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História Rex Meus - Jardim de cinzas


Escrita por: caulaty

Capítulo 17 - Jardim de cinzas


Era para ter sido um lindo dia.

Após uma noite inteira de neve constante, o sol nasceu no horizonte e brilhou com intensidade, agraciando o reino com seu calor, e as nuvens feias se afastavam para dar lugar a um céu encantador que misturava o alaranjado com o rosa da alvorada. O chão era coberto por uma camada grossa de pura neve branca, tornando impossível enxergar a grama verde por baixo, mas o inverno, ainda que rigoroso, era formidavelmente belo. Os animais da floresta começavam a acordar e sair de suas tocas em busca de comida. Os residentes do reino ainda dormiam em sono profundo, pois o sol nem bem havia se erguido no leste completamente; alguns poucos trabalhadores já coavam seu café, bocejando enquanto olhavam pela janela de suas cozinhas, coçando alguma parte do corpo preguiçosamente. Mas as ruas continuavam silenciosas, preenchidas somente pelo cantar dos pássaros invernais. Um padeiro sorriu ao perceber que não nevava mais, otimista pelo tempo bom. Uma mãe que amamentava seu bebê em uma cadeira de balanço, acariciando o rosto do pequeno elfo em seus braços, também sorriu, contente que poderia secar suas roupas ao sol durante aquela manhã.

Para além das vilas, na densidão da floresta, o castelo dos elfos permanecia em silêncio. O pátio estava completamente branco, a água da imensa fonte no centro era congelada e reluzia como uma peça de cristal, maravilhosa de se olhar. Os bancos, as mesas, os arbustos e flores, os vasos de cerâmica, as esculturas, tudo era coberto por uma neve macia e serena. O bule de café esquecido do chá da tarde do dia anterior continuava lá, sobre uma das mesas de pedra. Um pássaro azul pousou sobre um dos bancos, sacudindo o corpo rechonchudo e piando curiosamente enquanto olhava em volta. Em meio a todo o branco, destacava-se exageradamente a cor vermelha mesclada à neve, próximo aos degraus da escada que levava ao castelo; agora o vermelho já havia parado de se espalhar e a coloração parecia mais escura. Havia um gotejar incessante de um filete de sangue que escorria do penúltimo ao último degrau, pingando repetidamente há sabe-se lá quanto tempo, pois o corpo morto estava estirado com a barriga para baixo, o rosto pressionado contra a superfície gélida e dura do degrau, os olhos abertos sem vida encarando o nada. A boca continuava aberta contra o cimento, com o sangue de um vermelho vívido manchando os dentes, a língua e toda a região em torno da boca. Era o sangue cuspido nos últimos suspiros, enquanto o homem havia lutado para se levantar. Mas nunca mais se levantaria.

As portas do castelo estavam escancaradas, e o frio agressivo invadia o salão de entrada, soprando um vento cortante. Mas não havia uma alma viva ali para sentir. O piso do hall de entrada era de uma madeira clara, agora coberta pela poça viscosa do sangue de guardas mutilados; não chegaram a entender como morreram, pois foi tudo rápido e silencioso demais; suas gargantas foram cortadas antes que eles pudessem se dar conta do que havia acontecido. Não agonizaram muito tempo, nenhum deles. Percorrendo os corredores silenciosos em labirinto que levavam à escadaria para o quarto do rei, um acesso externo do castelo, não havia mancha ou corpo nenhum. Tudo era limpo e intocado. A escada em espiral levava a um longo corredor percorrido por um tapete amarelo, extremamente amarelo, e as manchas de sangue no tapete não eram exatamente vermelhas, mas de um bordô intenso, seguindo em vários respingos deixados por alguém que não estava mais ali. A mancha maior, que escorria pelo chão até sujar o tapete, era do homem que deslizava a mão imunda de sangue pela parede, manchando o verde escuro do papel, e as unhas arranhavam como se ele tentasse se segurar em alguma coisa, mas não havia nada. Estava de joelhos, tentando desesperadamente erguer o corpo, mas fraquejou em uma tosse violenta, caindo para frente com o rosto contra a madeira do chão, trêmulo, apertando os olhos com força, enxergando em borrões.

