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História Rex Meus - Adieu, mon cher


Escrita por: caulaty

Capítulo 18 - Adieu, mon cher


Havia sete pessoas na sala. O silêncio era excruciante, com exceção do choro fino e contínuo que vinha em ondas, acompanhado de uma respiração ofegante e desesperada, fungadas úmidas e gemidos contidos, todos emitidos pelo mesmo garoto de olhos inchados e vermelhos. O choro de Ike não era escandaloso; muito pelo contrário, era evidente o esforço do rapaz para manter-se sob controle, como lhe fora pedido várias vezes. Ele estava sentado no sofá entre dois homens, um deles sendo Stanley, que mantinha o braço envolto nos ombros de Ike como uma forma de oferecer conforto, a mão acariciando o topo da cabeça, passeando os dedos entre os fios negros dos cabelos dele. O outro homem não buscava oferecer conforto algum, sequer fazia contato visual. Mantinha as mãos entre as coxas e os olhos no chão, a boca fechada e os dentes rangendo baixo para conter o nó em sua garganta, provocando uma careta dolorosa, como quem sente o desconforto de engolir o próprio vômito. Não havia dito uma palavra desde que acordara; esteve apagado durante oito horas. Seus olhos pareciam brilhar mais do que de costume, tornando o castanho da íris mais claro. Havia uma faixa de gaze manchada de sangue envolvendo sua cabeça para conter o ferimento da concussão.

Token e Gregory estavam de pé à frente dele, Token mantendo os braços cruzados e a cabeça baixa, e Gregory umedecendo os lábios de forma nervosa, tentando pousar uma das mãos no ombro do homem delicadamente. Mas ele não se moveu. Os dois conselheiros trocaram um olhar demorado, incerto, mas o silêncio ainda se estendeu durante quase um minuto, e a sala era preenchida somente pelo choro quieto do príncipe. Na poltrona ao lado, estava Henrietta Biggle, abraçada a uma almofada de cetim azul escuro, fria ao toque de suas mãos. A mulher vestia preto, como de costume, e tinha profundas olheiras, como de costume, e um batom cor de vinho nos lábios, como de costume. Mas o olhar de Henrietta não era nada costumeiro. Não era astuto e observador; mas sim completamente vazio, como se nada do que acontecesse em volta tivesse importância. Mas ela mantinha os olhos nos dois homens de pé, com o queixo bem levantado, aguardando. Wendy estava de pé ao lado de sua poltrona, como um cão de guarda.

-Você precisa começar a falar. – Gregory disse no tom mais delicado que pôde, o que era de uma dificuldade imensa para ele, inclinando-se para aproximar o rosto do outro homem. – Precisa nos contar tudo o que viu. Nós estamos perdendo tempo precioso, você sabe disso.

Eram quase onze horas da noite. Agora, não havia mais nenhum cadáver exposto no castelo e o sangue fora lavado do chão. Criadas passaram a tarde esfregando o piso de pedra do pátio, o piso de madeira da torre, o piso de porcelanato da entrada do castelo. Algumas mulheres choravam silenciosamente enquanto esfregavam com força com suas escovas, mergulhando-as em baldes de madeira sem olhar umas para as outras, sem falar sobre os corpos alinhados lado a lado, que logo seriam carregados para um funeral apropriado. Uma vigília seria feita no dia seguinte. Durante aquela noite, as famílias diriam adeus. Token e Stan estiveram em cada um dos velórios, e passaram boa parte da noite ao lado do corpo pálido e sem vida de Pip, envolto por rosas amarelas. Pip não tinha família em Zaron, era órfão desde criança, mas não lhe faltaram pessoas para chorar sobre seu corpo. Token ficou surpreso ao ver o filete de lágrimas que escorria pela face do cozinheiro, Darryl Weathers enquanto o homem segurava seu chapéu em frente ao peito e encarava o rosto de Pip, que parecia tão em paz quanto uma criança que dorme. “Se os deuses precisam levar alguém, que levem os velhos, não os meninos”, Darryl disse a Token.

