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História Rex Meus - Era uma vez um prisioneiro


Escrita por: caulaty

Capítulo 11 - Era uma vez um prisioneiro


Gregory e o Prisioneiro

 

O inverno trouxera consigo dias muito feios. Os céus, que antes eram do azul mais profundo e limpo, em que os raios de sol podiam brilhar livremente e decair sobre as terras de Zaron, agora estavam fechados por terríveis nuvens acinzentadas, ameaçando uma tempestade. Trovões ecoavam de forma estrondosa, assustando crianças e fazendo com que cachorros por todo o reino latissem em resposta, como se fosse uma conversa. Amas fechavam as janelas das pequenas casinhas de madeira e recolhiam apressadamente as roupas dos varais, reclamando da sujeira que a lama traria. Mas a vida seguia normalmente no reino do Arvoredo: cavalos puxavam carroças dominadas por elfos campestres, carregando sacos de arroz e feijão colhido naquela mesma manhã, comerciantes faziam seus negócios, vendiam artesanatos no meio das ruas com suas tendas armadas para quando a chuva chegasse, elfos carregavam cestas e passeavam na praça, perto da fonte.

Kenny deu uma mordida barulhenta em sua maçã, enquanto observava aquele movimento todo. Ele tinha mais algumas horas até que precisasse trabalhar, então sentou-se em uma escada da rua, que dava para uma das lojinhas de bugigangas, e observou o movimento com um sorriso sugestivo no rosto.

Mas Gregory não reconheceu a sua presença ali, mesmo que ele estivesse muito próximo, porque estava envolvido em uma discussão calorosa com Henrietta e Wendy. O cabelo longo de Wendy estava preso em uma trança trabalhada, jogada por cima de seu ombro, e a manga comprida de seu vestido esvoaçava conforme ela gesticulava com a mão. Ela era tão diferente da maioria das mulheres, especialmente das humanas; vestia-se de forma tão elegante, sempre em tons pastéis, com tecidos delicados que envolviam sua figura cheia de curvas de forma muito insinuante, porém jamais vulgar. Seu corpete marcava bem a cintura, e sua saia creme descia em camadas que deixavam o quadril volumoso. Ela era linda. A outra, Henrietta, parecia ser exatamente o contrário. Não se preocupava em ser uma mulher elegante e graciosa; a saia de seu vestido era de veludo em tom vinho, marcando seu quadril largo, e as amarras do corpete eram em um verde tão escuro que beirava o preto. Ela sempre vestia cores escuras. Era uma mulher gorda e obscura da qual Kenny tinha um pouco de medo, embora seu rosto fosse magnífico, quase uma escultura, mesmo coberta por aquela maquiagem pesada e as olheiras.

Ela parecia irritada.

Acendeu um cigarro em meio à discussão; era tão difícil encontrar mulheres fumando, Kenny ainda não tinha cruzado com nenhuma no reino dos elfos. Podia ouvir parcialmente a conversa, embora as vozes deles fossem abafadas por todos os outros acontecimentos da rua.

-Você me cansa, Gregory. – Ela disse em um tom blasé, assoprando fumaça perigosamente próxima do rosto dele.

-Henrietta, minha querida, não é minha culpa se você é ignorante demais para pensar sobre coisas simples. Se vocês duas estão infelizes com a minha decisão, encaminhem suas bobagens ao chanceler. Eu simplesmente não tenho tempo para isso.

Abanando indiferentemente para elas, Gregory tentou seguir seu caminho, sendo imediatamente interrompido pela mão delicada de Wendy, que era muito mais forte do que primeiro aparentava. Ela não apenas o segurou, mas o puxou de volta, aproximando seu rosto do dele para evitar escândalos ao sussurrar com raiva – não baixo o bastante para que Kenny não pudesse ouvi-la.

-Não devemos obediência a você.

O olhar lançado por Gregory foi estranhamente familiar; talvez essa fosse simplesmente a maneira que ele olhasse para tudo aquilo que desaprovava, mas analisou a mão que segurava seu braço durante um bom tempo, aquelas unhas feitas cravadas em sua carne por cima da roupa, e depois ergueu os olhos para Wendy como se ela tivesse acabado de cometer um sacrilégio. Henrietta apenas observava aquilo tudo com as sobrancelhas franzidas, assim como o loiro um pouco atrás deles, cuja presença ainda era despercebida.