Alguns metros atrás dele, no fundo do corredor, a porta do quarto do rei continuava aberta. Havia uma marca de impacto no centro da madeira da porta, e vestígios de unhas logo acima; a maçaneta estava arrombada. E dentro do quarto, logo ao lado da cama, havia um homem deitado em uma poça do próprio sangue, encarando o teto com imensos olhos arregalados em terror, como se a última coisa que tivesse visto em vida fosse a própria face do diabo, mas já não havia qualquer sentimento real naqueles olhos, pois o coração do homem já não batia mais. Os braços estavam atirados por cima da cabeça, o pescoço ensangüentado e dilacerado pela lâmina que o atravessara até a nuca quando ele já estava caído no chão. Mais adiante, perto da janela, havia outro homem. Seu olho havia sido destruído e arrancado pela ponta de uma faca, e seu crânio fora atravessado por outra mais grossa; a lâmina fora enfiada tão fundo que continuava presa ao crânio do homem caído de lado, besuntando seus cabelos castanhos de com o próprio sangue e uma substância viscosa e escura. A porta que dava para a sacada também estava aberta, e o vento fazia voar a cortina e a roupa de cama. Havia vidro quebrado e vinho escorrendo pelo chão, misturando-se ao sangue em uma poça vermelha escura. Um sapato havia sido deixado para trás. A cama estava revirada, havia livros espalhados pelo chão, uma bandeja virada para baixo e nozes por toda parte.

E da janela do quarto do rei, podia-se ver a Torre Mãe, a torre dos prisioneiros. E lá dentro, subindo a escadaria até o último andar, duas celas que não deveriam estar vazias, estavam. E dentre os corpos de guardas estirados pelo corredor, as paredes manchadas escorrendo sangue vagarosamente, elmos espalhados pelo chão e crânios destruídos, havia um homem que ainda respirava. Os ofegos eram curtos e desesperados, os olhos fiscalizavam tudo que havia em torno, mas ele não podia levantar o pescoço. Podia sentir as vísceras expostas e latejando, o próprio intestino grosso visível aos olhos, o cheiro terrível de sangue e merda e carne queimada. A visão do homem começava a escurecer, e ele sabia que estava morrendo. Tremia como bezerro, e desejava mais do que qualquer coisa nesse mundo que não sentisse medo na hora de ser levado; queria morrer como um homem corajoso.

Mas ninguém sabia disso ainda.

. . .

Às sete da noite do dia anterior, Stan suspirou profundamente e começou a se mexer sob os lençóis, sorrindo de olhos fechados pela sensação deliciosa do corpo próximo ao seu, envolvido em seus braços protetoramente. O rosto de Kyle estava tão próximo que os lábios ainda se roçavam, os narizes se tocavam, e Stan pôde sentir o sorriso dele em retribuição. Abriu os olhos para encontrar o par de imensidões verdes o encarando, mas seria difícil saber a cor dos olhos do rei naquela escuridão. Stan não precisava de luz: ele já conhecia de cor cada mancha, cada nuança daqueles olhos. Umedeceu os lábios, gastando um momento para observar o rosto em frente ao seu com uma expressão séria, enquanto suas mãos passeavam pelas costas macias dele. Era tão quente embaixo das cobertas.

-Posso perguntar algo?

-Claro. – Kyle respondeu em uma voz sonolenta, franzindo um pouco as sobrancelhas em certa desconfiança.

-Por que não fomos nós dois? – O guerreiro murmurou com rouquidão, estreitando os olhos enquanto perguntava, como se fosse o questionamento mais complexo desse mundo. Demorou para prosseguir, sentindo que a pergunta se bastava, mas Kyle apenas o encarou de volta, os olhos brilhando em curiosidade. Os corpos dos dois continuavam enroscados, o rei abraçando o tronco dele com a mesma necessidade, as pernas se confundindo entre as dele. Stan ofereceu um suspiro curto e hesitante, passando a língua pelo lábio superior novamente, chegando a afastar o rosto alguns centímetros para enxergá-lo melhor. – Isso que você divide com ele, por que não fomos nós dois? Por que nós nunca tivemos isso?

Kyle desviou o olhar para baixo, e Stan soube que aquilo significava compreensão.

