas outras coisas; uma prateleira acoplada na parede, com alguns dos meus livros que havia mandado previamente, estão totalmente bagunçados, deitados, inclinados e outros até de cabeça para baixo e abertos. Muitas caixas de papelão estão espalhadas pelo chão do quarto, quase todas cheias, e eu sei que quase tudo são livros, DVDs, cadernos, mangás e meus jogos de video game. Vai dar um trabalho enorme para poder arrumar tudo.
Pego minha uma das alças da minha mochila, tiro-a das minhas costas e a jogo em cima da cama. Ah, que alívio bom. Tiro minha jaqueta e a jogo por cima da mochila. A falta de um ar condicionado ligado está começando a me fazer suar. Me viro para o ponto mais atrativo do quarto: a janela um pouco empoeirada, escondida por duas finas cortinas, quase transparentes. Primeiro procuro o controle do ar condicionado e o encontro em cima da mesa do computador. Ligo o aparelho, que faz um som cansado e parece querer parar, até que finalmente funciona silenciosamente, refrescando o ambiente. Balanço um pouco minha camisa de mangas longas para ficar mais solta e ando em direção à janela, que não está longe. Empurro as cortinas para os lados e dou uma boa olhada.
É bem melhor do que imaginava. Eu já sabia que o bairro ficava em uma zona um pouco mais elevada, como em uma subida, e que estar no segundo andar da casa já seria uma ajuda mas é muito melhor do que eu imaginava. Posso ver quase toda a rua, posso ver mais ainda a casa que fica em frente à nossa e as que ficavam ao lado dela. Mas melhor do que elas, é poder ver uma bela área verde que se estende muito atrás delas. Abro as trancas da janela e puxo a janela de correr para o lado. O vento morno entra e refresca, com um cheiro de folhas. Sinto na pele uma leveza que ainda não tinha sentido. É renovador.
– Gui! Você já viu a cozinha? Acho que vou pegar o colchão do meu quarto e botar lá. É enorme e toda equipada! – mamãe diz apressadamente, passando pela porta do meu quarto como um raio, com um sorriso de orelha a orelha.
– Se quiser ajuda, me chama! – aviso, ainda encostado na janela.
– Ah, Gui – mamãe diz parando na minha porta, colocando apenas a cabeça e uma mão para dentro do quarto. – Arruma o resto das suas coisas, amanhã nós vamos sair pra comprar umas coisinhas novas pra quando sua escola começar. Daqui a duas horas mais ou menos eu vou fazer uns sanduíches para o jantar – disse já saindo, empolgada, sem nem ouvir minha resposta.
Lanço um sorriso mesmo sabendo que ela não vai ver. Está tudo parecendo bem familiar, calmo e devagar, do jeito que eu gosto. Levo minha mão até meu cordão da sorte e o seguro como costumo fazer quando quero me sentir seguro. É apenas uma pequena corrente com um emblema prateado em forma de escudo, mas é como um se eu pudesse extrair coragem dele. Enquanto seguro meu cordão dou uma outra olhada pela rua e aperto um pouco a visão para ver prédios distantes dos mais variados tamanhos, pequenos pontos de vegetação e o sol alaranjado se preparando para descer. Acho que passei tempo demais tendo devaneios.
Viro-me e olho uma das caixas cheias de coisas e nem preciso me abaixar para pegar as coisas que tem dentro dela. Livros, roupas, objetos de decoração, objetos de higiene, carregadores e todo tipo de tralha pode ser encontrada ali. Começo a arrumar o quarto, colocando as coisas em seus devidos lugares. Não tenho que me preocupar com falta de espaço e, sem muito trabalho, o meu quarto já parece um quarto mesmo... não o antigo, que era uma bagunça, mas um quarto.
O sol ainda não se pôs e ainda está claro o suficiente. Não tenho muito o que fazer agora que minhas coisas estão arrumadas. Tremo só de pensar em minha mãe me chamando para ajudá-la com suas coisas. Não ficaria surpreso se o avião não decolasse com o peso das suas quatro malas,. Lembro que papai falou um pouco sobre este conjunto de casas durante uma semana. Tio Fernando, que na verdade é um antigo amigo do meu pai que se mudou para cá há alguns anos, procurou e encontrou essa casa. Ele havia dito que era perfeita, que estava próximo do colégio onde ele queria me colocar, perto da delegacia e que por si só tinha bastante coisas para se fazer. Não posso mentir, a casa é realmente incrível, mas não pude ver nada de muito especial nos arredores. A curiosidade é atiçada... deve ser a energia da mamãe. Deixo minhas coisas na mesa, levando comigo apenas meu celular, saio do quarto e desço de maneira acelerada as escadas.