Sem soltá-lo, Wendy disse um pouco mais alto:

-Por algum motivo que eu não compreendo, nosso rei vê valor em suas contribuições, mas...

-Pois eu posso dizer a mesma coisa. – ele interrompeu, encarando-a de perto com um ar desafiador antes de puxar seu braço para se soltar, e ela permitiu. – Você é cega pelas suas crenças tolas. É medíocre, é incapaz. Você está falando com um lorde do castelo, garotinha, eu recomendo seriamente que não se esqueça disso.

Henrietta deu uma última tragada em seu cigarro, depois o jogou no chão e ergueu a barra do vestido para esmagar a bituca com seu salto enquanto ouvia as palavras do homem, não necessariamente absorvendo-as; diferentemente de Wendy, cujos olhos pareciam arder em fúria e os lábios logo se abriam para dar uma resposta eloqüente. Mas a mão de Henrietta em seu ombro a fez hesitar.

-Vamos, Wendy. Não é como se a insanidade desse Lorde fosse passar pela aprovação do rei. Quando a questão for ao conselho, ele será descartado.

Apesar de ser uma mulher passional, Wendy era sensata. Lançou um olhar breve ao homem, que as encarava com a expressão incrédula de um professor que foi desrespeitado, o que apenas agravou quando Henrietta lhe deu as costas para começar a andar para longe, prontamente seguida pela outra mulher. Gregory levou seus dedos longos até o maxilar liso, roçando as pontas dos dedos pela própria pele, mantendo o queixo devidamente erguido para mostrar sua dignidade.

Kenny não pôde deixar de observar o ar maldoso em torno daquele homem. Talvez fosse o cabelo. Nunca falhava em assustar Kenny o quanto o cabelo de Gregory era perfeitamente alisado para trás e nunca tinha um fio fora do lugar.

-Cara, você realmente não entende nada de falar com pessoas. – Gregory ouviu a voz presunçosa vinda de trás dele, abafada pelo som da mastigação. Virou-se para encontrar o ex-prisioneiro, McCormick, segurando uma maçã em sua mão e um olhar condescendente no rosto. Aquilo lhe provocou um nojo indescritível.

-O que você quer, verme?

-E é exatamente disso que eu estou falando. – disse, estalando os dedos. Deu um passo a frente para se aproximar mais do homem. – Se você estivesse no meu lugar, precisando convencer milhares de pessoas que você não é um assassino ordinário, você estaria completamente fodido.

-É? Bem, existe uma razão pela qual eu não estou no seu lugar. Eu não sou um vagabundo aproveitador.

Kenny sorriu, balançando suavemente a cabeça enquanto erguia as duas mãos em um gesto de derrota.

-Ei, eu não quero julgar aqui. Não precisa ficar na defensiva. Só estou afirmando um fato: as pessoas não gostam de te ouvir porque você sempre fala com elas como se fossem muito inferiores a você. Estou te dando um conselho de amigo. – Então, uma pausa. – Bom, talvez não amigo porque eu não particularmente gosto de você. Digamos que... Eu ache lamentável um cara tão inteligente ser subestimado porque ninguém suporta conversar com ele.

Gregory o desviou com uma risada irônica, roncada, sacudindo a cabeça negativamente antes de virar o corpo para se retirar dali. Mas suas pernas não o carregaram muito adiante. Ele voltou seu olhar para encontrar o de Kenny, que continuava parado no mesmo lugar, levando sua maçã à boca para uma nova mordida. Um sorriso se insinuava nos lábios dele, sem propriamente aparecer, porque ele podia enxergar muito bem a batalha interna ocorrendo dentro de Gregory naquele instante.

Por fim, o lorde não agüentou manter-se calado.

-Quem você pensa que é para falar assim comigo? Você é um intruso aqui. É desprezado. Seu discursinho não mudou nada. Eu tenho minha dignidade, não serei julgado por um projeto de humano como você.