Compreensão de que Stan enxergava através dele, que não podia haver ilusão ou fingimento de qualquer natureza entre os dois, pois isso seria ofensivo a tudo que eles compartilharam a vida inteira. E Stan não tinha a menor ideia de como dizer ou expressar, mas queria acima de qualquer coisa que Kyle soubesse que ninguém estava sendo enganado, que o guerreiro tinha perfeita noção do que eles eram: amigos. Não no sentido banal que parece uma categoria inferior ao amante, porque não havia nada de inferior no que eles compartilhavam. Pelo contrário, era totalmente incondicional, ao ponto de eles poderem experimentar o corpo um do outro sem colocar em risco os sentimentos de ninguém. Eles se compreendiam como mais ninguém no mundo poderia, todos os defeitos e qualidades, o lado belo e o lado feio, os detalhes mais ocultos e íntimos. E Kyle sorriu para ele, de forma um tanto melancólica, subindo uma mão ao rosto de Stan para acariciar a bochecha do homem com sua palma delicadamente.

-Nós não tivemos isso porque, quando se tem algo tão carnal, tão instintivo e passional com alguém, e algo dá errado, a relação é deformada. O que eu tive com ele... O que eu sinto por ele é o que é porque não poderia ser outra coisa. Não poderia ser amizade. Se eu tivesse algo tão intenso com você, eu não suportaria te perder, Stan. – O rei murmurou baixinho. – Eu preciso de você.

O guerreiro passou alguns instantes imóvel, e Kyle mordeu o lábio em nervosismo por não poder enxergar propriamente a expressão no rosto dele. Logo, ele voltou a se aproximar, e o coração de Kyle estremeceu em alívio com o beijo longo e úmido que o guerreiro deixou em sua testa, apertando-o entre os braços, com os olhos fechados. Ao afastar os lábios, Stan pressionou a ponta do nariz contra o cabelo ruivo ondulado, acariciando os fios demoradamente, sentindo-o de perto sem dizer nada.

-Você nunca vai me perder.

. . .

Às dez da noite, duas mulheres estavam sentadas no mesmo sofá.

-Muito obrigada por vir. – Henrietta disse enquanto servia uma xícara de chá fumegante, despejando o líquido de um bule de porcelana floral que ela só usava quando recebia visitas. Foi um presente de sua mãe, e Henrietta não chegou a ficar surpresa quando viu o jogo de chá delicado, pois todos os presentes de sua mãe acabavam esquecidos no armário pegando poeira durante meses. Wendy segurava o pires com a pequena xícara que era servida, olhando para a mulher com olhos curiosos. – Eu realmente gostaria de conversar.

Wendy ficou surpresa pelo convite de última hora. Apesar das duas mulheres cultivarem uma amizade relativamente íntima, Wendy conhecia as limitações de Henrietta muito bem; convites para visitá-la raramente vinham, e quando acontecia, havia algum motivo alternativo por trás. Henrietta não era exatamente uma pessoa sociável, ou que apreciasse a beleza do chá com bolachas, então a situação começava a deixar Wendy um tanto aflita. Wendy era sua única amiga mulher, porque a simplicidade dos homens parecia muito mais fácil de lidar, e os interesses de Henrietta não costumavam ser semelhantes aos das outras mulheres. Mesmo com Wendy, era uma amizade improvável e circunstancial. Mas havia momentos em que uma opinião feminina se fazia necessária, e por isso, ela era grata pela fidelidade incondicional de Wendy. Confiava cegamente no caráter dela.

As duas se encontravam na sala da casa que Henrietta morava há três anos com Michael, seu marido. Ela não se referia a ele como “marido” porque o rótulo social não lhe caía bem, e Michael concordava completamente, preferindo cultivar a liberdade do amor sem nome. Mas na prática, faziam tudo que um marido e uma esposa fazem. O papel de parede era em damasco roxo escuro com tábuas de madeira avermelhada em alto-relevo; o sofá em que elas estavam sentadas era de um vinho escuro, decorado com almofadas pretas, como boa parte do ambiente. O lustre acima de suas cabeças também era preto, grande e exagerado, assim como as cortinas e o tapete. Estantes enormes de madeira escura cercavam uma das paredes, com milhares de livros grossos que Henrietta tratava como seus bebês; ninguém tinha permissão de tocar em seus livros. Havia castiçais com velas sobre a mesinha de centro, assim como uma bandeja com o bule, as xícaras e uma vasilha de biscoitos.

