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História Revolução Solar - Espero que tenha atenção na medida certa


Escrita por: Gabuleo

Notas do Autor


Todos querem uma vida cheia de dramas e excitações, mas a verdade é que nem sempre é do jeito que queremos, não é? Se segurem porque o ritmo calmo da história acabou, é hora dela realmente começar!

Capítulo 2 - Espero que tenha atenção na medida certa


No final das contas, acho que realmente não fiz um negócio muito bom quando escolhi o quarto da janela. Toda manhã eu acordo junto com o sol, meus olhos sentem-no jorrar seus raios luminosos mais ou menos às seis e meia e só consigo dormir mais quando fico completamente coberto, o que não é muito bom porque esquenta muito debaixo do edredom. Hoje é mais um desses dias em que ele me diz: hoje não, meu amigo. Preciso desesperadamente de cortinas bem grossas e pretas para ter as horas de sono que preciso ou vou acabar criando olheiras naturais grandes o suficiente para ser taxado de gótico. Vou precisar pedir maquiagem da minha mãe. O pensamento não incomoda muito. Mamãe sempre insistiu que eu usasse um pouco de seus cosméticos, sempre dizia que o uso diário, mas regulado, de certos cosméticos fazia muito bem à pele.

Hoje em especial eu estou relevando tudo... tinha que acordar cedo de qualquer maneira para me arrumar para a escola. Ah, o primeiro dia de aula. Levanto-me tentando segurar um bocejo e dou uma espreguiçada para acordar todo o corpo, que parece ainda estar dormindo, e sigo para o banheiro. O chão está incrivelmente frio, o contato com meu pé faz calafrios correrem pela minha espinha e a coragem me deixar por completo. Mais alguns segundos para me obrigar a ficar de pé são mais que o suficiente. Infelizmente, no sábado eu passei a tarde toda ocupado comprando material para a escola, como livros, mochila e aquelas coisas menores como lápis e canetas. Já meu domingo foi todo gasto terminando de arrumar a casa, o resto das minhas coisas, em limpar minhas roupas e ficar assistindo alguns animes e seriados que estavam incompletos.

Entro no banheiro em passos lentos, quase arrastados, tiro minha única peça de roupa e simplesmente me jogo na corrente de água gelada que caía do chuveiro. Se não tivesse feito isso provavelmente teria ficado olhando com a eterna dúvida de me molhar ou não me molhar, sentindo a água gelada nos dedos. Pelo menos assim me esperto mais rapidamente.

Saio do box depois do um banho congelante, puxo a toalha mais próxima e a enrolo em minha cintura. Sigo para o meu quarto, e o ar frio parece congelar minha pele. Com toda a pressa do mundo, procuro uma roupa legal para ir pra aula. Papai já havia me avisado que a escola não obrigava os alunos a usarem um uniforme, mas um pequeno cartão de identificação. Pelo menos assim fico mais à vontade, meu último uniforme coçava tanto e era tão desconfortável que sempre alternava as mãos entre os lápis e a camisa. Continuo procurando por uma camisa que não seja muito chamativa nem muito simples e escolho minha favorita, a azul escura com uma faixa branca na parte do peito e a clássica calça jeans. Calço meus tênis, ponho meu relógio e olho no espelho. Estou pronto para ir pra escola. Arrumo rapidamente minha cama para não ter esse trabalho quando voltar.

Passo pela janela e, como de relance, paro e olho por ela, não para ver a paisagem, mas para olhar para a casa da frente. A janela do garoto de sexta-feira estava fechada e não o tinha visto pela rua durante o final de semana. Ele deve gostar de ficar em casa. Nas raras ocasiões em que eu parei para ficar olhando pela janela, a luz do seu quarto estava ligada, mas com a janela fechada e oculta pelas persianas.

Saio do quarto, desço as escadas e logo sou arrebatado pelo cheiro delicioso vindo da cozinha que me faz levantar levemente a cabeça e sentir um pouco mais o aroma. Aperto o passo e sigo rápido para a cozinha. Meu humor não podia estar melhor.

– Oi Gui, acordou cedo – diz mamãe virando a cabeça para mim, fazendo seus cabelos ondulados balançarem como em um comercial de shampoo.

– Bom, eu tenho aula daqui a uma hora, não é? – digo, sorridente.

– Ah sim, e esse sorriso é pela aula ou pela minha comida? – parece orgulhosa pelo fato de saber que a segunda opção é o motivo.

– Muito engraçado – comento enquanto pego uma torrada doce com canela e dou uma mordida. – Nossa, isso aqui está muito bom!

– Queridinho, desde quando sua mãe não faz coisas maravilhosas? – diz ela enquanto estala os dedos duas vezes pelo ar de um lado para o outro como uma rapper americana. Acho que ela está assistindo muito estas séries.

Engulo o resto do café depois de ver o horário. Pego minha mochila que estava jogada no sofá da sala e coloco nas minhas costas, apressado. Paro por um segundo e faço uma pequena checagem mental para ver se tenho tudo de que preciso: chaves, mochila, celular, carteira, fone de ouvido e cartão de identificação. Tudo está nos conformes, mas eu sinto que falta alguma coisa muito importante. Lembro-me com um lampejo vindo à mente e levo minha mão espalmada até minha testa. Como posso ser tão burro? Eu simplesmente não faço ideia de onde é minha escola, a parte principal de tudo. Quer dizer, me conhecendo eu já devia saber que ia esquecer desse detalhe.

– Mãe, onde fica minha escola? – grito da sala de estar.

Minha mãe vem andando pelo corredor em passos largos e silenciosos, me olhando com seus olhos incrédulos.

– Guilherme, você só não esquece de respirar porque é automático – diz ela com a mão na cintura, ainda segurando uma espátula. – Você não perguntou pro seu pai?

– Eu devo ter me esquecido – digo, dando um sorriso descontraído enquanto mexo no meu cabelo.