– Mãe, vou dar uma andada – falo para o ar.
– Gui, cuidado, daqui a pouco vai escurecer e eu não te quero por aí de noite – responde minha mãe da cozinha. – A gente ainda não conhece o lugar.
Essa é a questão, mãe. Apenas abro a porta da frente e ainda consigo ver o sol, devo ter uma hora ou mais para descobrir meu conjunto. Ainda não sei se conjunto é a palavra certa, parece mais um pequeno bairro, só que bem organizado. Pelo que meu pai disse e pelo que vi no taxi, seguindo pela esquerda vou chegar na rua principal que liga o nosso conjunto ao resto dos outros conjuntos que também se parecem um bairro. Do outro lado dessa rua é a área verde que me encantou tanto, ele disse que ela se estende do começo ao fim, então não deve ter nada de especial para se ver. Decido ir pela principal e ver o que mais tem de interessante por aqui. Caminho até lá com as mãos nos bolsos e até deixo um singelo sorriso brotar no meu rosto. Eu precisava muito dessa caminhada. Chegando à rua principal, vejo algumas pessoas andando apressadamente, com sacolas nas mãos, exatamente como na avenida. Deve ser bem movimentada a rua principal. Alguns ônibus passam e param na parada logo na esquina da minha rua. Perfeito, até o transporte aqui é fácil. Existem várias lojas pequenas na rua principal: uma sorveteria fechada, um salão de beleza, uma pet shop, mercadinho, pizzaria, loteria, papelaria e até algumas lojas de roupas independentes. Fico abismado com a quantidade de serviços tão próximos de mim. É como viver ao lado de um shopping. Continuo seguindo pela principal, subindo a rua e vislumbrando mais todas as opções que facilitariam minha vida. Tio Fernando não estava mentindo, esse lugar é perfeito. Após alguns minutos de caminhada pela principal, chego a um ponto onde meu conjunto acaba e devo decidir se sigo pela direita e sigo para o tal outro conjunto ou sigo pela esquerda e vou para, creio eu, outro conjunto. Meu curto passeio chegou ao fim.
Com o canto do olho vejo uma entrada curiosa, toda adornada com objetos cor de rosa, lilás e roxos com tanta purpurina que me lembra um trabalho de artes de uma criança do primário. Há uma espécie de símbolo estranho e mal feito em cima da entrada. Pela curiosidade, sigo até aquela entrada estranha, do lado direito da principal, quase no final da rua. Ao chegar na entrada, sinto um cheiro fraco de incenso e ervas aromáticas que chega a ser agradável. A luz é fraca, mas a purpurina no chão faz parecer que milhares de pequenas luzes acendem e apagam rapidamente. Um carpete vermelho e felpudo enorme me indica a entrada do lugar, que fica um pouco mais à frente. Há uma enorme placa em formato de olho na misteriosa porta pintada de vermelho e em cima do olho uma pequena plaquinha com algo escrito. A fraca luz de uma única lâmpada não ajuda muito. Chego mais perto da plaquinha e me concentro um pouco para entender a letra exagerada e cuidadosamente escrita com detalhes redondos.
– Irmã Rose... cartomante – leio apertando os olhos. – Parece interessante.
Nunca havia ido a uma cartomante ou astróloga, apesar de sempre ter tido vontade. Levanto o pulso para perto do rosto e vejo o horário. Ainda há tempo para isso.
Abro a pesada porta e vou entrando lentamente naquele lugar estranho e me deparo com uma pequena sala redonda. O cheiro de incenso vai ficando cada vez mais forte, mas não é tão enjoativo quanto o que estava do lado de fora. O lugar é incrivelmente rosa, tão rosa que chega a doer minha vista, com cortinas coloridas e floridas igualmente rosas que não tapam nenhuma janela. Várias velas espalhadas pela sala pequena dão um toque misterioso e clássico de cartomante, mas nenhuma acesa. Curiosamente, mesmo com as velas, tem um ar condicionado em um dos cantos que deixa o ambiente agradável. Algumas pequenas estantes espalhadas me impedem de distinguir qual a cor da parede. Há uma mesa redonda de vidro coberta por inúmeros babados de várias estampas e cores diferentes. Duas cadeiras grandes e estofadas completam o espaço, uma de cada lado da mesa. Mas nada da tal irmã Rose. Olho para os lado e não vejo ninguém, apenas mais panos coloridos e velas aromáticas.