-Mesmo? O povo daqui me odeia? Porque eu não paguei por essa maçã. – Ele respondeu com um sorriso malicioso, brincando com a fruta entre os dedos ao exibi-la.

-Você é um pobre coitado.

-Me ofender não vai mudar o fato de que eu estou falando a verdade. Enquanto você não souber ouvir os outros, nunca vai ser respeitado como pensa que é, devido a esse ego inflado.

-Eu vou providenciar que Kyle coloque uma mordaça na sua boca como o cachorro que você é. Você fala demais.

-Eu já conheci homens como você. Poderosos, que gostam de pisar nos outros. Sozinhos, eles foram arruinados. Gregory, eu não perco nada te dando um conselho. Você tem todo direito de não ouvir. Mas ser gostado é uma virtude, e gentileza é muito valorizada aqui. Se você continuar falando com companheiros assim... Isso pode te causar problemas bem feios.

Bufando, Gregory de Yardale saiu em passos pesados, em direção ao castelo.

 

Stanley e o Prisioneiro

 

A chuva veio com tudo naquela noite. A rua já estava deserta, a maioria dos elfos já haviam se recolhido aos seus aposentos desde que os primeiros pingos começaram a cair. Era tarde. O guerreiro de cabelos escuros saía com um lampião em mãos para iluminar o breu do início de madrugada, mas a luz era fraca demais para ser útil. Ele já estava completamente ensopado; seus sapatos faziam um som grotesco conforme ele pisava, como se calçasse duas esponjas, mal podendo enxergar o estrago que a lama fizera em suas botas. Ele protegia os olhos com uma das mãos, colocando-a sobre a testa em posição de vigia para evitar que a água da chuva atrapalhasse a sua visão.

-Sparky! – Stan gritou, mas sua voz era abafada pelo som estrondoso dos trovões e da água jorrando dos céus.

Ele vestia um casaco feito de pele grossa de urso montanhês, mas não era o suficiente para evitar que tremesse de frio, visto que estava encharcado por dentro.

Há poucos metros dali, Kenny descia a pequena escada do castelo para o jardim, franzindo as sobrancelhas enquanto observava o homem com o lampião clamando pelo nome de seu cãozinho no meio da noite. O loiro acabara de fazer uma visita ao rei, que agora já dormia profundamente no aconchego de seu quarto, aquecido sob as cobertas, perfeitamente feliz. Kenny não conseguia mais dormir há vários dias. Passeios noturnos haviam se tornado algo comum para ele, que preferia só deitar a cabeça no travesseiro quando estivesse beirando a exaustão, muito certo de que iria apagar. Não gostava mais de ficar sozinho com a própria consciência, especialmente ao lado de Kyle, que dormia como um bebê.

-Stan! – ele gritou, olhando para os lados com hesitação, umedecendo os lábios. Não queria ir atrás dele. Estava vestindo chinelos, com as canelas de fora, o corpo envolvido por um casaco grosso que protegia seu corpo semi-nu por baixo. Ele realmente não queria se molhar.

Mas o guerreiro não pareceu reconhecer sua presença, tampouco ouviu seu chamado. Estava distraído estalado os dedos, assobiando, gritando o nome de Sparky repetidamente enquanto caminhava pelo pátio como um homem sem lar. Não pareceu uma questão de escolha no momento em que os chinelos de pano de Kenny desceram os degraus molhados e pisaram em poças, absorvendo a água com esponjas, emitindo um som terrível que era encoberto pela chuva. Logo, suas pernas expostas corriam contra o vento gelado, cada passo espirrando água suja pelas suas canelas, gerando um desconforto que ele só sentiria mais tarde, pois agora, seus cabelos, seu rosto e suas roupas estavam igualmente molhados. Novamente, gritou o nome do guerreiro, aproximando-se dele no centro do pátio. De perto, pode perceber como ele tremia de frio.

-Stan, o que você...? – Ele esticou a mão para segurar o ombro tenso do guerreiro, que se virou como um animal encurralado, iluminando o rosto do loiro com o lampião, cegando-o por um segundo. Kenny cobriu o rosto com o braço em um gesto instintivo, certo de que levaria um murro, mas nada aconteceu.