-O que houve? – Wendy perguntou em preocupação.

-Eu acho que estou grávida. – Ela respondeu sem cerimônia, passando os dedos pelo colar de prata que usava, roçando as longas unhas pelo grande pingente de pedra roxa. Sua mão era revestida por uma luva sem dedos, de renda.

Os lábios de Wendy se separaram de forma sutil, antes que ela passasse a língua por eles inconscientemente, franzindo a testa por um segundo, como se não compreendesse. Mas logo a realização fez com que ela colocasse a xícara com o pires de volta sobre a bandeja, levando a mão ao joelho de Henrietta, com um sorriso largo iluminando seu semblante.

-Isso é maravilhoso!

-É?

O sorriso de Wendy não desapareceu completamente, mas perdeu um pouco a força enquanto ela escorregava no sofá para mais perto da outra mulher, seu rosto tomado por uma confusão evidente. Henrietta, ao contrário, continuava com uma expressão em branco, segurando sua xícara com café preto apoiada sobre a coxa, mantendo a outra mão sobre os seios.

-Por que você acharia que não? – Wendy perguntou, estreitando os olhos.

Ela sacudiu a cabeça, finalmente desviando o olhar.

-Eu não sei. Michael e eu nunca conversamos sobre isso. Ele não faz ideia.

-Você não contou a ele? Onde é que ele está?

-Em guarda no castelo. Três vezes por semana, ele trabalha durante a madrugada. Não vai voltar até o amanhecer. – Ela disse, acenando com a mão despreocupadamente, dando um longo gole no café que já estava frio.

Wendy assentiu com a cabeça e voltou a oferecer um sorriso sincero, dando dois tapinhas com a mão que descansava sobre o joelho de Henrietta.

-Não se preocupe com isso. Eu tenho certeza de que ele não será como se conter de alegria. É uma das coisas mais belas que pode acontecer a alguém, Henrietta. Eu sei que você está um pouco assustada agora, mas acredite em mim. Será maravilhoso.

. . .

Às três da manhã, o silêncio na cela de Kenny era quase doloroso. O loiro estava sentado sobre a tábua suspensa que servia como cama, com uma das pernas dobradas e o pé apoiado sobre a tábua, a calça rasgada no joelho expondo um ralado feio, coberto por uma casca de sangue seco. As roupas imundas e finas provocavam uma sensação ruim com a textura tocando a pele; as mangas estavam dobradas até os cotovelos, os pés descalços estavam tão imundos que mal se podia ver a pele clara por baixo da sujeira, a barba de um tom loiro escuro já cobria seu maxilar. Kenny não dormia. Encarava as barras da cela como um morto vivo, contando-as repetidamente – vinte e oito barras, a cela tinha – com a cabeça encostada na parede e os olhos estreitos, a boca em uma linha reta, com os lábios levemente enrugados. As sobrancelhas grossas, que não pareciam grossas por serem tão claras, estavam um tanto franzidas em concentração. Uma das mãos do prisioneiro descansava sobre o joelho ferido. O inchaço no rosto havia diminuído, mas os hematomas continuavam evidentes, talvez até piores do que no primeiro dia. E ele contava: nove barras, dez barras, onze barras...

Ele perdeu a conta quando ouviu um estrondo, do outro lado da parede, como se algo grande tivesse sido derrubado. Kenny virou o rosto em direção à porta, esboçando a confusão nos olhos, murmurando baixinho:

-Mas que merda...?

Logo em seguida, um grito agonizante e contínuo eclodiu nos ouvidos do prisioneiro, que chegou a se encolher pela intensidade do som, e o grito de desespero ficava cada vez mais alto. E grunhidos eram emitidos, grunhidos altos e esganiçados que logo desapareciam no ar, e passavam dez, trinta, cinqüenta segundos e o grito permanecia estridente; um minuto, três minutos, sons de lanças sendo atiradas ao chão e espadas rasgando carne humana, uma risada baixa de satisfação, corpos e objetos pesados caindo, tudo acontecendo como uma dança que Kenny não podia enxergar. E o grito não parava, jamais.