Henrietta também estava, até pouco tempo, velando seu homem. Nenhuma lágrima foi derramada, pelo menos não durante o velório, enquanto ela mantinha a palma sobre o peito de Michael, alisando o tecido negro da roupa que escolhera para ele. Os botões negros de uma camisa branca e o manto preto o cobrindo, a mesma roupa que ele vestia desde adolescente, quando se apaixonaram. Henrietta colocou ao lado dele a bengala, conseguindo até mesmo abrir um sorriso ao imaginá-lo de pé mais uma vez. Michael era manco há dois anos, desde que imobilizou um bêbado que tentava falar com o rei e o maldito enfiou um canivete em seu calcanhar. Ele estava em constante dor nos tendões, mas jamais reclamava a respeito. Henrietta lhe deu uma bengala de cabeça de cavalo, banhada a ouro, e ele amava aquela bengala como Henrietta amava seus livros. Ela fumava sobre o cadáver do marido, propondo-lhe um último cigarro, rolando os lábios por dentro da boca para conter qualquer possibilidade de chorar. Acariciava os cabelos crespos pretos de seu marido, que tornavam a pele pálida dele ainda mais branca, que agora parecia ganhar uma tonalidade acinzentada. E ela sabia que aquele corpo não era seu Michael, e não era assim que ela se lembraria dele.

Quando Stan foi até eles com o anúncio de que Christophe finalmente havia acordado, Token insistiu que ela ficasse no velório e se despedisse. Que eles cuidariam de tudo que fosse necessário. Mas Henrietta não se deu ao trabalho de discutir, apenas os seguiu de volta ao castelo para uma reunião emergencial. E ali estavam eles.

-Toupeira, escute. – Token tentou, mais eloqüente e suave, e Gregory afastou a mão do ombro de Christophe para dar um passo para trás, deixando que ele se aproximasse. – Você estava no quarto do rei, precisamos saber o que você viu ou o que eles querem. Foram os McCormick? Sabemos que é muito improvável que eles tenham agido sozinhos, alguém os libertou. Foi Cartman? Ele veio até aqui, fez exigências?

Token tentou levar os dedos até o queixo do francês para um toque gentil, mas a mão de Christophe finalmente agiu, agarrando o pulso dele com uma força violenta para afastar a mão dele, enfim erguendo os olhos do chão. O olhar era intimidador o bastante para que Token limpasse a garganta e endireitasse o tronco, respeitando o desejo de não ser tocado. A menção do rei apenas intensificou o choro do príncipe, que aumentou, e Stan puxou a cabeça de Ike para deitá-la em seu ombro, sussurrando algo no ouvido do garoto.

-Você é a única pessoa que os viu e saiu viva. A única, Christophe. – Gregory disse com mais impaciência. – Nós precisamos saber exatamente o que esses filhos da puta querem se vamos trazer nosso rei de volta. E nós vamos, entende? Então comece a contar logo.

-Céus, deixem-no em paz.

Token e Gregory se viraram em direção a Henrietta, que agora agarrava os braços da poltrona e encarava-os com as sobrancelhas franzidas. Até mesmo Ike levantou a cabeça para enxergá-la, tremendo, com os lábios entreabertos e o rosto molhado, vermelho. Seu nariz escorria, não importava o quanto ele fungasse. Christophe não a olhou, nem mesmo reagiu à frase, mas Stan notou como ele encolheu o ombro quase que imperceptivelmente, e estreitou os olhos, parecendo um animal encurralado.

Quando o loiro separou os lábios para falar, Token levou as costas da mão ao peito de Gregory para impedi-lo, deitando a cabeça um pouco para o lado.

-Todos nós estamos abalados. Nervosos. Não há como não estar. Mas nós não podemos ficar parados. Vocês entendem o que está em risco aqui?

-Com todo o respeito, Token. – Wendy interveio. – Nós estamos em guerra. Tínhamos dois prisioneiros de Cartman. Agora, entendemos que ele faria qualquer coisa para ter o cetro. O que Christophe pode te contar que você já não saiba?

-Sabemos que foi Cartman, mas como? A floresta é densa demais para passar um exército inteiro, ainda mais sem que nossos guardas percebessem, sem que ninguém fosse acordado. – Gregory respondeu. – Nossa segurança não é precária. Como poucos homens teriam matado um terço da nossa guarda real e feito isso silenciosamente? E o mais importante: o que fizeram com Kyle. Eu quero nomes.