– Eu hein, menino. Seu pai disse que é perto, só precisa ir até o final da nossa rua, virar à esquerda, ir até o começo do conjunto e seguir pela direita, deve dar uns 10 minutos andando, de acordo com seu pai. O carro deve chegar amanhã então eu levo você, mas hoje você anda. Tem que malhar um pouquinho, né? – explica ela, me encarando de cima pra baixo, girando nos calcanhares e seguindo de volta para a cozinha.

– Eu estou ótimo assim – digo dando um tapinha na barriga. – Também não faço questão de impressionar.

Ela volta da cozinha e me aponta a espátula.

– Querido, você impressiona mesmo sem querer. Ah nada de timidez, você sempre fica assim, deixa que o pessoal te conheça.

Eu já devia esperar um conselho desses. Mamãe me conhece bem o suficiente para saber como me comporto em lugares que não conheço, com pessoas novas.

– Você sabe, a amizade aparece sem percebermos, mas a inimizade é algo que escolhemos. Eu, pelo menos, prefiro amigos a inimigos, então...

– Tudo bem, – digo rindo e lhe dou um beijo na testa – prometo que não vou ficar tímido.

Forço um sorriso torto, me despeço e saio pela porta da frente. Faço o caminho da maneira como minha mãe me falou e, para minha surpresa, o caminho foi bem prazeroso. O sol estava um pouco escondido pelas nuvens e o clima estava muito agradável, deu até para ver um pouco a vizinhança. Havia uma espécie de praça ou parque onde ficava uma bela área arborizada, um lugar para as crianças brincarem, algumas barracas de lanche fechadas e vários bancos de concreto. Algumas pessoas traziam sacolas de pão de uma padaria próxima, outras apenas faziam caminhada e corridas matinais. Esse conjunto parece bem animado. Devem ter várias pessoas daqui na escola.

Passo um certo tempo pensando sobre o que poderia acontecer hoje na minha escola, se teriam muitos novatos como eu ou se os veteranos seriam legais comigo. Na minha antiga escola sempre acolhíamos os novatos muito bem, mas a experiência de ser um novato era nova para mim, então estou um pouco preocupado. As palmas das mãos suam e as enxugo nos lados da calça.

 Pouco depois de deixar o conjunto, entro na avenida que dá acesso ao nosso conjunto e sigo pela direita, como dito pela minha mãe. Com uma desconfiança desconhecida por mim, observo o fluxo constante de carros indo e vindo, toda aquela agitação de uma grande cidade. Não mais de dois minutos andando e eu já posso ver uma ou outra pessoa que parece ser estudante da mesma escola que eu, todos com roupas diferentes, mochilas e alguns já segurando o cartão, o que deve significar que a escola já está bem perto. Me seguro para não voltar ao conjunto... todos usam roupas que fariam uma rainha se sentir pobre. Marcas, marcas e mais marcas em tudo, adereços requintados e tudo tão descaradamente que penso sentir o cheiro de dinheiro no ar. Engulo em seco e sigo os alunos. Um ou outro aluno parece se vestir de maneira mais humilde, mas até esses poucos humildes, para mim, parecem muito bem vestidos. Devem ser alunos de outra escola.

A escola, na verdade, estava muita mais perto do que eu imaginava. Mal tinha andado um quilômetro desde a entrada do meu conjunto quando vejo onde todos aqueles adolescentes entravam. Meu queixo cai, ignorando meus músculos, e eu não posso culpá-lo. Eu estava procurando por um muro cuja tinta estivesse descascando e o nome da escola já estivesse desbotado, ou até irreconhecível. Ledo engano. De longe achei que devia ser uma empresa ou uma pequena fábrica, mas quando finalmente me aproximo o suficiente para olhar sua frente e observar que nela tem o nome da escola, percebo que aquela construção de três andares, toda pintada em azul e branco, que parece ser gigantesca por dentro é na verdade minha escola... o Instituto de Ensino Francisca Daou. Leio o nome da escola e depois leio o nome no meu cartão, repito esse processo mais duas vezes até não ter mais nenhuma dúvida... É essa minha escola. Entro pelo portão de ferro ornamentado que estava aberto e, assim como os outros estudantes, sigo em frente. Que banco meus pais assaltaram para me colocar aqui? Olho para os lados como uma criança que descobre um brinquedo novo. Do lado esquerdo, passando um pouco os portões, fica a entrada da escola, com largas portas de vidro fosco e roletas logo em seguida. Do lado direito fica um amplo estacionamento e a parte por onde os pais deixam os filhos. Tem tantos carros caros e alguns de luxo... na verdade há um ou outro que sequer consigo identificar a marca. Ainda na frente do colégio vejo que muitos grupos conversam animadamente, duplas de meninas andam de braços dados com tanta força que parecem estar unidas com super cola. Ouço mil conversas sobre o que fizeram nas férias, sobre viagens internacionais, intercâmbios e mochilões com amigos. Sinto-me encolher enquanto passo pela multidão de histórias caras.

Entro no colégio com um pouco de medo, mostro minha identificação a uma das moças que ficam na entrada do colégio e ela me ensina como devo usar o cartão para passar pela catraca. Meu Deus, estou entrando em uma escola ou em um metrô? Se meu queixo havia caído na saída, aqui dentro ele desgrudou da minha cabeça. Talvez sejam necessárias três ou quatro pessoas, uma em cima da outra, para alcançar o teto; o espaço é tão amplo e perfeitamente organizado que por um segundo penso estar em uma casa de festas. Uma dúzia de portas grandes de madeira negra se dividem por entre as paredes e os três pequenos corredores que dão a lugares misteriosos para mim. Uma movimentação anormal se dá aqui, entre professores usando jalecos azuis longos e bordados e alunos desfilando de um lado para o outro. Uma escada larga com degraus de granito se ergue do lado direito, encostada na parede azul. Todos os alunos estão acompanhados, sem exceção. Sustos ocasionais me atingem quando vejo a correria de amigos se reencontrando ou quando ouço os gritos escandalosos de meninas ao ver um conhecido. Eu apenas tento desesperadamente não parecer um novato, mas é muito difícil com uma escola gigantesca como essa. Acalme-se, Guilherme, ponha a cabeça no lugar. A primeira coisa que preciso fazer é ir até a secretaria pegar minha agenda e ver qual é minha sala. A agenda tem todas as informações que eu preciso, onde é minha sala, os horários e as matérias, além de um pequeno mapa do colégio... que colégio precisa de mapa? Aperto o passo no meio daquela multidão de adolescentes até que eu vejo uma forma se sobressair entre eles, um homem bem vestido, de terno cinza-escuro, gravata, um broche prateado com o emblema da escola e um olhar tenro, observando a movimentação. Me aproximo dele para pedir a informação que eu precisava, já que a roupa dele parece indicar que trabalhar aqui. 