Stan apenas deu um passo para trás e abaixou um pouco o lampião, observando o outro homem como se ele tivesse acabado de cometer uma loucura. A escuridão e a água jorrando sobre os dois não permitiu que Kenny enxergasse muito bem qual era o semblante do guerreiro, mas teve quase certeza de que Stan revirou os olhos para ele antes de voltar a dar as costas, gritando pelo nome de Sparky, seguindo seu caminho como se nada tivesse acontecido. Não satisfeito com a reação, Kenny apurou o passo para acompanhá-lo, escorregando no chão de pedra molhado, quase caindo de queixo no chão durante o processo. Mas ele graciosamente se recuperou, abanando os braços, colocando-se ao lado do Stan em pouco tempo.

-Você não vai encontrá-lo com esse tempo. – disse, quase gritando próximo ao rosto dele, segurando-o pelo braço com firmeza para forçar que o guerreiro parasse para olhá-lo. Os olhos de Stan não pareciam felizes, naturalmente, mas ele pouco deu importância. – Você só vai adoecer. Vamos entrar. Quando parar de chover, eu te ajudo.

-Eu não preciso da sua ajuda. Ele nunca fica sozinho, eu não vou deixá-lo aqui fora com esse tempo. – O moreno disse como se aquelas palavras estivessem engasgadas há dias, puxando seu braço para livrar-se do aperto. - Entre você.

Quando Stanley se afastou para prosseguir com suas perambulações noturnas, Kenny ficou imóvel no mesmo lugar durante um tempo considerável, sem reagir. Ainda que não tenha dado importância ao loiro, Stan continuou espiando-o de canto por vez ou outra, enquanto se agachava para procurar embaixo de bancos, atrás de vasos de plantas do pequeno jardim. Sparky adorava rolar naquele jardim, especialmente da chuva, mas não havia qualquer sinal dele. Aquilo causou um aperto tão forte dentro do peito do guerreiro, mas esse nó se desfez prontamente ao som de uma voz rouca sob o cascalho da chuva caindo.

-Sparky! – Kenny gritou, caminhando na direção oposta à do guerreiro.

Stan franziu a testa, observando-o de longe. Piscou pra se livrar das gotas de chuva sobre suas pálpebras, lambendo os lábios para sentir o gosto amargo. Kenny McCormick assobiava mais alto do que qualquer homem que ele já conhecera, estala os dedos e gritava o nome de seu cachorro com toda a força dos pulmões, batendo nas coxas sobre o manto encharcado que o cobria, procurando por todos os cantos ocultos das construções de pedra daquele jardim. E Stan não compreendeu. O frio parecia entrar por baixo de sua pele, ele estava molhado até por dentro das botas e tremia como um bezerro assustado; o topo de sua cabeça já formigava pela força com que a chuva era despejada em seu couro cabeludo, e por todos os deuses, ele não queria estar naquela situação. Mas precisava. E não podia compreender porque um homem, com o qual ele teve uma relação desagradável desde o primeiro momento, estaria disposto a passar pelo mesmo – senão pior, por estar tão mal agasalhado – sem qualquer bom motivo.

Mas ele não buscava compreender naquele momento. Sentiu um sorriso esboçar no canto da boca. Não se deleitou demais desse bom sentimento, apenas deu as costas e continuou procurando.

O pátio do castelo era grande o suficiente para que, em poucos minutos, ele já não ouvisse mais os chamados distantes de Kenny, e Kenny também não ouviria mais os dele, embora ambos chamassem pelo mesmo nome. Stan vasculhou por trás de arbustos, de estátuas, de fontes, por baixo dos bancos, entre os canteiros, assobiando e insistentemente tentando encontrá-lo encurralado em algum canto, tentando se proteger da chuva. Sparky era cão bastante feio e torto, um vira lata com o pelo falhado e o focinho estranhamente comprido, mas Stan o amava como se ama à sua família.