O coração já batia tão forte que ele podia sentir o pulsar nos próprios ouvidos. Kenny colocou os pés no chão, levando a mão do joelho para agarrar a corrente que suspendia o banco, apertando-a entre os dedos nervosamente, mordendo o lábio inferior em precipitação. Pensou em se levantar, mas foi intimidado por uma forte luz alaranjada que vinha das frestas da porta de entrada para sua cela. Outros gritos se juntavam em um coro agora, mas logo eram silenciados ou reduzidos a pequenos murmúrios que Kenny não podia entender. O caos do lado de fora pareceu durar uma eternidade, até que uma sombra se colocasse à frente da porta da cela de Kenny, e naquele momento, o prisioneiro teve certeza absoluta de que era o fim.

Kenny não tinha medo da morte, apenas uma boa lista de lamentações.

“Dê-me uma chance de consertar, seu bosta”, pensou em uma prece interna ao Deus no qual sua mãe acreditava e para o qual rezava fervorosamente. Não acreditou que esse Deus o pudesse escutar, mas então a porta foi arrombada com um machado e se escancarou em um barulho desagradável, revelando a figura de um homem alto e loiro, cujo corpo era iluminado pelo brilho alaranjado de uma chama alta que havia no corredor, com suor pingando da testa.

-Trent?! – Kenny murmurou em descrença.

Trent Boyett era um homem de quase dois metros de altura, com o cabelo ainda mais loiro do que o de Kenny, em um tom devidamente amarelo, braços musculosos cobertos por tatuagens de símbolos da história de Kupa Keep, um rapaz que o aterrorizara durante a infância, mas tornou amigo íntimo de seu irmão e passou a respeitá-lo na época da rebelião. Trent vestia uma regata branca por baixo de um colete preto, os dedos repletos de anéis prateados, os pés revestidos por botas de combate que faziam barulho quando ele adentrava o cômodo seguido por Kevin McCormick, que estava tão sujo quanto seu irmão e escondia o braço mutilado por dentro de um casaco grosso.

Ao enxergar seu irmão surgindo por trás da fumaça, com o rosto manchado de gotas de sangue novo, e o olhar aterrorizado, Kenny se levantou rapidamente e correu em direção às barras de ferro (vinte e oito, havia, ele nunca se esqueceria disso) e agarrou-se a elas como se fosse possível quebrá-las com os dedos, apertando o ferro entre as mãos.

-Kevin, o que houve?! O que vocês fizeram?

-Hora de ir, irmãozinho.

Foi então que ele enxergou as chaves cintilando entre os dedos grossos de Trent, cobertos pelo vermelho, enquanto ele brincava com o chaveiro que pertencera a Bradley Biggles. Kenny sacudiu a cabeça negativamente, engolindo seco.

. . .

Às três e meia da manhã, a pá de Christophe era enterrada na neve que cobria a grama do castelo, afundando-se na textura fofa com a ajuda do pé que pressionava para baixo, enquanto as cinzas do cigarro caíam livremente ao solo, pois ele tinha as duas mãos ocupadas segurando o cabo. Ao puxar a pá com um bocado de neve para jogar sobre a pilha ao lado, o francês endireitou as costas com um grunhido irritado, esfregando a testa com as costas da mão, depois levando-a à boca para pegar o cigarro e afastá-lo dos lábios, erguendo o queixo para soltar a fumaça. Seus olhos passaram despretensiosamente pela sacada do quarto do rei, e imediatamente se estreitaram em dúvida. Christophe franziu a testa pela visão de um homem vestido em preto, de pele e cabelos escuros, com uma faixa vermelha amarrada à testa e uma corda presa ao braço. Foi apenas um vulto, mas os olhos de Christophe jamais se enganavam. Jamais. O cigarro pela metade foi atirado ao chão e apagado com o pé.

E Christophe apertou a pá entre os dedos e correu.

. . .