Henrietta levantou-se da poltrona tão rápido que Gregory chegou a se assustar, pois ao virar o rosto, encontrou o par de olhos negros fuzilando-o de perto. Não havia qualquer traço de vermelhidão do choro nos olhos daquela mulher, muito pelo contrário: encarava-o com a força de uma muralha, como se nada jamais a tivesse desestruturado em sua vida. Os punhos estavam cerrados, e projetava o queixo para baixo de forma que apareciam dobras em seu pescoço. Nesse momento, Ike cobriu o rosto e abaixou a cabeça como se não suportasse mais estar ali, com o rosto úmido vermelho escondido nas palmas, a cabeça latejando. Chorava mais alto. A resposta de Gregory foi simples, como sempre era: caracteristicamente levantou uma das sobrancelhas, enrugando os lábios em uma expressão pensativa. Não havia a arrogância corriqueira no ar do loiro, provavelmente porque ele estava aterrorizado e exausto demais para isso. Apenas não deixava transparecer tão bem.

-As respostas de Christophe hoje serão as mesmas amanhã. – Ela disse com uma voz estranhamente firme. E então prosseguiu, mais baixo, de forma apática. – Ele não quer falar. Ele não consegue. Vocês mesmos acabaram de dizer... Ele foi a única pessoa que sobreviveu a um massacre. Um massacre, seus imbecis. Vocês têm alguma noção das coisas que esse homem viu? Será que algum de vocês faz ideia do que é... Ver alguém que você ama ser levado embora e não poder fazer absolutamente nada a respeito? Ele acabou de acordar. Deixem-no em paz.

A mão de Token cobriu o ombro de Gregory – embora não fosse necessário contê-lo. Gregory poderia transparecer uma frieza freqüente, por ser estritamente racional, mas Token o conhecia muito além da superfície. A dor e o luto nas palavras da mulher era tão eminente, e ele sempre teria imensa consideração pelo sofrimento do outro. O britânico limpou a garganta e assentiu com a cabeça, respondendo em seu tom mais educado:

-Henrietta, eu compreendo que essa questão seja infinitamente mais dolorosa para você do que para todos nós. Talvez você deva ir descansar um pouco.

Imediatamente, a mulher abriu a boca para despejar insultos e explicar como nenhuma desgraça pessoal a impediria de fazer o seu trabalho em um momento tão importante, em que o reino havia perdido sua liderança e o Conselho precisava estar mais estável e unido do que nunca. Mas Henrietta não teve a oportunidade de dizer nada disso, porque o choro de Ike se intensificou conforme a tensão aumentava, e em poucos segundos, Christophe estava de pé. Precisou se apoiar no sofá para erguer o corpo, pois os músculos doíam e a cabeça ainda latejava, e o movimento fez que Henrietta contivesse as palavras em seus lábios, e todas as cabeças se viraram para o homem de pé, em uma mescla de surpresa e expectativa. Até então, Christophe se assemelhava muito a um morto vivo. A expressão em seu rosto continuava tão branca que poderia muito bem ser de um homem morto, mas havia um brilho quase assustador em seus olhos negros enquanto ele se virava de frente para Ike, que levantou a cabeça em soluços para encará-lo com olhos arregalados enquanto a palma aberta de Christophe colidia em seu rosto com toda força, emitindo um som tão alto que ecoou pelas paredes do salão.

E por quase dez segundos, o silêncio foi mortal.

A bochecha de Ike ardia em uma cor quase tão vermelha quanto a de seus olhos inchados, assim como a mão de Christophe. Ninguém pareceu poder respirar durante um longo tempo, enquanto o rosto de Ike continuava virado de lado pela força do impacto, escondido pelos cabelos pretos, com os lábios entreabertos em choque. O som que quebrou o silêncio foi um gemido assustado que o garoto soltou sob uma respiração pesada, e Christophe inclinou o tronco para colocar o rosto na altura do dele. Sua testa agora estava franzida e os olhos estreitos, mais expressivos do que nunca.

-Pare de chorar. – ele murmurou entre os dentes, quase sem abrir a boca.

Quando o francês se endireitou, deu uma boa olhada nos olhos azuis de Stanley que o encaravam aterrorizados demais para fazerem qualquer julgamento. E depois, virou em direção aos outros observadores, encarando cada um deles brevemente, com a boca em uma linha reta, o peito estufado, contraindo os músculos da face momentaneamente como se tentasse afugentar um pensamento macabro.