– Com licença senhor, você trabalha aqui? – pergunto ao parar diante dele, um pouco nervoso.

O homem é tão alto que precisa abaixar os olhos para me fitar. É uma presença realmente intimidadora.

– Aluno novo? – me pergunta com um sorriso simpático.

– S-sim.

– O que você deseja?

– Eu... Eu preciso saber onde fica a secretaria para saber qual é a minha sala – digo com mais firmeza.

– Ah, sim, – ele aponta com o indicador para cima – a secretaria, diretoria, o auditório e teatro ficam no terceiro andar. A secretaria é a com a porta de vidro.

Agradeço de maneira desengonçada e sigo em frente, passando por várias salas até chegar na escada. Com a agilidade de um gato evito o fluxo contínuo de alunos e me pergunto como podem ter tantos alunos em uma só escola. As escadas parecem ter milhares de degraus, tantos que preciso de alguns instantes para recuperar o fôlego. Chego no segundo andar, que é quase idêntico ao primeiro andar, com uma área enorme no centro e as salas em volta. Este andar é um pouco menos movimentado do que o de baixo, e tem bancos acolchoados espalhados pelas paredes e um banco largo e quadrado no meio. Subo mais um lance de escadas e quando chego no terceiro andar meu celular toca e o pego... é meu pai.

– E aí Gui, como está a escola? – ele pergunta.

– Pai, que escola é essa? Isso aqui é de outro mundo.

Ele ri.

– É bom que seja, porque pelo preço...

– Não precisava dessa extravagância, se for muito caro prefiro ir pra outra escola. Tem outras prioridades com que gastar.

– Não precisa se preocupar com isso, filho. Eu consegui um desconto, tenho um amigo que trabalha aí, então eu pago o mesmo valor da sua última escola, mas com o nível de primeiro mundo... é seu último ano, é bom passar com estilo, não é? – ele ri mais. – Bom, só queria saber se estava tudo bem, eu acabei esquecendo de te dizer onde era... enfim, quando eu chegar em casa quero saber como que foi o dia, aproveite e até mais.

Ah, pai. Os pais costumam ser protetores, mas o fato dele ver tragédias e crimes o dia inteiro, assim como outras coisas, o fez protetor demais. Aproveito que estou com o celular em mãos e dou uma olhada nas mensagens que tinha recebido. A pressa de hoje me fez esquecê-lo, e gosto de ver quaisquer novidades de conversas ou das redes sociais. Não tenho muito tempo antes do primeiro tempo, então continuo andando enquanto olho para o celular. No grupo de conversa dos meus amigos, dois deles estão brigando, Mimi e Felipe discutem sobre alguma besteira que aconteceu na noite anterior. Aperto o passo. Os outros do grupo parecem fingir que nada acontece e apenas observam a briga, e eu rio da situação. Quando penso em digitar algo, sinto um forte baque no lado direito do corpo que me desequilibra e me faz cair, ainda segurando meu celular. Me vejo caindo em câmera lenta. É curioso como nossos sentidos ficam diferentes em uma situação dessas. Sinto minhas nádegas acertarem o chão e meu braço doer ao tentar amortecer o impacto da queda. Demora um pouco para perceber que tinha trombado forte com alguém, e demoro um pouco mais para encontrar com quem. Um trator me acertou? Olho em volta, tentando juntar todas as informações que posso, e vejo um garoto vestindo uma camisa preta com estampa vermelha e calça jeans, também caído na mesma posição que eu. Por sorte sua mochila parece ter amortecido sua queda, apesar de que o impacto deve ter sido dolorido como o meu. Talvez porque a culpa tenha sido minha ou porque sou acostumado a achar que sempre é culpa minha, mas independente de qual fosse a certa, a primeira coisa que faço é me desculpar.

– Nossa, caramba, me desculpa, eu não vi pra onde eu estava indo – levanto-me, sentindo uma rápida dor na palma da mão.

– Qual seu problema, novato? – diz o garoto em tom arrogante, já se levantando, enquanto limpa as calças com as mãos. Sua voz forte deixa claro que não está feliz. Ele para por um segundo para olhar seu relógio grande com detalhes prateados.

– Ah, nada, só... desculpe – digo, um pouco retraído, agora olhando mais atentamente para ele, e o analiso de cima a baixo. Seu cabelo preto e liso se finaliza em um topete mediano, tem olhos incrivelmente escuros e brilhantes. Agora que está em pé, percebo que é um pouco maior que eu, com ombros largos e firmes. Seu rosto é sério e duro, mas jovial, só que seus lábios contraídos não ajudam.

O garoto lança um olhar desafiador que me deixa incomodado. Teria ficado completamente vermelho se não tentasse me acalmar. Nos encaramos por mais tempo do que eu esperava, mas por algum motivo não consigo cortar esse inquietante contato visual. Parecia que tentávamos ler um ao outro, eu falhando magistralmente. Seu olhar tem informações demais para que eu possa processar... o que ele está olhando? É invasivo demais. Deixo seus olhos por um instante e observo em volta. Algumas pessoas estão paradas ao nosso redor, observando toda aquela situação com expressões atentas, como se assistissem ao final de um show. Ele percebeu também.