Às seis da manhã, quando Stan Marsh ouviu uma batida incessante na janela de seu quarto, resmungou irritado, apertando os olhos e virando-se para o lado. “Desistirão”, pensou brevemente, não dando importância ao barulho. Havia deixado o quarto de Kyle relativamente cedo na noite anterior, para trabalhar com Gregory até tarde nos mapas de ataque. Haveria um confronto em poucos dias. Stan dormiu na própria cama com as mesmas roupas do dia anterior, após beber meia garrafa de rum. Merecia seu descanso. No entanto, ao contrário do esperado, as batidas só ficaram mais fortes.

Bufando como um lobo selvagem, Stan empurrou o cobertor de forma irritada, sentando-se na cama, colocando os pés no chão.

-Certo, certo, eu já vou! – Gritou.

Demorou algum tempo para se orientar, apertando os olhos pelo excesso de luz do sol, protegendo o rosto com a mão enquanto recuperava a visão. Quando finalmente compreendeu que havia alguém batendo em sua janela, Stan se levantou da cama para abri-la com certa dificuldade. A porcaria emperrava. Já podia ver o rosto de Gregory do outro lado do vidro, e franziu as sobrancelhas pela expressão no rosto do homem.

-O que foi? – Perguntou, colocando a cabeça para fora da janela, se esticando sobre o parapeito.

-Venha. – Foi tudo o que Gregory disse, sacudindo a cabeça perdidamente. – Venha rápido.

. . .

Era para ter sido um lindo dia.

O céu era azul como não se via há dias, aberto e vivo, iluminado por um sol vistoso que banhava a todos com seu calor, oferecendo esperança e harmonia para o dia que estava prestes a começar. Os pássaros cantavam, os animais silvestres passeavam livremente, o reino começava a acordar em paz.

Até que o grito desesperado e estridente estourou no pátio do castelo, ecoando por todo o vilarejo em torno. O pássaro azul gordo que estava sobre o banco coberto de neve levantou vôo, assustado, enquanto a mulher corria contra o ar gelado, trotando como um cavalo selvagem. O cabelo de Henrietta não havia sido escovado ainda, e seu rosto não havia sido lavado, estava inchado de sono e completamente sem maquiagem (como ela raramente era vista). Mas nada disso importava; a única coisa que importava para ela era chegar à escadaria do castelo onde o corpo de Michael estava estirado; a mão totalmente branca com a palma virada para cima, o rosto de lado com o par de olhos pretos arregalados e sem vida, a boca ensangüentada, uma mancha vermelha imensa ao seu redor. Apenas quando Henrietta o alcançou, ajoelhando-se nos primeiros degraus da escada para puxar o cadáver contra si, é que ela pôde ver o rasgo imenso no peito do homem, o rasgo feito por uma espada que atravessara das costelas e saíra pelas costas, que agora estavam cobertas por cristais de neve que pareciam um manto prateado. Henrietta gritava ininterruptamente enquanto segurava o rosto com força entre os dedos, cravando as unhas na pele gélida, sacudindo-o em desespero e em seguida pressionando a cabeça ensangüentada contra os seios, estourando em um choro desesperado e sem ar, repetindo o nome de Michael como um mantra.

Token Black ouvia os gritos de Henrietta, de pé a poucos metros dela, mas não os absorvia. Olhava em torno com a mão cobrindo a boca e os olhos repletos de desolação, esquecendo-se de respirar durante longos segundos, apenas sacudindo a cabeça negativamente. Logo, era uma multidão. Criadas, cozinheiros, faxineiras, escudeiros, soldados, todos se aproximando. Token não registrava suas reações, não ouvia as lamúrias, os gritos daqueles que conheciam e amavam os guardas dispostos ao chão em uma piscina de sangue. Tudo parecia acontecer em câmera lenta. Não viu as viúvas, não viu as crianças que se aproximavam. Sentiu uma mão agarrando seu braço, chacoalhando seu corpo, e virou o rosto para enxergar o olhar apavorado de Gregory; a boca se mexia, mas Token não podia ouvir o que ele falava durante os primeiros momentos. Estava anestesiado. Seus lábios estremeciam em horror, os olhos estavam semicerrados, e só quando Gregory colocou a mão fria na lateral de seu pescoço, que Token pareceu sair do transe.