O som do choro de Ike não era mais ouvido. E Christophe deixou a sala com o caminhar duro de um homem bêbado, segurando-se nos móveis para não cair. Que houve em seguida foi quase como uma dança ensaiada: Wendy correu para o sofá em que Ike estava sentado, no mesmo momento em que Gregory virou em direção à porta e em que Stan se levantou, deixando Ike nas mãos de Wendy, apontando em direção ao loiro com o indicador para que Gregory não desse mais um passo.

-Não se atreva. – Foi tudo o que o guerreiro murmurou antes de correr atrás de Christophe, deixando a sala e alcançando-o no longo corredor.

Foi uma tarefa relativamente fácil, já que Christophe não andava mais; não havia caminhado muito longe, talvez por falta de desejo, ou talvez ele realmente não conseguisse mais. Stan achava impressionante que ele simplesmente conseguisse ficar de pé naquele estado; com uma costela fraturada, a cabeça ensangüentada de tal forma que fora preciso raspar todo o cabelo do homem para tratar do ferimento, uma abertura causada pelo que parecia ter sido uma pancada muito forte. Stan não sabia ao certo, pois ele não tinha dito nada. O ferimento agora não estava exposto, mas as bandagens na cabeça de Christophe estavam quase que completamente manchadas de vermelho. As olheiras no rosto do homem eram inchadas, realmente roxas, dando um ar tão exausto que ele parecia estar prestes a desmaiar a qualquer instante. A pele grossa era escurecida pela barba que já começava a crescer, e logo no canto do lábio ele tinha uma cicatriz profunda, uma linha fina que parecia fazer parte da pele dele há muito tempo, e Stan não podia se lembrar se já vira aquela cicatriz antes ou se ela era nova; o Toupeira tinha muitas.

Ele parecia uma besta sob aquela luz fraca das tochas do corredor, não um homem. Vestia uma camisa aberta suja de sangue seco, a mesma com a qual fora encontrado; um dia fora uma camisa de botão, mas todos haviam sido arrancados de alguma forma, e por baixo ele vestia uma regata branca que marcava muito bem o abdômen definido e o peito largo por baixo. Ele se apoiava à parede com as costas curvadas, como se quisesse desaparecer em si mesmo, com a cabeça baixa de tal forma que Stan jamais o tinha visto antes. Lembrou-se imediatamente de quando era apenas um garoto e encontrou um porco montanhês com seu pai, em uma das ocasiões em que eles saíram para pescar no alto da montanha. O javali grunhia baixo e respirava pesadamente, porque havia uma flecha atravessada em sua pata, e o ferimento o deixara tão agressivo e tão frágil ao mesmo tempo, gemendo como se suplicasse por socorro, mas emitindo sons altos e ameaçadores quando Stan tentava se aproximar. Stan tentou todo o possível para salvar o animal, mas seu pai insistiu que era muito perigoso e acabou matando o porco pelo que dizia ser “piedade” (embora Stan soubesse muito bem que ele queria levar o animal para casa e exibir como pegou uma caça robusta, ocultando a parte em que o porco já estava abatido).

Christophe era o javali.

E dessa vez, Stan salvaria o javali. O pensamento soou tão idiota em seu cérebro, mas ofereceu impulso o bastante para que ele se atirasse contra o homem antes que ele pudesse recuar, firmando as duas mãos com força nos braços do Toupeira e empurrando-o gentilmente contra a parede, certificando-se de que não machucaria seu corpo fragilizado no processo. Era quase doloroso ver um homem tão forte daquela forma, especialmente um homem com o qual ele se importava tão profundamente. Os dedos fortes de Stan apertaram o toque em torno dos músculos duros dos braços dele, e Christophe não ofereceu qualquer resistência; simplesmente não tinha condições para tal. Deitou a cabeça delicadamente contra a parede, franzindo o rosto para esboçar a dor – que não era física, Stan pode ver muito bem – e enfim abriu os olhos para encarar o rosto do guerreiro próximo ao seu, umedecendo os lábios.

-Não foi sua culpa. – Stan sussurrou. Seu rosto era tomado por um ar suave e sua voz era macia, confortável. – Está ouvindo? Não foi sua culpa.