Resmungando baixinho, encolhendo-se de frio e com os ossos doloridos, o guerreiro arrastou as pernas para um dos bancos e se sentou. A chuva parecia ter diminuído um pouco. A cabeça de Stan fervia por dentro, enquanto o restante de seu corpo tremia tentando combater o frio quase insuportável. Suas mãos e as extremidades de seu rosto eram geladas como pedras. Ele ainda tentava assobiar, em uma tentativa falha de ser ouvido, pois já estava esgotado demais para emitir sons estridentes que superassem o som de água caindo. Uma de suas mãos foi à testa, tão trêmula e fraca, sentindo o choque térmico entre o calor da pele e a frieza da palma. Kenny estava certo, ele acabaria adoecendo. Mas não se importava com isso.

-Stan! – ouviu de longe a voz estranhamente familiar.

O guerreiro ergueu sua cabeça rapidamente. Kenny McCormick demorou algum tempo até emergir das moitas, encharcado da cabeça aos pés, agora descalço, com os cabelos e o manto pingando incessantemente, a corda que envolvia sua cintura já pendurada sobre o ombro, mas independente disso tudo, ele segurava um sorriso satisfeito nos lábios. E seu punho estava fechado, contendo algo que Stan não pôde identificar. Aquilo também logo perdeu a importância também, quando o cachorrinho extremamente imundo de lama veio correndo entre as pernas de Kenny, saltitando tão rápido que quase tropeçava nas próprias perninhas, com a língua esticada para fora e algo muito semelhante a um sorriso em seu rosto, se cachorros de fato pudessem sorrir. Stan acreditava que podiam. Desceu do banco caindo com os joelhos no chão, abrindo os braços para receber Sparky, que pulou em cima dele como se não o visse há anos. Lambeu as gotas de chuva do rosto de Stan, abanando o rabo com alegria.

-Rapaz, onde você andou? – Stan perguntou ao seu cão, segurando as bochechas pelancudas entre as palmas, amassando o rosto dele. – Que susto você me deu.

-Eu fui buscar uma costelinha pra ver se ele sentia o cheiro. Espero que não tenha problema. – Kenny explicou. -Eu não quero interromper a festa, mas eu acho que tem gelo se formando nos meus cílios. Podemos entrar? – Ele prosseguiu, envolvendo-se nos próprios braços em uma tentativa de se aquecer.

Stan assentiu com a cabeça, segurando Sparky apertadamente contra o peito antes de se levantar, e os dois homens caminharam em direção ao castelo em silêncio. Kenny olhava para cima de vez em quando, esticando a língua para pegar algumas gotas de chuva em suas papilas gustativas. Stan conversava baixinho com Sparky de vez em quando, roçando o próprio rosto no dele, sujando-se inteiro de lama. Não é como se ele não fosse precisar de um banho antes, de qualquer forma.

Ao chegarem à parte coberta dos corredores que tinham vista para o pátio, Stan e Kenny trocaram um olhar levemente constrangido. Sparky estava alheio ao desconforto deles, aquecendo-se contra o peito de seu dono, o que trouxe um sorriso aos lábios de Kenny, que observava a cena. Foi Stan quem quebrou o silêncio:

-Por que você fez isso?

-O quê? – Kenny perguntou, ousando esticar uma mão para fazer um carinho breve no pelo sujo e molhado do cachorro, parecendo distraído.

-Por favor, não se faça de tonto. Está caindo o mundo, você não gosta de mim, não tinha o menor motivo para me ajudar. O que você quer em troca?

Kenny ergueu os olhos estreitos para ele, abaixando a mão vagarosamente. Cruzou os braços, engolindo o tremor quando uma brisa gelada passou por eles.

-Eu não sou esse monstro que você pensa que eu sou, Stan.

E dito isso, ele fechou o manto e liberou o ar pelas narinas lentamente, virando-se para ir embora sem esperar qualquer resposta do outro. Após dar alguns passos, sentindo que Stan continuava no mesmo lugar, ele se virou e disse em um tom mais suave:

-Kyle ama você. Então... O quão ruim você pode ser, não é?