Um barulho baixo vem do meu lado direito e me viro para ver o que é. Uma cortina quase transparente com diversas contas e vários outros objetos aleatórios eram iluminados por uma luz que vinha mais adiante pelo seu corredor. Não sei como não vi essa entrada antes. O barulho começa a ficar gradualmente mais alto e o reconheço como o som de passos se aproximando. Toc, toc, toc, o barulho vai aumentando. Fico ali esperando seja lá quem for aparecer. Uma mão cheia de anéis enormes rodeando dedos finos e longos, com pulseiras finas e douradas no pulso afastam metade das contas para um lado. O cheiro de perfume se apresenta antes da entrada de uma mulher esguia, segurando um copo de macarrão instantâneo, entrar na sala, olhando fixamente para o celular na outra mão. A mulher é quase da minha altura, morena com cabelos fartos e ondulados cobertos na parte de cima por uma bandana vermelha com pequenos medalhões dourados. Ela usa uma camisa folgada caindo nos ombros e uma saia longa com mais babados que sua mesa. Seus braços estão cheios de bijuterias que fazem barulho sempre que os movimenta. A mulher levanta a cabeça e me olha por um segundo apenas antes de dar um grito histérico. Meu coração dispara e quase caio para trás. Ela termina seu grito agudo e fica ofegante por um instante, coloca sua mão sobre o peito e respira fundo, ainda me olhando.
– Meu Deus, minha criança, não assuste os outros assim, quase eu derrubo meu macarrão – diz a mulher batendo repetitivamente em seu peito.
– De-Desculpa, eu achei que tivesse alguém aqui – respondo, tentando me recompor do susto.
–Ah, pelo amor de...
Ela suspira e anda até uma das cadeiras, a maior e com mais detalhes. Colocou seu copo de macarrão em cima da mesa e o fecha com a tampa que o acompanha. Ele aguarda alguns segundos sentada e faz um sinal com a mão para que eu me aproxime, então obedeço e puxo a enorme cadeira estofada. Sento-me, ficando de frente para ela. A mulher entrelaça os dedos e os coloca em frente ao seu rosto, apoiando os braços na mesa pelos cotovelos. Me olha analiticamente com aqueles olhos escuros e com excesso de rímel. Agora posso ver melhor suas feições. É jovem, de pele parda e os lábios vermelhos de batom. Deve ser mais nova que meus pais.
– Então, querido, quais aflições esse seu coração traz para a Tenda da Mãe Rose? – pergunta ela com um inesperado sotaque estranho.
Arqueio uma sobrancelha pela surpresa da voz, e ela parece entender.
– Qual é a do sotaque? Tenda? E não era irmã Rose? – pergunto.
– Os clientes gostam do sotaque, e como a maioria que vem aqui tem mais de vinte e cinco anos, eu prefiro ser chamada de irmã, mais velha o mais nova. Mas você parece ter menos de vinte, então pode me chamar de Mãe Rose – continua ela com o sotaque gritante. – Tenda, meu amor, é onde você está, o meu local de trabalho.
Eu, que gosto de coisas como astrologia e essas coisas que as pessoas acham loucura, sei como todos já tem uma visão de que a cartomante tem que ser uma mulher latina e estar vestida como a mulher na minha frente. Duvido que ela goste de se vestir como uma cigana de cinco séculos atrás.
– Não precisa do sotaque... Não precisa mesmo – digo.
Ela suspira, como se um fardo fosse tirado de suas costas. Tira sua bandana e enterra os dedos cheios de jóias nos cabelos, os soltando mais.
– Finalmente alguém normal vem me procurar – diz ela em tom de alívio, tirando também as dezenas de pulseiras e anéis, os colocando em um pequeno baú atrás de sua cadeira. – Mas então, colega, qual seu nome? – pergunta ela, descansando seus braços sob a barriga, me olhando com um sorriso. Sua voz também voltou ao normal.
– Meu nome é Guilherme, e o seu? – pergunto.
Ela inclina a cabeça para o lado e franze o cenho.
– É Rose, ora.
– Não, não é – retruco. – Assim como o sotaque e os adornos, seu nome também é puro marketing.
Ela deixa escapar um sorriso discreto.
– Ah, você é mais inteligente do que parece – fala ligeiramente surpresa. – Meu nome é Sabrina, mas me chame de Rose mesmo, aqui eu prefiro ser chamada assim. Mas voltando ao assunto, meu querido, em quê essa pobre e linda mulher mediúnica pode lhe ajudar? – diz dramaticamente.