Christophe não ofereceu resposta durante um longo tempo. Pelo menos não uma resposta verbal; mas desviou o olhar, prendendo a respiração, e rolou os lábios para dentro da boca, deformando a cicatriz. Stan sentiu segurança para aliviar o aperto de suas mãos, mas continuou segurando os braços dele para mantê-lo no lugar, engolindo seco como se não soubesse o que fazer diante de uma reação tão apática. Porque sabia que suas palavras soavam completamente vazias para o outro homem, embora não fossem: o guerreiro realmente acreditava que o que acontecera era inevitável, com todo seu coração.

Os olhos do francês jamais se focavam nos dele; continuavam encarando o que havia atrás, como se carregassem alguma vergonha. Pareciam avermelhados e úmidos, mas não o bastante para distinguir o cansaço de um possível choro. Era inconcebível visualizar Christophe derramando uma lágrima. E ele, de fato, não derramou. Quando seus olhos castanhos voltaram ao encontrar com os de Stanley, estavam dilatados, como se acabassem de enxergar a coisa mais horrenda desse mundo. E essa coisa estava dentro da cabeça de Christophe.

-Ele estava bem ali... Tão perto, tão perto, olhando pra mim com tanta esperança. E eu não... – Então, os olhos se fecharam, e a voz morreu nos lábios dele, como se ele se recusasse a alimentar o sentimentalismo dos próprios pensamentos. Sacudiu a cabeça para afugentá-los, mas eles apenas gritaram mais alto em seu crânio, e isso transpareceu quando o homem encolheu o nariz e mordeu o lábio inferior, com dificuldade para respirar. – Eu não pude fazer nada.

-Ninguém poderia. Olhe só o que eles fizeram com os guardas... Eu... Eu francamente não compreendo como não te mataram, mas agradeço a todos os deuses por isso.

Christophe fungou e soltou um riso baixo e amargo, sorrindo com o canto da boca enquanto balançava a cabeça sutilmente.

-Seus deuses não têm nada a ver com isso.

Ao ouvir um comentário tão característico do Toupeira, o guerreiro assentiu com a cabeça e deu um passo para trás, mas Christophe continuou apoiado à parede, porque seu corpo parecia pesar duzentos quilos a mais naquele momento. Os ombros estavam relaxados e o queixo caído, uma postura que não lhe cabia. Stan limpou a garganta.

-Kyle é a pessoa mais forte que eu já conheci. – O guerreiro disse, desviando o olhar para o lado por um instante, como se falasse sozinho. – Se alguém pode sobreviver a isso, é ele. Eu tenho certeza disso. E nós vamos trazê-lo de volta.

Christophe não esteve acordado no momento em que Stan descobriu o quarto vazio. Desmaiou tão rápido que sequer podia se lembrar de ter falado com Stan, como o guerreiro lhe contou mais cedo. Porém, não era necessário estar acordado para saber que Stanley beirou um ataque psicótico, no sentido literal; e toda a sua calma, toda a sua racionalidade, todas as suas certezas foram reduzidas a pó durante as primeiras duas horas depois de encontrar o quarto do rei no estado em que encontrou. O quarto inteiro foi quebrado. Stan mal podia se lembrar de fazê-lo, mas seus punhos estavam enfaixados porque os dedos foram arrebentados no processo. Stan era um homem calejado, que não abria mão da própria sanidade durante muito tempo; não mais do que o necessário. Em poucas horas, ele já havia se recuperado e começado a pensar no que fazer em seguida; cuidar dos velórios, prestar os pêsames, pensar em um contra-ataque. E Christophe admirava isso nele. Não tinha qualquer desejo de trazê-lo de volta para aquele lugar obscuro de profundo desespero que a incapacidade levava os homens. Mas era necessário dizer:

-Você não conhece aquele lugar. - A voz do Toupeira saiu densa, rouca, como se houvesse um nó na garganta dele. – Kupa Keep não é como aqui.

-Bem, mas eles não vão machucá-lo. Querem nos chantagear, precisam dele inteiro.

O canto do lábio de Christophe se levantou um pouco, mas não em um sorriso. A careta não durou mais do que um instante, mas foi suficiente para fazer o coração de Stanley parar de bater.