-A torre! – Gregory gritou contra sua face. – Venha comigo até a torre!

Logo atrás do loiro, Token pode ver Stanley. Os dois trocaram um contato visual demorado; as roupas do guerreiro estavam amassadas, os olhos um tanto vermelhos, o cabelo parecia seboso, e a respiração era como a de um animal. Em questão de segundos, Stan empurrava quem quer que estivesse a sua frente para adentrar o castelo em disparada, talvez mais rápido do que Henrietta havia corrido, e Token o assistiu se afastar tão rapidamente quanto um leopardo. Voltou a encarar os olhos de Gregory, e assentiu com a cabeça, seguindo o homem em meio ao caos.

. . .

Quando chegaram ao topo da torre, Token teve certeza de que iria vomitar.

Cobriu a testa com uma mão e estremeceu, fazendo uma careta que mesclava a ojeriza com a revolta, sentindo lágrimas queimando em seus olhos. Mas não era o momento apropriado para ter sentimentos, ele sabia disso. Gregory caminhava à frente, sem dizer uma palavra, apertando a mão no cabo da espada guardada na bainha, apenas sacudindo a cabeça enquanto encarava o rosto de cada um dos rapazes dilacerados e largados ao chão, alguns afogados no próprio sangue, outros decapitados, outros virados para baixo. Um deles, totalmente carbonizado, irreconhecível. Por cada homem que passavam no corredor, Token se abaixava para fechar os olhos. Não conhecia todos os guardas, mas naquele momento, sentia como se conhecesse.

Ao encontrar a cela de Kevin McCormick vazia, Gregory virou-se para encarar Token com escuridão nos olhos, rangendo os dentes em agonia.

-Foram eles. Foram aqueles ratos humanos. Eu sabia. – Murmurou entre os dentes, e Token não respondeu.

Ao se aproximarem da cela de número 907, que também encontrariam vazia, um som chamou a atenção dos dois homens antes que pudessem chegar ao destino. Um murmúrio, tão baixo que poderia ter sido emitido por um rato; mas não foi. Token prendeu a respiração e levou uma das mãos à testa quando seus olhos encontraram Bradley, aquele menino tão jovem, tão dedicado, por quem ele tinha profunda adoração. Token rolou os lábios por dentro da boca antes de escorregar a mão da testa para cobri-la, estremecendo para manter-se sob controle ao ver os olhos imensos e assustados de Bradley o encarando de volta, e o rapaz murmurava e gemia sem poder formular palavras, tentando encontrar forças para erguer uma mão na direção deles, tremendo. As lágrimas escorriam incessantemente de seus olhos. Em seu tórax, havia uma abertura tão larga que as vísceras estavam expostas, o intestino saindo como se tivesse sido puxado. Ele devia estar agonizando há horas, Token pensou, esforçando-se para abrir um sorriso triste enquanto se ajoelhava ao lado do rapaz, envolvendo a parte de trás da cabeça dele com uma mão delicada. Gregory observou com pesar nos olhos, respirando fundo, sacudindo a cabeça como quem não acredita no que vê. Não demorou a fazer o mesmo, ajoelhando-se do outro lado do garoto moribundo.

Bradley o encarava com os olhos arregalados em horror, sem poder parar de tremer, gemendo sem forças, chorando compulsivamente, em choque. Mas ver Token pareceu trazer algum conforto aos olhos do rapaz. Não podia falar, e quando tentou, Token cobriu seus lábios com o dedo indicador.

-Shh. Tudo bem. – Sussurrou para ele, subindo a mão pela testa de Bradley para fazer um carinho com os dedos. – Você não está sozinho.

E então, Token ergueu os olhos a Gregory, que o observava a espera de um sinal. Token fechou os olhos com dor por um momento, mas assentiu com a cabeça. E Gregory se ajoelhou, puxando a espada lentamente da bainha.

-Você vai descansar agora, tudo bem? – Token murmurou ao garoto. – A dor vai passar.

E Gregory se certificou disso.

. . .