– Bom, eu não vim por nada em especial. Estava andando para conhecer o conjunto melhor e acabei aqui. Me mudei pra essa cidade hoje – digo, lhe dando um sorriso sem jeito.
– Espere, você se mudou pra cá hoje?
– Sim.
Rose se aproxima e me encara. Ela foca em meus olhos por alguns instantes e toma a minha mão na sua antes que eu perceba, e a analisa por alguns instantes.
– Isso...
Ela junta as palmas das mãos rapidamente, fazendo um barulho abafado. Seus olhos se iluminam rapidamente e ela se levanta da cadeira, virando-se desastradamente em um rodopio que faz sua saia cheia de babados dançar no ar, e vai diretamente para o balcão que fica atrás de sua cadeira. Suas mãos enlouquecidamente procuram por algo.
– Querido, então isso só pode ser obra do destino – diz sem me fitar. A animação de sua voz é indistinguível.
Rose se inclina um pouco, fica de costas para mim e parece procurar algo no meio de suas tralhas. Ela se vira novamente para mim, parecendo vitoriosa, segurando uma caixa de madeira perfeitamente entalhada, com vários desenhos de lua, sol e estrelas. Aproxima-se e volta a se sentar em seu lugar, colocando a caixa no meio da mesa. Rose passa seus dedos gentilmente pela caixa de madeira como se fosse um tesouro há muitos anos escondido e param em cima de uma pequena trava metálica, que ela delicadamente abre. Estou extremamente curioso, olhando para a caixa como se nunca tivesse visto nada parecido. Rose examina o conteúdo, que não consigo ver, e depois olha para mim, com um sorriso misterioso. Ela leva sua mão direita até o interior da caixa com o cuidado que se tem ao pegar em uma peça perigosa ou altamente frágil e puxa uma caixa menor feita de papel, começando a admirar o objeto que tinha em mãos. Eu começo a admirar aquela caixa sem significado também.
– Este, meu amor, é um baralho que uso apenas quando vejo que o futuro realmente pode ser lido. Muitas vezes uma leitura não funciona porque as estrelas são relutantes em compartilhar o que sabem, sabia? – fico confuso e não entendo nada, mas aceno com a cabeça. – Apenas pessoas especiais que fazem o destino se mover a seu favor podem ter seu futuro lido por essas cartas – diz ela, parecendo maravilhada com a situação. – Quando o destino o trás até mim, é uma pista. Este ser seu primeiro dia nesta cidade e eu ter tido uma premonição é outra pista. O brilho que vejo em você é a última pista que eu preciso para ter certeza que posso ler seu futuro – continua ela, gesticulando com as mãos. – Existe uma certa revolução em nossas vidas quando encaramos uma mudança radical. Na astrologia, a cada círculo solar, ou seja, a cada aniversário, um ano novo guarda surpresas para nós. Deixe-me adivinhar... você recebeu a notícia da mudança no mês do seu aniversário.
Nossa, essa mulher é boa. Seus olhos brilham quando lê em meu rosto que acertou.
Estou realmente abismado com a seriedade e paixão dela pela cartomancia. Ou essa mulher é incrivelmente dotada ou incrivelmente doida. Rose cuidadosamente abre a caixa de papel com suas longas unhas pintadas e retira várias cartas longas, que logo embaralha em sua mão. Rose as coloca deitadas na mesa e, com um movimento da mão, as coloca em forma de arco.
– Querido, pegue uma – pede ela, abrindo os braços, sorrindo de satisfação.
Respiro fundo, sentindo o leve aroma dos incenso. Levo minha mão até a mesa e fico intimidado com a situação. Fico em dúvida sobre qual carta escolher, todas estão viradas de cabeça para baixo, deixando à mostra apenas um desenho detalhista e bem feito de uma estrela. Encaro todas aquelas cartas e uma me parece chamativa, apesar de ser idêntica a todas as outras. Pego-a com a ponta dos dedos e a viro para ver o que é. Na carta, um homem sorridente carrega uma trouxa e caminha por um lugar deserto. Dou a carta para Rose. A cartomante segura-a com a ponta dos dedos, vê e abre um sorriso maior ainda.
– Eu sabia, minha criança! O destino nunca brinca! Você tirou O Louco! – fala tão animadamente e em um tom estridente que me assusta. – Ah, quanto tempo eu não faço uma leitura tão clara.
Não sei em que mundo ela vive, mas uma carta chamada de louco não me parece algo bom o suficiente a ponto de se comemorar. Ela namora a carta por alguns instantes e tento parecer tão animado como ela.
– E o que isso significa, Rose? – pergunto um pouco ansioso.