 

Token e o Prisioneiro

 

Token Black passava suas manhãs resolvendo assuntos designados do castelo, correspondendo cartas e tratando de relações políticas com os demais reinos, preocupando-se com a guerra. E passava suas noites debatendo com demais conselheiros, elaborando planos de governo para serem apresentados ao rei, preocupando-se com o povo. Mas durante as tardes, a única preocupação de Token Black eram os pobres. Ele era filho de um barão importante, dono dos navios da frota que importavam e exportavam produtos do outro lado do oceano, e sua família sempre teve muito, muito dinheiro. Tinham uma relação estreita com a família real, seu pai era um amigo muito íntimo do antigo rei, pai de Kyle Broflovski. Eles, enquanto garotos, não brincavam muito juntos. Aprenderam a apreciar a companhia um do outro apenas depois de adolescentes, porque tanto ele quanto Kyle eram muito interessados por literatura e história; passavam suas tardes na biblioteca imensa do castelo, estudando os livros por conta própria. A questão é: Token não cresceu conhecendo pobreza.

Era justamente por isso que ele podia se lembrar tão bem do choque que foi conhecer as vilas pobres do reino pela primeira vez, e descobrir que o mundo não era feito de ouro. Que muitas pessoas não tinham o que comer. O reino dos elfos não era um reino pobre, a distribuição de renda beirava o impecável, os trabalhadores eram devidamente valorizados, mas Token ainda não estava satisfeito. Era isso que o levava a tirar suas roupas de tecidos ricos, suas jóias que valiam mais do que as casas daquela vila, e descer de sua posição de aristocrata para trabalhar servindo comida em uma pequena casa de palha. A chuva tenebrosa seguia caindo, deixando o céu cinza escuro como se já estivesse anoitecendo, embora fossem apenas duas da tarde. O cheiro da sopa de espinafre era delicioso, subindo das panelas fumegantes de cerâmica, contagiando o ambiente que estava mais lotado do que de costume, provavelmente por causa das chuvas.

Ele havia ficado um tanto surpreso – para dizer o mínimo – quando o informaram de que Kenny McCormick havia sido encaixado para trabalhar na casa da Ama de Caridade, porque não havia se dado bem no último trabalho no estábulo, com os cavalos de guerra. Ninguém especificou a Token o que exatamente deu errado entre Kenny e os cavalos, mas em dois dias de trabalho, o homem compreendeu perfeitamente. Kenny era desleixado, sempre se atrasava, não tinha foco, era difícil de ordenar. Ao mesmo tempo, ficou impressionado com a simpatia dele ao servir tigelas de sopa; em cinco segundos e um sorriso caloroso, o humano conseguia fazer com que os miseráveis se sentissem em casa. Então Token começava a se adequar à ideia.

Ele também tinha braços fortes e era de grande ajuda na hora de descarregar ingredientes e levar sacos de um canto ao outro, coisa que Token costumava fazer com pouca ajuda, pois a maioria dos trabalhadores eram mulheres e ele era um cavalheiro (até mesmo com as mulheres que eram maiores do que ele).

Naquela tarde em especial, ele estava começando a perder a paciência. Kenny já havia chegado atrasado, como de costume, mas tinha desaparecido há mais de dez minutos com a desculpa de ir buscar mais tigelas limpas, com a casa cheia de gente. Token largou a concha de madeira sobre a mesa e secou as mãos nas próprias roupas, encaminhando-se para a cozinha, empurrando a porta com o traseiro de forma agressiva. Como já esperava, a cozinha estava vazia. Token suspirou fundo, seguindo em frente para abrir a porta que dava para os fundos da casa, direto para a rua. Agora, caíam apenas alguns pingos, nada terrível. Token nem chegou a notar esses pingos quando caminhou para a rua com a testa franzida, fiscalizando em torno, finalmente encontrando Kenny a alguns metros, com o tronco inclinado para frente, falando com um garotinho.