Stan correu escada acima com tanta pressa que chegou a tropeçar, segurando-se firmemente no corrimão para não cair, sem parar de andar um segundo. O longo corredor nunca pareceu tão longo, e o formato curvado da parede não permitia que ele enxergasse a porta do quarto do rei, não importava o quanto ele corresse. Ele não podia respirar. Quando começou a ver o caminho de manchas de sangue seguindo pelo tapete, todo o ar pareceu deixar seus pulmões. Ele gritou pelo nome do rei repetidamente, mesmo que já soubesse na boca de seu estômago que não haveria qualquer resposta.

Stan só parou de andar quando se deparou com um corpo atirado ao chão, de barriga para baixo. Reconheceu o homem imediatamente, e não pôde se mexer durante alguns segundos, apenas murmurando para si mesmo:

-Não. Não, não, não, não. Christophe!

O guerreiro começou a se abaixar antes mesmo de alcançar o corpo, engatinhando boa parte do caminho desesperadamente até estar de joelhos ao lado dele, procurando ansiosamente por ferimentos, observando o cabelo castanho grosso e empapado em sangue que escorria pelo rosto do homem. Stan passou a mão pelas costas do francês, tentando sentir os batimentos enquanto o puxava para virar o corpo para cima, deitando-o sobre suas coxas, tocando a pele quente do rosto dele antes de dar uma sequência de tapas na bochecha, sacudindo-o com certa força em agonia.

-Christophe, caralho!

O homem apertou os olhos antes de começar a abri-los, e Stan soltou um gemido fraco de alívio, inclinando o tronco até que seu rosto estivesse pressionado contra o peito dele, apertando o tecido da camisa de Christophe entre os dedos com força, sacudindo a própria cabeça de forma incrédula.

-Graças a Deus, você está vivo. – Murmurou baixinho, antes de voltar a erguer o pescoço para encontrar o par de olhos negros o encarando de forma confusa e desorientada como se levasse um tempo até reconhecê-lo. Stanley sorriu para o homem, mas Christophe não sorriu de volta.

Esticou o pescoço para olhar em torno, com o olhar mais assustado do que Stan jamais vira nele antes, e imediatamente o sorriso se esvaiu de seu rosto, voltando a processar a realidade da situação. A mão de Christophe alcançou o pulso de Stan e o apertou o máximo que sua força física permitia no momento, enquanto o francês tentava erguer o tronco, sem sucesso, depois agarrou o tecido da camisa de Stanley para puxá-lo para baixo, fazendo com que o guerreiro aproximasse o rosto do dele.

-Ils l'ont emmené. – Ele murmurou em uma voz rouca e fraca, sacudindo a cabeça atordoadamente. – Stan.

-O quê? Eu não...

-Stan! – Christophe interrompeu, apertando os olhos e tossindo tão alto que o guerreiro chegou a pensar que ele estivesse se afogando. A mão de Christophe o soltou, e o francês começou a balançar a cabeça com uma expressão de dor. – Eu não pude...

-Fique aqui. – Stan disse distraidamente quando Christophe rolou para o lado, soltando um grunhido dolorido.

Rapidamente, o guerreiro se colocou de pé, dando alguns passos para trás antes de voltar a correr, e a porta estava muito próxima agora, aberta, esperando por ele. Adentrou o quarto como um furacão, segurando nas laterais da porta como se precisasse disso para frear, gritando pelo rei enquanto olhava em volta. Foi só dar três passos dentro do quarto que Stan congelou no mesmo lugar, e um gemido sem fôlego escapou dos seus lábios como se tivesse acabado de levar um soco no estômago. A mão do guerreiro buscou algo em que pudesse se segurar, encontrando uma cadeira posta fora de lugar em meio à bagunça, e a outra mão livre serviu para cobrir a boca enquanto os olhos se arregalavam em horror. Do outro lado do quarto, havia o cadáver de um humano, Clyde Donovan. Stan acreditou que seria satisfatório ver o corpo morto de um humano depois da pilha de cadáveres de elfos, mas não havia nada de satisfatório no que ele enxergava, porque ao lado da cama, atirado ao chão como algum tipo de cachorro, sem um pingo de dignidade, estava Pip Pirrup com a garganta aberta.

Stan esmurrou a mesa de madeira com tanta força que chegou a rachá-la.



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