– Tanto faz – resmunga, se virando pra ir embora. Ele vacila no primeiro passo de maneira quase imperceptível, mas eu percebo. Merda, ele deve ter caído pior do que eu.

– Espera, você não está machucado? – pergunto assim que me recomponho. Todos continuam olhando, estáticos. A pergunta acabou saindo sem eu sequer perceber. – Caso tenha machucado a perna, eu sinto muito... acho que eu tenho um remédio pra isso.

Ele interrompe sua caminhada e vira apenas o rosto para me encarar com o mesmo olhar sério de antes, e sinto um pouco de curiosidade também. É um pouco perturbador encarar seus olhos pois eles me analisam de cima a baixo. Ele vira todo o corpo, um mão segurando a mochila, e começa a andar novamente em minha direção até ficar a apenas um passo de distância. Ele é maior do que eu pensava.

– O que você quer? – me pergunta com o mesmo olhar desafiador. Sua voz sibila e sinto um pequeno calafrio correr por minha espinha. Aquilo com certeza subiu para um quase tom de ameaça. Um medo irritante vai lentamente se instaurando mas, antes que possa recuar, vejo que ainda tem pessoas em volta. Prefiro apanhar do que me mostrar como fraco... é uma questão de honra.

– Perguntei se você estava machucado – respondo, agora mais sério.

Ele dá um sorriso de canto de boca, mas não é de simpatia, nem de alegria, nem sarcasmo... sinceramente, não dá para saber quando seus olhos, que deveriam ajudar nisso, não têm expressão. Eu continuo parado, sem mudar meu rosto por um segundo sequer. Acho que essa questão de honra não foi uma boa ideia.

– Você é novo aqui, então não vou me dar ao trabalho de te mostrar como as coisas funcionam – ele diz em um tom assustadoramente calmo, quase como um sussurro.

O clima fica tenso e a gravidade parece empurrar com mais força, eu luto para ficar de pé. Ainda devem ter aproximadamente nove pessoas nos olhando, prendendo a respiração e esperando algo acontecer.

– Eu só queria saber se você estava bem – respondo de forma bem clara, sem recuar nem um centímetro.

Se o clima estava tenso antes, agora ficou pior ainda, até consigo ouvir alguns puxarem o ar com a boca e outros comentarem coisas como 'não acredito que ele respondeu ao Nathaniel'. Bom, pelo menos nisso já descobri que seu nome é Nathaniel... com certeza o nome não combina com a pessoa, eu diria que se chama Brutus ou Rex ou qualquer nome que se possa dar a um Pitbull.

– Você ainda não entendeu como as coisas funcionam aqui, não é? – Nathan pergunta como em um sussurro, ainda com aquele sorriso de canto de boca que já aprendi a detestar.

Na verdade creio que entendi, acabei de trombar com um cara arrogante e metido a forte que está querendo me intimidar. Mas não vou me rebaixar a esse nível, ainda é meu primeiro dia de aula pra já estar arrumando confusão. Apesar de não querer recuar, minha mente começa a funcionar mais calmamente agora. Não posso me meter em confusão no primeiro dia, meu pai me colocou nessa escola cara e parece que há pessoas aqui que tem contato com ele, o que significa que qualquer passo errado que eu der, se alguém ficar sabendo, meu pai também vai saber... e uma briga com certeza é algo que meu pai iria querer saber. Melhor terminar o que vim fazer aqui em cima do que ficar nesse confronto que só parece piorar.

– Desculpe, eu tenho que ir na secretaria – digo, movendo minha mão até meu pescoço procurando meu cordão. Antes que ele possa falar, me movo. Mal dou dois passos e Nathaniel me impede de continuar, ele esticou o braço direito na minha frente como uma cancela e continua a me encarar. Os alunos mantém os olhos arregalados, sem sequer piscar, e eu volto a encará-lo, o que parece durar uma eternidade. Minha boca começa a ficar seca, meus olhos tentam ao máximo não se moverem e o resto do meu corpo tenta não tremer. Eu posso ver nele uma vontade gigantesca de não me deixar sair ileso depois de ter ficado inabalado diante dele... ou será tudo da minha imaginação? Essa situação está começando a me dar nos nervos e acabo fechando minha mão em um punho.

Puxo um pouco de ar e me preparo para passar por ele, custe o que custar. Quando estou para tomar uma atitude, do meio de todas as pessoas sai uma garota, de cabelos de ouro presos em um rabo de cavalo, vestindo uma camisa laranja e amarela. Ela vem num pulo, como um raio dourado, e fica ao meu lado e de Nathan. Suas mãos estão espalmadas em frente ao seios em um sinal de paz.

– Ah meninos, não vão querer brigar logo no primeiro dia, né? Faltam só quinze minutos pra aula começar, vamos lá? – a menina disse da maneira mais amigável e animada possível. Ela é menor que eu, mas sua presença é gigantesca. – E vocês aí – ela se vira para a 'platéia' – podem circular.

Nathan olha para a menina com a mesma expressão séria, depois volta seu olhar para mim, com os olhos semicerrados. Abaixa o braço lentamente, se vira e desce pela escadaria. Todos que estavam parados vendo a situação vão se dispersando ou ficam comentando o ocorrido em voz baixa.

Respiro fundo e deixo toda essa tensão sair junto com o ar, relaxando os músculos e espairecendo a mente. Olho para a menina que interrompeu aquela situação e vejo que tem uma expressão serena e pacífica, provavelmente não gosta de brigas.

– Ei novato, o que foi aquilo, hein? – diz a menina loira com um sorriso, em um tom de quem dá uma premiação.

Essa mudança de comportamento eu não esperava, de pacificadora de intrigas a colega feliz foi bem rápida.

– Aquilo? Na verdade eu não sei ao certo o que aconteceu – digo, retribuindo o sorriso, mas ainda um pouco confuso. – Mas obrigado por intervir, é...