Somente quando se aproximou um pouco, Token percebeu que o garoto usava um casaco muito maior do que ele, o mesmo casaco que Kenny vestia antes. Token não era um homem impulsivo, muito pelo contrário. Conseguiu diminuir o passo com naturalidade antes de se aproximar demais. O pequeno elfo vestia uma boina marrom surrada e seu rosto estava sujo do que parecia ser carvão. Assim que ele avistou Token, rapidamente fez uma reverência, para a qual o homem sorriu e abanou a mão para que o garoto se endireitasse, colocando-se ao lado de Kenny. Token apoiou as mãos nos joelhos e se abaixou para ficar à altura do garoto.

-Como é seu nome?

-Melvin, senhor. – ele respondeu prontamente, com a boca cheia. Só então, Token percebeu que ele segurava uma pequena barra de chocolate meio comida em suas mãos.

-Melvin, está aproveitando seu chocolate?

O garoto tinha grandes olhos cor de mel, e ergueu-os para Kenny como quem busca uma reafirmação antes de assentir com a cabeça. Um sorriso gentil iluminou o semblante sério de Token, que deu dois tapinhas no ombro do jovem.

-Muito bem. Vá brincar, querido. Volte se precisar de alguma coisa.

Após dois segundos completamente imóvel, Melvin assentiu com a cabeça novamente, mantendo seus olhos bem arregalados, e sua pequena mão suja de chocolate tocou o casaco que o cobria, com hesitação.

-Não. – Kenny disse. – Leve com você.

O garoto, que não podia ter mais de dez anos, encarou-o incrédulo antes de se lançar em um abraço breve, porém apertado, de agradecimento. Enroscou seus braços na cintura do loiro, sorrindo, amassando a bochecha em sua barriga. Depois obedeceu ao que lhe foi dito, fechando o casaco que quase arrastava no chão cobrindo seu corpinho magro.

Kenny suspirou.

-Olha, desculpe. Eu o vi pela janela, ele parecia com frio, aí eu vim aqui fora e ele já tinha tomado sopa, mas queria muito um chocolate...

-Não. – Token interrompeu suavemente, erguendo sua mão no ar. – Está tudo bem. Eu não vou repreendê-lo por dar chocolate a um garoto. Apenas entre, Kenny. A casa está cheia.

Kenny deu uma boa olhada no semblante do outro homem, com a ligeira impressão de que – como sempre que eles conversavam – Token queria dizer mais do que estava dizendo. Um nó se formou na garganta do loiro, mas ele apenas obedeceu. Token continuou parado no meio da rua por alguns segundos, sentindo o ar gelado entrar por debaixo da roupa, entretido com um pensamento curioso. Algo sobre Kenny McCormick o fascinava. Com todas as suas reservas e preocupações a respeito da relação que o rei tinha com esse rapaz, Token não conseguia deixar de pensar, bem no fundo, que esse ex-prisioneiro era um bom homem. E essa ideia o perturbava.

 

Craig e o Irmão

Era tarde da noite. Craig não sabia dizer se a chuva havia parado ou não, porque as gotas continuavam caindo das folhas das árvores incessantemente, e os galhos grossos os protegiam de certa forma, desde que eles se mantivessem bem próximos ao tronco mais grosso que encontraram naquela floresta densa e escura. Haviam alertado-os sobre o frio, mas não o suficiente para que ele estivesse psicologicamente preparado para aquelas noites que passaram expostos a um vento cortante, chuvas longas e sereno. Estava sentado sobre um toco que havia encontrado durante aquela tarde, e tinha em suas mãos um canivete com o qual talhava em um pequeno pedaço de madeira. Tentava fazer um cavalo, mas nunca fora muito talentoso em talhar coisas. Ergueu seus olhos escuros para o homem sentado à sua frente, encolhido no próprio corpo, abraçando os joelhos e tremendo como um cão molhado. A cabeça dele estava abaixada e tudo o que se via era o cabelo loiro escuro molhado e seboso ao mesmo tempo, que Kevin logo jogou para trás ao erguer o pescoço repentinamente, cruzando o olhar com o de Craig.

-Podemos fazer uma fogueira?

-Não. – Craig respondeu de imediato, voltando a se concentrar em seu cavalo de madeira. – Sem fogueiras.

-Caralho, Tucker.

-São ordens do rei. Sem fogueiras.