– Acalme-se, jovem. Precisamos de mais duas cartas para ter uma leitura precisa – explica, colocando a carta do Louco na mesa.
Olho novamente para as várias cartas e, sem muita demora, pego uma que me pareceu interessante, mesmo sem nenhum motivo para isso. Eu a puxo e encaro atentamente o desenho na carta. Inicialmente penso ter pego a carta de forma errada, mas após alguns instantes contemplando a figura, percebo que a segurava corretamente. Um homem barbudo pendurado de cabeça para baixo, sendo suspenso por uma corda atada em seu pé, está desenhado na lâmina. Apesar de sua situação, o homem não parece desesperado nem triste. Entrego a carta para Rose, que novamente parece maravilhada.
– Sim, sim! Entendo – diz para si mesma. – Vamos lá querido, pegue a última. Estou ansiosa! – pede, colocando a carta ao lado da primeira e voltando a me olhar animadamente.
Estou um pouco temeroso. Minhas duas primeiras cartas não pareciam muito boas, apesar da animação de Rose. Relutantemente, rastejo minha mão pela mesa para segurar alguma carta qualquer. Não quero tirar nada parecido com O Louco ou com o pobre homem. Dessa vez nenhuma me chama a atenção em especial. Sinto-me perdido enquanto procuro qual carta escolher. Pego uma aleatória e a viro para ver se dessa vez o estrago havia sido muito grande. Não parecia muito ruim. A imagem era de uma mulher de olhar sereno, segurando um leão pela cabeça. Entrego a carta para Rose, que parece surpresa. Ela aperta os olhos ao olhar a carta, faz alguns movimentos com a boca... parece tentar entendê-la.
– Bom, vamos dar uma olhada. Chegue mais, minha criança – ela manda, ainda olhando para as três cartas.
Puxo a cadeira para mais próximo dela e olho para as cartas que estão colocadas na ordem que foram tiradas.
– Cada carta possui uma história. Cada carta transmite um sentimento. Mas juntas, elas nos contam histórias, entende, minha criança?
– Acho que sim – minto.
– O Louco – Rose diz, puxando a carta e mostrando-a para mim. – A carta do início. No tarô, temos vinte e duas cartas, e O Louco é considerado a carta de número zero e vinte e dois ao mesmo tempo. Ele é o viajante que não sabe seu caminho, mas tem a curiosidade, ou a loucura, de ir atrás de um sonho mesmo sem ter certeza se vai alcançá-lo. Eu o vejo simbolizando sua nova vida aqui e sua nova aventura – termina, colocando a carta em seu lugar.
Rose passa a ponta dos dedos na segunda carta, a do homem pendurado, como se fizesse carícias. Seus olhos brilham, profundos e concentrados, uma visão apaixonada de sua leitura de cartas.
– O Enforcado – diz ela, segurando a carta de forma que eu possa vê-la de frente perfeitamente. – É uma das minhas cartas favoritas, e combina lindamente com O Louco. O Enforcado, apesar de não parecer, é uma das cartas mais positivas e complicadas ao mesmo tempo, meu jovem. O Enforcado nos diz que seremos colocados em uma posição diferente da que estamos acostumados. O nosso mundo irá virar de cabeça para baixo, mas sabemos que nem todos estão preparados para tal mudança. A parte boa dessa carta é visível quando prestamos atenção na expressão do Enforcado. Podemos ver o mundo de uma forma diferente, nossa visão fica aguçada e coisas que nunca prestamos atenção parecem receber um novo significado, contanto que estejamos dispostos a mudar e percebê-las – Rose termina, olhando em meus olhos e pousando a carta na mesa.
Sua leitura realmente parece interessante, e toda essa história de mudança é bem legal. Mas a última carta chamou minha atenção. A expressão de Rose me mostrava que ela não parecia entender muito bem a situação. Pega a carta delicadamente pelos longos dedos e a segura para que eu a veja melhor.
– A Força, meu querido. A Força é uma carta curiosa, não acha? – pergunta ela, olhando para a carta e rindo um pouco. – Essa carta possui dois significados, como podemos ver pela mulher e pelo leão. Duas forças importantes e mútuas que vivem lutando para ver quem pode dominar. A mulher é a serenidade, a calma, a paciência e a inteligência. O leão, por outro lado, representa a força, a coragem, a energia e o poder. Assim como nós, que precisamos ter ambas as virtudes, algumas vezes uma se sobrepõe à outra, o que causa problemas – fala pousando a carta, mas logo volta a me encarar, agora mais séria. – A questão é que essa carta pode significar um problema futuro. Pode ser que você tenha que exercitar sua força e autocontrole para as situações que virão. Você espera algo em especial desse ano?