-Não. Só precisam dele vivo.

. . .

A fogueira estalava tão alto que, por vez ou outra, Baahir se assustava com o barulho e dava um pequeno pulo, sentado sobre um tronco caído que todos eles estavam usando como banco. Trent, logo ao lado, sempre soltava uma risadinha ou cutucava-o com o cotovelo enquanto mastigava um coelho malpassado, falando com a boca cheia para que ele parasse de ser um frangote, sem prestar muita atenção na conversa dos outros homens. Kevin e Craig estavam do outro lado do tronco, falando baixo um com o outro, com as cabeças quase encostando. Craig olhava fixamente para o fogo, que brilhava em seus olhos exóticos, a chama laranja refletia dentro das órbitas e dançava. Os ombros estavam tensos, a cabeça caída para frente. O tronco de Craig era envolto por um poncho étnico azul e amarelo, feito de lã, mas mesmo assim o frio entrava por baixo da sua pele e ele sentia arrepios. Todos eles haviam parado durante aquela tarde para se banhar no rio, lavar o sangue de seus corpos e suas roupas, mas Craig não. Mantivera-se sentado na grama, com as pernas abertas e o olhar vazio. E assim permanecia seu olhar. O rosto, as mãos, as roupas e as botas continuavam ensangüentados. Kevin tentara limpar pelo menos seu rosto com a única mão que lhe restara, mas Craig respondera com um resmungo, afastando-se. Então Kevin o deixou assim.

Após alguns minutos, Cartman surgiu do meio das árvores, ainda fechando a calça, comentando sobre a mijada que tinha acabado de dar. Soltou um gemido grandioso de satisfação, parando em frente aos seus homens, interrompendo a conversa entre Craig e Kevin apenas com sua presença. Kevin olhou para cima, encarando o rei. Craig não.

-Ei. – O rei disse, virando-se para encarar Baahir. – O que houve com Donovan afinal? – Ele perguntou enquanto se sentava no seu próprio toco de árvore.

Baahir ainda usava a faixa vermelha amarrada na cabeça, que por sorte, havia escapado de qualquer respingo de sangue élfico. Era um homem alto, forte, islâmico, de cabelos cacheados que desciam até a altura do pescoço. O nariz era grande, os olhos um pouco próximos demais, mas era um homem belo e viril. Havia marcas de unha pelo seu rosto e pescoço, arranhões profundos. Umedeceu os lábios enquanto lançava um olhar a Craig, incerto se deveria narrar o acontecido próximo a um homem naquele estado vegetativo em função da perda. Mas Craig virou o rosto para encará-lo de volta.

-Eu quero saber. – Craig disse pausadamente.

Apenas Baahir e Clyde estiveram no quarto do rei, acreditando que dois homens seriam mais do que suficiente para pegá-lo.

-Bem. Quando nós chegamos ao quarto, havia mais alguém lá. Um servo. Nenhum dos dois era muito grande, seria uma tarefa relativamente fácil. Clyde mobilizou o servo, que tentou ficar no caminho, com uma faca no pescoço. Não queria matá-lo, apenas ameaçar, pois era um garoto muito novo e não apresentava perigo nenhum. E eu fui encarregado de pegar o rei elfo. Mas ele ofereceu muita resistência. – O homem contou, apontando para os arranhões na própria face. Depois complementou, com uma risada curta. - Ele me mordeu. Gritava, eu precisava silenciá-lo de alguma forma antes de tirá-lo de lá. Em meio a isso tudo, surgiu um homem pela janela. E... Foi muito estranho, porque Clyde e eu levamos um tempo até reagir, já que o homem não era um elfo.

-Como assim? – Cartman perguntou irritado.

-Ele... Eu não sei, era um humano.

-Espere. – Kevin disse em um tom sombrio, esticando o rosto para enxergar Baahir. – Um homem grandalhão, sujo, com um sotaque idiota?

-Não sentamos para um chá com bolachas, eu não troquei muitas palavras com ele. Mas sim, era um estrangeiro, eu acredito.

Cartman franziu a testa e virou para Kevin com um ar de curiosidade, sem perguntar nada a respeito. Kevin abaixou o rosto para estudar o braço enfaixado que descansava sobre as coxas.