Kevin separou as pernas e começou a alcançar alguns galhos finos e úmidos espalhados pelo chão, quebrando-os com raiva nos gestos, grunhindo quando tinha dificuldade. Tentou permanecer em silêncio, pois essa costumava ser a melhor saída em noites como essa. Não era a primeira vez, e absolutamente não seria a última, que Kevin passava uma madrugada (ou várias consecutivas) dormindo no chão ao ar livre em temperaturas baixíssimas, e ele já havia aprendido que o silêncio pode ser o aliado mais fiel para a sobrevivência. Mas a irritação o venceu.

-Fodam-se as ordens. Não é o traseiro gordo do rei que está aqui congelando, é?

-Kevin. Nós não podemos deixar qualquer rastro.

Ele sabia disso. Não era inexperiente, sabia como o fogo poderia estragar qualquer disfarce, por mais que eles se mantivessem ocultos. As maçãs de seu rosto estavam ligeiramente mais quentes do que suas mãos, então ele tentava aquecer os dedos na face, pressionando-os contra a pele.

-Repasse o plano para mim. – Foi tudo o que Kevin respondeu, preferindo não insistir sobre a fogueira.

Ele e Craig Tucker eram amigos há muitos anos, embora não fosse o tipo de amizade de infância, o que se devia a uma diferença de idade de cinco anos. Cinco anos deixou de ser muito tempo quando Craig se tornou adolescente, e os dois encontraram uma sintonia quase que instantânea porque eram rapazes com dificuldade de se comunicar através de algo que não fosse sarcasmo. Não eram de muitas palavras, não gostavam muito de pessoas em geral, enxergavam o mundo através de um kaleidoscópio obscuro pelas experiências sanguinárias que ambos viveram, emergidos na guerra. Craig sempre foi um garoto fechado e cheio de ressentimento, armado por uma casca de quem não se importa com nada, exatamente como seu pai, um homem gigantesco que nunca aprender a se expressar. Kevin também era muito como seu pai, em todos os modos que não gostaria de ser.

Craig esfregava o dedo entre as sobrancelhas como se quisesse aliviar uma dor de cabeça.

-Vamos dar alguns dias para observá-lo. Manteremo-nos sobre as árvores o máximo possível, quando chegarmos mais próximo ao castelo. À noite, procuramos comida. Acho que tem alguns coelhos por aqui que podemos matar, e algumas cobras.

-Por quanto tempo?

-Depende do que virmos. De quanto tempo leva para conseguirmos falar com ele sozinho, encontrar onde ele está dormindo. Não deve demorar. Mas... Não sei, tenho meus receios.

-De que ele tenha desistido do plano?

Craig desviou os olhos de seu cavalo, que começava a tomar forma de um cavalo apenas agora, e levou o dedo mindinho à boca, usando a unha para tentar tirar algo que estava preso entre seus dentes. Kevin segurava em suas mãos uma caneca de metal, que já havia sido verde mas estava descascada, e dentre dela havia um pouco de pinga.

-É. – O de cabelos negros confirmou.

Kevin virou o rosto para cuspir no chão, no lado oposto ao de Craig.

-Meu irmãozinho não fez isso. Não entre nos delírios do rei. Kenny só é um pouco lento, nós viemos para ajudá-lo. Não para arrastá-lo de volta.

-Você nem parou para considerar que talvez Cartman tenha razão? Porque... Se for o caso, você deve estar pronto para...

-Ele não tem razão. – Kevin cortou sem um pingo de dúvida na voz, batendo os dedos na lateral da caneca. Estremeceu de frio, grunhindo irritado. – Eu conheço o Kenny. Família é a única coisa que importa pra ele. Cartman chutaria a nossa irmã do trono imediatamente caso ele não cumprisse as ordens. Ele sabe muito bem disso.

-É... – Ele respondeu, passando o polegar por cima do pequeno rosto do cavalo. – Espero que tenha razão.

Craig discordava profundamente daquilo, mas os dois homens não conversaram mais pelo resto da noite, silenciosamente guardados pelos pingos de chuva acumulados nas folhas da árvore que os protegia.



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