– Só calma e tranquilidade.
– Pois também tenha inquietude e energia – avisa-me. – Há algo na Força que não consigo entender, algo que não está claro. Seria um duelo? Bom, eu não sei, meu querido. Você tem que lidar com seus problemas.
– E o que você aconselha? – pergunto, levemente interessado em suas palavras e avisos.
– Algo simples e complexo – diz ela, se aproximando. – Tenha coragem para deixar sombras do passado no passado – ela segura minhas mão com as suas, com tanta força que penso que minhas mãos explodirão. Seu tom diminui até se tornar um sussurro, e me inclino para ouvi-la melhor. – Os nossos medos e inseguranças são os piores inimigos que podemos ter. São demônios que se prendem em nossas costas, e não os percebemos até que sentimos seu peso, mas não queremos nos livrar deles porque preferimos fingir que não são um problema. Confie em si mesmo e nunca perca suas virtudes – levanta-se da cadeira e me encara com tanta energia que posso sentir o toque de seu olhar. – O mundo pode ser intimidador, ah, ele é. No entanto, se encontrarmos pessoas dispostas a dançar conosco, quem sabe esses demônios acabam se desprendendo, não é? – termina com um sorriso sincero.
Ajeito-me na cadeira e começo a pensar nas cartas e na leitura de Rose. Há coisas que prefiro deixar onde estão... onde não fazem mal a ninguém. Enquanto ela descansa os pés, encostando-os em uma outra cadeira que está do seu lado, pega novamente seu copo de macarrão, puxa um garfo que estava guardado em uma gaveta atrás dela e começa a comer, parecendo satisfeita com seu dever cumprido. Me deixo afundar na cadeira macia, sinto o cheiro suave do incenso e relaxo um pouco. Preciso de um tempo para digerir tudo isso.
– Nossa, é muita coisa mesmo – digo, aliviado, para Rose. – Essa leitura pode acontecer em quanto tempo?
– Ah, amor, eu não sei, quem tirou as cartas foi você – tenta dizer da melhor maneira, com a boca cheia de macarrão. – Mas acho que essa leitura foi apenas uma apresentação do que está por vir, então deve acontecer em pouco tempo. Eu chutaria que pode acontecer nessa semana que vai começar, ou na outra. Quem sabe? – explica, ainda mastigando seu macarrão.
Ainda sentado na cadeira, fico pensando comigo mesmo. Tudo isso ainda no começo da minha mudança. Começos, reviravoltas e dualidade, é muito mais do que esperava ser sombra e água fresca. Ah, para ficar melhor, só mesmo um romance. Não sei o que vai ser, mas vou tentar aproveitar ao máximo. Os anos que se passaram em minha vida foram normais no que posso dizer. A vida era resumida em escola e pequenos acontecimentos cotidianos, nada pelo que se fazer tumulto, e acho que fui acostumado com a normalidade e monotonia. Quem sabe meus pais realmente estavam certos sobre essa mudança ser necessária? Meus pais! Não posso demorar muito ou meu pai vai acionar a polícia para vir atrás de mim... ou pior, minha mãe vem atrás de mim.
– Então, Rose... quanto eu te devo? – pergunto, colocando a mão no bolso, pronto para pegar o dinheiro que meu pai havia me dado no aeroporto.
Rose ainda sugava o macarrão do copo e me olha com seus olhos escuros. Mexe em uma mecha de seus cabelos volumosos e ondulados enquanto mastiga e parece pensar por um momento.
– Nada, querido – abana a mão. – Faz muito tempo que eu não faço uma leitura tão boa e certeira assim. Você me paga da próxima vez que vier aqui. Quero que me conte como tem sido sua vida. Pelas cartas, parece que vai ser bem interessante – comenta, guardando o copo vazio.
– Com certeza.
Levanto-me da cadeira e aperto sua mão com um sorriso de felicidade. Sua leitura pode ter sido dramática e exagerada, mas não posso dizer que não foi divertida. Rose é uma pessoa muito interessante, com certeza. Me viro para ir embora, desviando da enorme cadeira estofada, quando a ouço me chamar.
– Guilherme! Bem-vindo à minha cidade, divirta-se.