-Foi o puto que me tirou a mão. – Murmurou tão para dentro que era como se estivesse falando sozinho.

Craig voltou a olhar para Baahir e ergueu as sobrancelhas em um gesto, pedindo para que ele continuasse.

-Como estava bastante escuro, nós chegamos a acreditar que era um de vocês por um segundo. Eu não sei ao certo, foi muito rápido, mas esse segundo de hesitação deu vantagem ao homem para vir para cima de mim como um tigre. Eu não faço ideia de como ele chegou lá em cima. Clyde então cortou o pescoço do servo rapidamente e correu na direção dele. O rei viu e gritou. Eu consegui calar a boca dele antes que gritasse alto demais para que alguém de fora ouvisse, mas imediatamente o homem se virou para ver o que havia acontecido, e viu Clyde correndo em direção a ele. Eu não sabia o que fazer quando o homem segurou Clyde pelo braço e torceu com tanta força que eu podia ouvir os ossos dele se quebrando. Mas Donovan era um soldado de verdade. Os dois começaram a lutar, ele continuou atacando o homem, mesmo com o braço quebrado... Eu não podia ajudá-lo, não podia soltar o rei, que se debatia nos meus braços sem parar. No quarto havia algumas pedras preciosas, um altar inteiro, com pedras grandes cortadas ao meio, desse tamanho. Era muito pesado. – Ele mostrou com as duas mãos como a coisa tinha certa de vinte centímetros. – Clyde agarrou uma daquelas pedras e deu com toda a força que tinha na cabeça do homem. Mas o puto não ficou desacordado, ele parecia feito de ferro. Estava caído, mas agarrou Clyde pelo tornozelo, então Clyde disse para que eu tirasse o rei dali, que ia impedi-lo. Foi exatamente o que eu fiz. Do corredor, ouvi uma pancada muito alta e depois um grito. Eu não sei o que houve. Só sei que fiquei esperando por ele no salão, e ele nunca desceu.

Craig fechou os olhos ao final. Ele e Clyde Donovan eram melhores amigos desde que podiam se lembrar. Nenhum dos dois tinha irmãos homens, e de alguma forma, isso tornou o laço entre eles o mais inquebrável que Craig havia formado em toda a sua vida. Clyde era chorão, assustado, não era muito rápido e não tinha muita força física. Era um pouco rechonchudo, mas tinha o tipo de rosto clássico, e todas as garotas sempre suspiravam por ele. Porque era simpático, era carismático, era sedutor. Era exatamente o oposto de tudo que Craig era. E isso fazia com que ele se sentisse ao meio. Incompleto. Cobriu a testa com a mão e estremeceu. A mão de Kevin começou a afagar suas costas.

-Ele sempre foi o mais lerdo. – Cartman disse, com um tom de conclusão.

-Era um bom homem. – Trent disse, terminando de comer seu coelho.

Naquela noite, depois que todos adormecessem, Craig choraria silenciosamente em seu travesseiro.

* * *

Kyle abriu os olhos. Não acordou lentamente, retomando a consciência aos poucos, com a visão embaçada; não, acordou abruptamente, assustado, erguendo o pescoço para olhar em volta. As amarras estavam apertadas, trancando a circulação do sangue nos pulsos, deixando as mãos dele quase roxas. Mas ele não podia ver, pois estava escuro demais. Quase soltou um grito quando seus olhos encontraram os de Kenny, que estava sentado com as costas apoiadas na parede da carroça coberta em que eles haviam sido jogados. Kyle estava inconsciente quase o dia inteiro, o que o loiro atribuiu a alguma bruxaria de Cartman para que ele não incomodasse. Kenny também estava amarrado, até os pés, embora não tenha oferecido resistência alguma.

-Sh, calma. Não faça barulho.

Kyle entreabriu os lábios enquanto os olhos se acostumavam à escuridão. Olhou para cima, depois para baixo, para a madeira suja e empoeirada da carroça. Por uma pequena janela, entrava o brilho alaranjado da fogueira próxima, mas era fraco demais para que ele pudesse enxergar Kenny completamente. Remexeu o corpo em desconforto, gemendo baixo pela dor de cabeça, apertando os olhos.

-Onde... O quê...?