– Ah, é Elisabeth... Elisabeth Chagas, mas pode me chamar de Lisa – responde, estendendo sua mão direita para um cumprimento.

– Eu sou Guilherme Arceu, mas pode me chamar de Gui, é um prazer.

Essa garota realmente sabe como transmitir calma e leveza. Seu sorriso sincero me lembra muito o de uma amiga de minha antiga cidade, muito amável e amigável. Ela é assustadoramente parecida com ela, e até mesmo os olhos cor de mel são idênticos aos dela.

– Nossa, que nome chique! Ah, o que você ia fazer na secretaria? – pergunta Lisa com um tom curioso. – Ah, eu, como boa veterana, posso te levar lá. O primeiro dia aqui pode ser bem difícil.

– O-Obrigado. Eu vou ver em qual sala eu vou ficar, estou no terceir...

– Ah! Que legal! Então nós dois vamos fazer o terceiro ano! – ela comenta, sem nem me deixar terminar a frase, lembrando um pouco minha mãe. – Mas não se preocupe, a gente pode ir vendo os nomes na lista que tem do lado de cada sala, só tem quatro terceiros anos, então vai ser rápido.

Eu sequer tenho a chance de opinar, Lisa me pega pelo braço e me puxa escada abaixo tão rapidamente que o máximo que posso fazer é não cair ou tropeçar nos meu próprios pés, mas ela tem muita energia e força. No segundo andar as pessoas já estão entrando em suas respectivas salas de aula, enquanto ela me puxa para a frente de uma sala. Eu nem consigo sentir meu braço tamanha foi a força com que ela me trouxe, mesmo sendo menor e claramente mais leve que eu.

– Ah, não sei se você sabe, mas o primeiro andar é só do pessoal da nona série e primeiro ano, o segundo andar é para o pessoal dos segundos e terceiros anos, então sua sala está por aqui – diz enquanto olha a lista de alunos ao lado da sala quinze. – Bom, não é no terceiro ano um.

– Eu...

– Guilherme, você estava bastante nervoso lá, não é? Quero dizer, óbvio que estaria, mas você estava suando. Você já conhecia ele?

– Não, eu só não me sinto bem quando muitas pessoas ficam me olhando.

– Medo de público? Tem algum motivo em especial? – seus olhos brilham de curiosidade.

– Mais ou menos.

– Foi azar de principiante, aqui tem pessoas o suficiente para roubarem os holofotes, não precisa se preocupar.

Lisa me puxa para a sala logo ao lado com a mesma intensidade e começa a procurar pela lista, seus olhos correm de forma tão rápida que eu posso duvidar que ela está lendo pelo menos os primeiros nomes.

– Ah, aquele garoto de camisa preta com quem você trombou há pouco tempo se chama Nathan. Na verdade o nome é Nathaniel, mas eu prefiro chamá-lo Nathan. Ele veio pra cá na nona série, assim como eu. Ele é bem quieto, mas quando mexem com ele pode ficar um pouco... zangado. Deve ter sido por isso que ele foi expulso da sua última escola – comenta ainda passando o dedo pela lista, sem olhar pra mim. – Hum, também não é a turma dois do terceiro ano.

– Mas você acha que...

Novamente não pude terminar minha frase. Lisa me puxa novamente e eu pareço um boneco de pano nas mãos de uma criança, sendo levado sem dó ou piedade. Vamos até o outro lado do andar e a garota para na frente de outra sala, a sala dezenove.

– Hum, deixa eu ver... – ela alisa o dedo no papel. Lisa grita baixinho e, num pequeno pulo, me abraça. – Vamos ser colegas de classe na turma número três! – afirma em tom animado. Ela está tão perto que posso até sentir seu perfume doce.

– Hã, legal, né? – não sei direito o que fazer ou dizer... a energia e alegria dela me deixam um pouco desorientado.

– Agora vamos entrar, mas tente não falar muito, a professora Calil é um amor de pessoa mas se interromper muito a aula dela ela pode começar a te marcar.

Lisa abre a porta escura e lisa e entra rapidamente, quase imperceptível, eu a sigo logo atrás. Ao entrar na sala, não consigo evitar de prender a respiração. O teto da sala é alto como o de uma estrutura vitoriana e a parte de trás da sala possui janelas grandes o suficiente para três pessoas passarem sem encostar umas nas outras. Cadeiras estofadas azuis estão espalhadas por toda a sala, mas poucas estão vazias... em uma conta rápida, diria que existem trinta ou quarenta cadeiras. Vejo que todos os alunos estão sentados, alguns conversando, outros tirando o material da mochila e outros mexendo no celular. Ufa, pelo menos isso se parece com uma escola normal. Viro-me para o lado e finalmente descubro a professora sentada, selecionando papéis na sua mesa. É uma mulher com seus trinta e poucos anos e com expressão jovial, os cabelos claros presos em um frouxo coque, deixando algumas madeixas escorrerem pelos ombros em delicadas ondas... ela mexe em seus óculos discretamente quando eu me aproximo. Lisa a cumprimenta com um exagerado aceno de cabeça e segue para a fileira de cadeiras coladas em uma das paredes. Ela beija uma menina de cabelos pretos na bochecha, mas a menina parece extremamente ocupada no seu celular e a cumprimenta desajeitadamente. Lisa avança, se senta em uma das cadeiras vazias e fico feliz por ter uma cadeira disponível logo atrás dela. Assim não vou sequer me sentir perdido durante a aula. Mas minha alegria lentamente vai se apagando, a cada passo que dou, quando eu percebo quem está atrás dessa cadeira vazia. Nathan está sentado na cadeira de trás, um pouco curvado, com os cotovelos apoiados na mesa, as mãos entrelaçadas na frente da boca como quem analisa algo e aqueles olhos escuros sem nenhuma expressão estão me fitando. Eu posso ouvir alguns cochichos e reconheço alguns dos rostos que estavam no momento do 'enfrentamento' me olhando e percebendo a pequena tensão que acontecia naquele momento em que eu o olhava. Como se nada estivesse acontecendo, sento-me na cadeira vazia, tiro meu caderno da mochila e seguro uma caneta. Em minha cabeça, estou implorando para que a professora pare de brincar com suas coisas e fale algo antes que um segundo round se inicie.