Rio um pouco e dou um aceno para ela. Saio da sala, passando pela porta de cor berrante e voltando para a rua, que está começando a ficar escura. Pareceu que horas se passaram lá dentro, enquanto que aqui fora está do mesmo jeito. Ela possui ótimos incensos, mas o cheiro puro do ar daqui é insubstituível. Volto pelo mesmo caminho. Dessa vez decido parar no meio do trajeto para me sentar em um dos bancos de concreto espalhados estrategicamente pela imensa rua para descansar um pouco. O movimento de pessoas diminuiu um pouco, então puxo meu celular e vejo algumas notificações. Meus amigos da outra cidade estão animadamente conversando em nosso grupo fechado, a maioria me perguntando onde eu estou, se já arrumei minhas coisas e se já esqueci deles. Não posso deixar de dar um sorriso ao ver o drama dos meu colegas. Eu não sou do tipo que checa o celular a cada cinco minutos, então sempre me dão um puxão de orelha por demorar horas para visualizar e responder. Começo a conversar animadamente com eles e acabo perdendo a noção do tempo, olho em volta e percebo que o sol está terminando de desaparecer no horizonte, deixando o céu em um tom laranja-escuro, quase vermelho.
– É, melhor voltar ou ela me mata – digo para mim mesmo, bloqueando o celular.
Me levanto do banco dando uma pequena espreguiçada. Faço meu caminho vagarosamente até minha rua, aproveitando o ar da noite. Chego até minha rua, não muito longe da Tenda, e sigo até minha casa. Está bem mais bonita com as luzes ligadas, assim como as outras. As árvores recebem feixes de luz brancos que as deixam mais vivas do que com a luz do sol. A casa parece mais colorida, parece um estande de venda de imóveis. Atravesso pela pequena calçada de concreto que leva até a porta, observando a vizinhança. Tento abrir a porta da maneira menos barulhenta possível, ou minha mãe vai arrumar algo para que faça. Subo as escadas na ponta dos dedos e chego em meu quarto. Mamãe se deu ao trabalho de rearrumar meu quarto, e agora tudo está perfeitamente organizado. Deito na cama e deixo ela engolir meu corpo cansado. Não há nada melhor que isso.
– Guilherme, desce pra vir comer! – ouço minha mãe gritar da cozinha.
Essa mulher deve possuir um relógio biológico que sabe a hora em que eu mais preciso de descanso, só para poder me chamar pra fazer alguma coisa. Pelo menos também tem um relógio interno de mãe que sabe quando eu estou com fome. Com todo o esforço do mundo, me obrigo a sair da cama. Troco minha camisa por uma sem mangas, troco minha calça jeans por uma bermuda e desço pela escada com saltos longos, como se estivesse fazendo exercícios. Viro-me para o corredor, imaginando o que ela deve ter feito. Logo sinto o cheiro delicioso dos sanduíches da minha mãe, e assim que entro, a vejo se divertindo com a comida, como sempre. Ela joga as fatias de pão no ar como se fossem panquecas enquanto usa a outra mão para mexer os outros ingredientes do sanduíches em uma frigideira. Presunto e ovos são mexidos sem parar.
– Ah, oi Gui. Pode pegar um da mesa, ainda estão quentes – diz minha mãe, se virando e apontando com os lábios para os sanduíches na mesa. – Seu pai comprou o pão numa padaria aqui perto. Tem tudo nessa rua principal.
Sento-me e pego um dos sanduíches. Uma única mordida é suficiente para que minha boca festeje. Nunca na minha vida eu comi algo que superasse as comidas da minha mãe, desde as mais simples até as mais elaboradas. Tudo que minha mãe faz sai uma delícia, ela pode até fazer macarrão instantâneo virar um prato gourmet. O sanduíche desaparece sem eu nem perceber, e logo pego outro, dessa vez aproveitando mais até que ele também desapareça.
– Mãe, cadê o papai? – pergunto enquanto tomo um gole de suco.
– Hum, seu pai está fazendo uma ligações, conversando com o pessoal da polícia daqui e essas coisas – me responde enquanto mexe a mão fazendo giros, o que significava que tinha mil coisas ainda para falar mas ela provavelmente está com preguiça. Ela acha o trabalho dele chato.
– Ah, sim. Eu vou subir e terminar de arrumar as coisas, ok?
– Aham, deixa que eu limpo aqui, depois eu vou assistir um pouco de Cake Boss e vou dormir, amanhã vai ser cheio – diz, terminando de fazer seu último sanduíche.
Mamãe é viciada em séries culinárias de qualquer tipo, então sempre vem com uma receita nova que aprendeu em algum episódio. Além de séries culinárias, minha mãe é viciada em todo e qualquer tipo de série, sejam de aventura, suspense ou comédia. O Netflix de casa pertence quase que inteiramente a ela.