Alguns segundos de silêncio se prolongaram, porque Kyle não sabia ao certo o que perguntar e Kenny não sabia o que responder. Passara as últimas horas acordado, observando o rei inconsciente enquanto a luz do dia ainda o permitia ver aquele rosto pálido, tão em paz, e temia profundamente o momento em que Kyle acordasse. Kenny sabia que era sua culpa, não importava o ângulo pelo qual ele olhasse a situação, mas não perdia tempo com tais martírios: gastou seu dia estruturando mentalmente uma maneira de tirar Kyle dali. Por enquanto, não ia muito bem.

-Cartman está nos levando para Kupa Keep. – Kenny explicou calmamente em sussurros, apoiando-se no cotovelo com dificuldade para tentar se aproximar do ruivo, que se afastou instintivamente. Isso fez com que o loiro hesitasse por um momento, mas decidiu ignorar a relutância. – Ele... Eu não sei ao certo, mas minha irmã está lá.

-Que bom pra você. Tenho certeza de que está ansioso para voltar pra casa.

-Ei. – Kenny protestou, erguendo os pulsos amarrados. – Eu estou tão fodido quanto você aqui.

A resposta do rei foi simples. Ele rolou para o outro lado da minúscula carroça, longe o suficiente para fazer seu argumento ao dar as costas ao loiro, mantendo-se em silêncio. Podia ver a própria respiração em frente ao rosto, devido ao frio rigoroso da floresta, e ele usava as mesmas roupas finas que vestia para dormir, os pés descalços e gelados. Kenny deixou que o silêncio se instalasse, mantendo os olhos fixos no corpo trêmulo e encolhido de Kyle. Quis se aproximar, mas algo na ponta do estômago fez com que ele se mantivesse imóvel, soltando apenas um murmúrio.

-Kyle...

-Não. – a resposta veio de imediato, fria e impaciente. Magoada.

-Por favor. – Kenny sussurrou, enfim se arrastando com dificuldade para mais perto dele, respeitando uma distância necessária. – Você não está sozinho.

-Vá se foder.

Com isso, Kenny rolou os lábios para dentro da boca, pensativo, mas acabou por desistir. Deixou escapar um suspiro profundo, carregando de remorso, resmungando apenas um palavrão baixo enquanto forçava os braços para tentar bater com o punho contra o chão, mas o limite da corda o atrapalhava. Kenny deitou desajeitado, batendo a cabeça na madeira sem muita força antes de tentar relaxar os músculos, virado de barriga para cima.

E não disseram mais nada durante aquela noite.

O laranja da fogueira que os iluminava ardeu a noite inteira. Kenny não tinha mais noção das horas, visto que estava preso em uma cela muito antes de se encontrar naquela carroça, mas sua habilidade de medir o tempo mentalmente estava cada vez mais acurada. Talvez tivessem se passado cerca de duas horas até que ele começasse a ouvir os dentes de Kyle batendo de frio, pois a temperatura caía conforme a madrugada adentrava. Kenny estava em um estado semi-consciente, que era o mais próximo que ele chegava de dormir nos últimos dias, pois sempre havia alguma tormenta em seu cérebro. Virou a cabeça preguiçosamente para encarar as costas do rei, observando aquela figura pequena e encolhida em si própria, sacudindo involuntariamente para se aquecer, gemendo mais fino do que um rato seria capaz. Kenny passou a língua pelos dentes enquanto o observava. Quis chamar pelo seu nome. Quis dizer que ficaria tudo bem, fazer promessas. Quis cuidar dele. Mas as palavras não tinham poder nenhum.

Então, Kenny arrastou seu corpo silenciosamente para mais perto do dele. Não podia envolvê-lo com os braços, que estavam firmemente amarrados, mas colou o peito às costas de Kyle e afundou o rosto naqueles cabelos ruivos e selvagens, inalando o cheiro de forma sutil, encaixando as pernas por trás das dele. Não podia abraçá-lo. Não podia enroscá-lo em suas pernas. Não podia virá-lo de frente. Mas podia estar ali, simplesmente, e assim o fez. Transferindo o calor do seu corpo para o dele, sentindo o coração de Kyle martelando dentro do peito. Os batimentos foram desacelerando, a respiração do rei foi ficando mais tranqüila. Logo, os dentes pararam de bater.



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