No meio tempo em que a professora arrumava alguns livros em sua mesa e cantarolava uma música que aparentemente somente ela sabia, fico conversando com Lisa, tentando esquecer que ele está a poucos centímetros de mim. Elisabeth me conta animadamente sobre várias curiosidades da escola como o caso romântico do porteiro com uma das secretárias, duas salas no primeiro andar onde muitos alunos foram vistos em cenas picantes e sobre como descobriram quem era o aluno que entupia os vasos com papel higiênico do banheiro masculino no terceiro andar. Ótima distração. Também me explica um pouco sobre os alunos da sala: os alunos que estudavam muito, os que eram mais ligados aos esportes e aqueles que eram um pouco de tudo. Todos na escola parecem normais, exceto pelo garoto atrás de mim. Pergunto para minha nova amiga, se é que pode-se dizer assim, quem ele é e por que ele havia pegado no meu pé, algo que Lisa não conseguiu me responder.

Não demora muito para a professora terminar de arrumar suas coisas na mesa, se levantar, arrumar seu vestido que parece justo demais por baixo do jaleco e pegar seu pincel preto.

– Bom dia, queridos alunos. Espero que tenham gostado das férias, pelo menos tanto quanto eu gostei.

– Também né, 'fessôra', se eu tivesse viajado pra Nova Iorque também teria adorado – respondeu um garoto de cabelos pretos e lisos, criando alguns risos pela sala.

Isso foi sarcasmo ou não? No meu caminho até aqui só ouvi alunos comentando sobre viagens internacionais como se fosse um pulo na esquina de casa... Nova Iorque não parece muito, comparada aos outros destinos que ouvi.

– Aí depende de cada um, meu querido Marcos, eu estou ótima e relaxada – comenta espalmando as mãos. – Mas parece que temos alguns novatos aqui na sala, deixa eu ver... onze alunos novos – diz apontando para os novatos, inclusive eu.

Professora Calil fica pensativa por um momento, parece estar imaginando algo para fazer em sua aula, quando seus olhos aumentam e seu sorriso deixa claro que ela acaba de ter uma ideia. Pelo sorriso, uma bem diabólica.

– Tenho uma ideia! Todos lembram da feira do ano passado sobre relações humanas? Lembram da atividade do primeiro ano número dois que era uma atividade teatral? – pergunta a professora para os alunos, os olhos brilhando como jóias polidas. Os alunos confirmam e muitos cochicharam positivamente, lembrando saudosamente da tal atividade teatral que ocorrera no ano anterior. Lisa solta um comentário sobre a feira para mim, mas não consigo prestar atenção. – Pois bem, que tal fazermos essa atividade? Para conhecermos melhor os novatos vamos fazer duplas. Os calouros farão uma pequena cena com os aluno veterano.

Lisa vira-se em minha direção, ficando de joelhos em sua cadeira e dá um sorriso. Eu sorrio de volta, mesmo com meu nervosismo natural. Não tem como ficar sem graça em uma cena com o jeito solto dela. Ela segura minha mão e o alivio é imediato.

– No entanto, eu escolherei quem fará par com os calouros – completou a professora, para o descontentamento de todas as pessoas na sala, que reclamaram com um 'ah', assim como eu e Lisa.

Calil começa a atividade do lado oposto da sala. Com todos ela faz o mesmo ritual de perguntar o nome do novato, sua idade e hobbies. Depois do assustado novato responder, ela escolhe um tema aleatório e depois escolhe um estudante veterano próximo, os dois vão até a frente da classe e fazem a cena. Muitas são muito engraçadas, tanto pela situação quanto pela falta de talento, mas todos estávamos nos divertindo e memorizando os nomes uns dos outros. Decorei o nome de Lauro, um calouro moreno e alto, decorei o doce rosto de Raíssa, uma menina baixinha e muito delicada, o bruto Luan, a extrovertida Gabriella, o tímido Rafael, o cuidadoso Ítalo e a estilosa Dimítria. Eu começo a ficar nervoso quando o estudante novato do início da minha fila  parece terminar sua atuação de feira com outro aluno... e eu sou o próximo. As mãos suam sem parar, mesmo que eu as seque sem parar, e o coração palpita como se eu fosse morrer.

– Muito bem Saulo, ótima atuação de velha – a professora e todos da sala aplaudem enquanto Saulo e o aluno veterano se sentam, rindo um do outro. Os olhos de Calil caem em mim e sinto uma pressão esmagadora. Talvez, se eu correr bem rápido, eu consigo atravessar a janela sem me ferir muito nos cacos de vidro. – Agora você, querido, levante-se e venha aqui nos contar sobre você.

Me levanto lentamente e parece que meu corpo está colado na cadeira. Ando até a frente da classe, tentando ao máximo não tremer ou desabar. Isso só fez aumentar meu nervosismo, mas não posso deixar de participar dessa atividade, então engulo em seco e simplesmente entro no jogo. É agora.

– Meu nome é Guilherme Arceu, tenho dezessete anos, gosto principalmente de séries e jogos de videogame – falo tão rápido que nem eu entendo direito. – Me mudei pra cá faz pouco tempo.

Dou uma rápida olhada na sala, pela primeira vez prestando atenção nos rostos, e meu olhar pousa em uma pessoa em particular. Um garoto loiro sentado na outra extremidade da sala, vestido com uma jaqueta verde-musgo escura e jeans, me olhava curioso. Seus olhos claros seguem cada passo meu, sem hesitação.

– Ah, muito bom, Guilherme. Seja bem-vindo. Deixe-me ver o que você pode fazer... Já que gosta de séries, que tal fazer uma sitcom? – diz Calil, juntando as mãos como em uma oração.