Eu começo a subir as escadas já completamente satisfeito. Parece até que ficou mais difícil subir, mas com a ajuda do corredor de mão eu consigo. Viro logo na minha porta e me jogo na cama incrivelmente confortável e macia, olhando para o teto que, assim como o resto do quarto, é pintado em azul claro. Seguro meu cordão novamente e sorrio para mim mesmo. Por favor, me traga sorte. Semana que vem, na segunda, minhas aulas começam, e estaria mentindo se dissesse que não estou animado e terrivelmente ansioso. Levanto meu torso e tateio pela cama até encontrar o controle da televisão e a ligo em um canal qualquer. Levanto-me para fechar a janela mas não resisto e me debruço sobre ela novamente.
Dou uma última olhada para o céu, agora escuro com pequenos pontos luminosos. Abaixo do céu, a rua com luzes brancas ilumina as casas coloridas, assim como os carros estacionados dos adultos que chegaram do trabalho.
Eu acabo olhando para a casa na frente da minha. É a que eu tenho uma visão mais clara. A casa é bem parecida com as outras, mas pintada em um curioso tom de laranja. Duas janelas na frente, maiores do que a minha, mas uma delas se encontra completamente escura. Provavelmente quem está naquele quarto já estava dormindo ou simplesmente não tem ninguém. Olho para o relógio. Engraçado, dormem cedo. Meus olhos se fixam na outra janela, cuja luz do quarto chama mais a atenção. Posso ver malmente o interior. Parece um pouco com o meu, com revistas e outras besteiras espalhadas. Não sei, talvez seja o quarto de uma criança ou adolescente. Minha curiosidade aumenta quando aparece um vulto rapidamente em um dos cantos do quarto. Foi rápido demais para que eu pudesse ver, mas era esguio. Espero um pouco, me focando na janela para ter uma visão melhor. Após um ou dois minutos vejo a sombra se aproximar da área da janela, e em seguida aparece um garoto. Ele deve ter mais ou menos a minha idade. Possui cabelos ondulados e bagunçados, num tom loiro ligeiramente alaranjado. Cor estranha para um cabelo. Sua pele clara contrasta bastante com a luz da luminária próxima da janela. Ele anda para todas as direções, indo e voltando, vestindo uma camisa longa e cinzenta, um pouco folgada. Segura um livro grosso, mas logo o deixa em uma mesa para se dirigir à janela e fechar as cortinas.
Será que ele me viu? Tenho que admitir que o garoto chamou minha atenção e fico um pouco aliviado de ele não ter me visto, afinal ninguém gosta de ter um stalker como vizinho. Qualquer coisa, já é um possível amigo.
– A primeira pessoa que eu vejo na minha rua nova é esse menino? Cordão, eu queria um pouco de sorte, mas você já está sendo muito generoso – digo enquanto seguro meu emblema e sorrio. – Assim meu coração não aguenta – rio um pouco.
Balanço a cabeça, ignorando o pensamento. A última coisa que preciso agora é de romances. Pior, de romances fantasiosos.
Encaro o céu pouco estrelado e me decepciono um pouco. A luz da cidade oculta as estrelas e as já raras constelações que tanto gostava de ver. Pelo menos continuo conseguindo ver a constelação de Cruzeiro do Sul e assim posso procurar pela mais interessante... pelo menos para mim. A constelação de Leão, meu signo, é a que mais chama minha atenção. Mamãe gostava de me contar as histórias de cada constelação, logo depois de encontrá-las no céu. Acho que minha admiração pela mitologia e pela cultura grega combina perfeitamente com meu estilo de adorador de histórias. Fico admirando a estrela mais brilhante da constelação por alguns minutos e imaginando como vai ser meu primeiro dia de escola. Odeio ter que admitir, mas fico um pouco inseguro. O medo besta de isolamento e de que tudo vai dar errado vai tomando espaço.
Deixo qualquer pensamento negativo sair de minha cabeça e volto a contemplar minha estrela. Seguro meu emblema e, com um sorriso bobo, decido fazer como nos filmes e livros românticos e fazer um pedido. Fecho meus olhos e peço para ter um ótimo primeiro dia, apenas. Quem sabe me dê sorte e meu pedido funcione.
Fecho as cortinas, tiro minha camiseta e minha bermuda. Desligo a luz e sigo até minha cama macia e confortável. Debaixo do edredom me sinto quente e aconchegado, pensando em coisas aleatórias até que começo a sentir o sono que estava esperando. A última coisa que consigo pensar antes de dormir é meu dia amanhã.
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