– Pode ser, vai ser fácil – falo com uma confiança que não sei de onde tirei. Talvez do mesmo lugar onde tirei minha cara-de-pau para fazer isso.

– Então, quem pode fazer a atuação com você? – Calil pousa o indicador na boca e aperta os olhos ao corrê-los pela sala, procurando por alguém. – Que tal você, Nathan?

Puta... que... pariu... você está tirando com a minha cara? Você devia estar no andar de cima vendo aquela cena pra fazer isso comigo! Sua sádica! Engulo os xingamentos, eu apenas posso olhar incrédulo. Em uma sala de mais de trinta alunos a professora escolhe a única pessoa com quem eu já não me dou bem. Acho que preciso de um novo cordão.

Nathan se levanta, como se não fosse nada de mais. Na verdade, seu rosto mostra uma total falta de interesse. Eu realmente me enganei e ele não se importa? Ele coloca as mãos nos bolsos e anda calmamente até onde eu estou, na frente da turma. Nathan me encara, de costas para a professora e de frente para mim, tão perto como no momento do embate. Ele perdeu seu olhar desafiador, agora parece mais um olhar normal, mas ainda profundo. Desvio de seus olhos por um segundo para olhar Lisa e confirmar o que eu já sabia. Ela parece estar bastante preocupada, com a mão fechada em frente à boca, alternando o olhar entre mim e ele. Volto a olhar para Nathan, que parece esperar alguma reação minha, parado.

– Você não tem nenhum problema em fazer essa encenação comigo? – pergunto baixo o suficiente para que apenas ele ouça.

Ele apenas se aproxima e fala em tom sério, de maneira que apenas eu ouço.

– Para de perder meu tempo e anda logo.

Sua voz é como uma faca. Fico atônito, afinal, ele realmente me odeia tanto assim, não é apenas minha imaginação. Mas posso imaginar as mil razões para ele simplesmente não querer manter uma conversa comigo depois, agora tenho que fazer logo isso. Mil maneiras de iniciar essa encenação se passam pela minha cabeça, nenhuma delas muito boa. Assisti dezenas de sitcoms, mas fazer é completamente diferente. Eu preciso de uma situação cotidiana... talvez uma casa, um supermercado... droga, meu cérebro não funciona direito assim. Nunca fui muito bom de pensar em situações em que não me sinto confortável, menos ainda com alguém me encarando tão seriamente quanto o menino na minha frente. Felizmente, uma maneira de iniciar a atividade e ainda mostrar a ele que não recuaria um passo sequer brota em minha cabeça, pronta para ser colocada em prática. Distancio-me dele a ando até a porta, tiro um chapéu e um paletó imaginário. Ele franze o cenho, sem se mover um único centímetro.

– Você ainda não preparou o jantar? – engrosso a voz enquanto caminho em sua direção.

Em uma sitcom é clássico o marido ou pai chegar em uma hora dessas. Dessa maneira, pelo menos eu acho, vou estar em uma situação de controle e ele não poderá me afrontar.

– Não – responde calmamente. Puxa o braço para perto do rosto e olha seu grosso relógio de pulso prateado.

– O que você acha que eu fico fazendo o dia todo enquanto você não faz nada? – tento manter esse jogo.

– Não sei – ele continua impassível.

Algumas risadas baixas e abafadas surgem e sinto meu rosto esquentar. Ele está me fazendo passar papel de bobo. Por mais que eu tente manter algum tipo de controle aqui, ele mesmo assim está por cima, como antes estava. Isso é incrivelmente irritante.

– Por que você não tenta, querida? – pergunto, saindo ligeiramente do tom.

Aquele sorriso de canto de boca reaparece em seu rosto, dessa vez mais discreto, mas sinto-o debochando de mim. Ele se aproxima mais um passo, e agora está tão perto que quase sinto sua respiração.

– Por que você acha que eu deveria? – sua resposta cria mais risadas. Calil analisa nossa cena, confusa.

Que droga! Não queria pensar nisso, mas parece que esse jogo de atuação é uma continuação do nosso confronto e estamos disputando em nossas cabeças. Assim como antes, ele tenta me intimidar. Mesmo ele se aproximando fisicamente e fazendo uma pergunta invasiva, não posso deixar ele ganhar.

– Eu tenho outra pergunta, ainda mais importante – rebato imediatamente, e percebo que ele tem uma surpresa ao ouvir aquilo.

Consegui a virada de jogo que estava precisando. Esse pequeno jogo é como jogar xadrez, não se joga unicamente com as peças ou seus movimentos, se joga com a mente do jogador, um único deslize e o xeque é quase garantido.

– Pergunte.

– O que você quer comigo? – pergunto seriamente.

A sala toda fica completamente muda, como se estivessem assistindo ao último episódio da mais popular novela mexicana de drama já criada. Não ficaria surpreso se estivessem comendo pipocas. Eu só consigo ouvir o som do meu coração batendo rápido. Ainda o encaro,seu semblante é curioso, até que finalmente parece entender, recordando o que aconteceu antes da aula e até no início de nossa encenação. Sua expressão muda completamente. Não há mais sarcasmo, deboche ou superioridade em seu rosto... não posso mais imaginar o que se passa com ele e isso me assusta. É melhor deixar claro que não quero continuar com isso.

– Eu só quero passar despercebido, não quero atenção nem nada, então pare – sussurro para ele.

– Atenção... – repete, tão baixo que mal escuto.

– Vou repetir... O que você quer comigo?

– Sinceramente? – pergunta, se aproximando mais. Está tão perto que sinto o calor de sua respiração. Seu cheiro, sua presença, seu olhos... tudo tão próximo

– Sim – digo, quase gaguejando, mas sem desviar o olhar. Quero dar um passo para trás, mas estou paralisado. Estamos dividindo o mesmo ar.

– Descubra – sussurra, de forma que só eu ouço.

Ele mal termina de falar e em menos de um segundo eu sinto uma pressão em meus lábios, uma pressão quente e macia. A força se esvai do meu corpo, meus olhos se arregalam o máximo que podem e eu só consigo sentir o toque forte em minha boca. Meus pensamentos se embaralham, só consigo ver um rosto desfocado e ouvir um ruído uníssono de espanto, que com certeza vinha dos mais de trinta estudantes e da professora, mas depois do som de espanto, tudo ficou mudo. Esse momento deve ter durado dois ou três segundos, mas parece que minutos se arrastaram lentamente. Eu consigo sentir os lábios dele massageando os meus, posso sentir o cheiro de seu perfume amadeirado, o melhor que já senti, me envolver como em um abraço, e do cheiro do seu cabelo como se eu o estivesse admirando por horas. Tudo fica muito bem marcado em minha memória. Por que não consigo fazer nada? Meu corpo não quer me obedecer. Meu cérebro volta a funcionar ao ouvir um barulho de flash. Sinto o movimento sutil dos lábios quentes perfeitamente encaixados nos meus, pressionados de forma que posso sentir um pouco de seu rosto, da barba feita hoje de manhã roçar contra a ponta da minha boca. Ele faz um movimento diferente e nossas bocas, que antes pareciam uma só, se separam com um singelo som. Fico parado no mesmo lugar, sem saber o que fazer, o que pensar, o que sentir. Naquele momento eu entendi... havia perdido o jogo. Ele ainda está extremamente próximo, e emparelha sua cabeça com a minha.

– Espero que tenha atenção na medida certa – ele me tira do transe. Ele se afasta e aumenta o tom de voz. – Espero que isso compense o jantar.

Silêncio.

– Uau, não sabia que eram atores tão sérios, meninos – parabeniza a professora Calil enquanto fervorosamente bate palmas como se estivesse na premiação do Oscar, assim como toda a classe.

Nathan se vira e segue normalmente para sua cadeira, enquanto eu sigo andando de maneira quase robótica até a minha. Minhas mãos suam e sinto meu rosto quente, sei que todos estão me olhando. Sento-me e automaticamente me desligo de tudo. A professora fala sobre algo que eu não faço a menor ideia do que poderia ser. Eu não ouço mais o que ela diz ou os sons que acontecem na sala. O que exatamente aconteceu aqui? Lisa vira-se e comenta alguma coisa, mas mesmo nela eu não consigo prestar atenção. Levo meu indicador até uma de minhas mechas de cabelo ondulada e faço pequenos círculos, lentamente e com cuidado, isso deve me ajudar a pôr os pensamentos em ordem. Aos poucos me obrigo a voltar à realidade.

A aula corre lentamente enquanto eu escrevo as coisas que a professora fala, deve ser alguma coisa sobre gramática ou flexão verbal, não importa. Puxo meu celular do bolso e vejo as mensagens no grupo dos meus amigos e me distraio por alguns segundos com as conversas bestas que eles conseguiam criar do nada. Mas não adianta, não consigo pensar em outra coisa. Será que aquele beijo foi real? Minha mente calcula as razões que o teriam levado a fazer isso, mas pouquíssimas coisas chegam até minha cabeça e a única razão é que isso é apenas um tipo de intimidação. Sim... é mais uma maneira de mostrar que consegue se sobrepor. Lentamente volto ao normal, apesar de que a lembrança de um calor invisível nos meus lábios insiste em aparecer vez ou outra. Não posso evitar de me lembrar da cena, de imaginar como foi por todos os ângulos possíveis, da visão dos alunos, da professora. Fico incrivelmente envergonhado. Ele conseguiu, me derrubou.

Seguro meu cordão mais forte. A aula da professora Calil termina e ela se retira. Não demora e logo em seguida uma aula de química se inicia com uma professora substituta nem um pouco interessante. A aula de química passa voando, ela passa algumas atividades que ninguém está interessado em fazer, mas eu faço, já que meus pensamentos não me permitiriam fazer outra coisa de qualquer maneira. No final, descobrimos que aqueles que não fizeram iriam terminar na hora do recreio. Infelizmente, Lisa é uma das que não terminaram e teria que ficar, me deixando só. Ela já havia me dito que sua matéria menos favorita era química e sobre como quase foi reprovada no ano anterior, então não era nenhuma surpresa.

O sinal toca e eu a deixo fazendo suas tarefas, assim como metade da turma. Felizmente, Nathan é um deles. Não é mais tão forte quando não consegue sequer fazer o dever de casa, não é? Saio da sala, agradecendo aos céus que agora posso ter alguns momentos para pensar no que aconteceu, e me sento em um dos bancos grandes e acolchoados que ficam no segundo andar. Descer para o refeitório sozinho definitivamente não está nos meus planos. Fico observando a movimentação dos estudantes pelo andar até que sinto uma movimentação do banco e alguém se senta do meu lado. Deus, que não seja o Nathan, que não seja o Nathan, que não seja o Nathan. Eu estou esgotado e nem um pouco a fim de brigar.

Viro o rosto, agora segurando meu cordão com tanta força que juro que ficará com marcas depois. Suspiro de alívio ao ver que não é ele, mas o nervosismo volta quase automaticamente ao perceber os cabelos loiros ondulados, os olhos e pele clara. Seu corpo escondido por uma jaqueta verde-musgo. Talvez um dos meninos mais belos que já vi em minha vida... não pelos olhos ou os cabelos ou o rosto, que são lindos... mas pelo sorriso, que nunca havia visto igual. Há uma alegria verdadeira. Sentado ao meu lado estava o que Lisa descreveu como 'o menino mais bonito, difícil e disputado da escola'. Eu tenho que admitir, ele é bonito, ele é charmoso, ele é misterioso, é jovial, ele é... é... o garoto da casa da frente.


Notas Finais


É engraçado como normalmente as pessoas pegam uma antipatia instantânea com o Nathan enquanto outras se apaixonam por ele logo de primeira... É um dos encantos do personagem que eu nunca vou entender hahaha.


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