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História Rex Meus - Sol da meia noite


Escrita por: caulaty

Capítulo 19 - Sol da meia noite


O reino de Kupa Keep era coberto por uma nuvem negra que armava uma tempestade. Os livros contavam as histórias das três grandes tempestades, pois o reino sulista era de uma terra ensolarada de longos verões, com o frio ameno e agradável, onde as flores e os frutos brotavam o ano inteiro, as árvores jamais perdiam suas folhas verdes, a colheita jamais era ruim. As chuvas vinham no inverno, enfeiavam o tempo, mas refrescavam os ares e eram bem-vindas em sua raridade. As três grandes tempestades marcaram épocas negras do reino de Kupa Keep: a primeira dos registros veio muitos séculos atrás, quando o único filho do rei, e único herdeiro do trono, um garotinho de apenas três anos, foi assassinado pelo próprio tio em sua cama no meio da madrugada. Segundo os livros, a rainha enlouqueceu com a perda do menino, e se atirou da Torre do Leão, a mais alta de Kupa Keep naquela época. A primeira grande tempestade durou vinte dias, arrebatando casas de camponeses, destruindo vilas, arrastando pessoas, animais, desbarrancando os morros que cercavam o vale, derrubando árvores. E ninguém estava preparado. Eventualmente, o sol retornou a brilhar, trazendo consigo a esperança de uma longa e pacífica primavera. O rei se casou novamente, decapitou o próprio irmão que matou seu filho, fez um bebê em sua nova esposa e o reinado da linhagem Garrison prosperou. A segunda grande tempestade ocorreu mais de cem anos depois, quando o reino de Kupa Keep perdeu a guerra do Prado, uma disputa pelas terras de Prado Perrè que durou mais de uma década. O rei foi morto no campo de batalha, e segundo a lenda, os nativos das terras serviram sua cabeça no banquete de vitória, devorando seu corpo até restarem somente os ossos para serem enterrados. A segunda grande tempestade durou quinze dias, inundando as ruas de Kupa Keep com toda a força incontrolável da natureza, causando talvez mais devastação do que a primeira, pois a duração foi menor, mas a intensidade foi maior. A economia estava em crise, o exército estava desamparado, o novo rei era jovem demais para estruturar o reino sozinho. Seu grande conselheiro, melhor amigo do falecido rei, guiou o garoto até que se tornasse o que viria a ser conhecido como o Rei Justo, restaurando a paz em Kupa Keep durante seus oitenta anos de reinado. A terceira grande tempestade ainda demoraria séculos para acontecer, e segundo os livros, foi a pior. O bisavô do Rei do Chapéu, Herbert II, era um homem de pensamento extremamente militar, e decretou que todos os homens doentes, fracos, debilitados, independente da idade, seriam sacrificados para deixarem de servir como um “peso morto” para a sociedade. Houve um massacre. Bebês eram arrancados do colo de suas mães para serem criados pelos militantes, e aqueles que não servissem ou não tivessem aptidão seriam atirados do grande penhasco, o Penhasco da Tartaruga, o mais alto de toda Zaron. Foi a terceira grande tempestade que lavou o sangue das ruas, que destruiu boa parte do exército do rei e que o matou. Herbert II nunca aprendera a nadar.

Quando as nuvens negras começaram a se juntar sobre o castelo, cobrindo as vilas em volta, não permitindo a passagem da luz do sol, muito se especulou sobre tempos negros que se aproximavam. Mas Eric Cartman somente era supersticioso para aquilo que lhe convinha, e acreditava que as nuvens que fechavam o céu azul seriam um bom sinal, pois aquele era um dia glorioso, um dia de vitória. E nada lhe tiraria o sorriso da cara. Porque aquele era o dia em que todas as cartas seriam postas na mesa, todas as satisfações seriam tiradas, e ele tinha controle absoluto da situação. Aquele era o dia em que Kenneth McCormick pagaria pela traição. E Kyle Broflovski também. Cartman tinha certeza inabalável de que Deus estaria a seu favor. Era apenas justo, afinal.

* * *

Kenny cobria um dos olhos com a mão, embora mantivesse as pálpebras bem abertas e as pupilas atentas para qualquer movimento. Já se convencera, àquela altura, de que passaria o resto de seus dias apodrecendo em uma cela, se tivesse alguma sorte. Não via o mundo lá fora há semanas, embora tivesse pegado um relance pela minúscula janela da carroça quando chegaram em Kupa Keep. Reconheceu os morros verdes imediatamente, afinal de contas, crescera cercado por eles. Estava em casa.

Mas o lugar em que Kenny dormiria aquela noite era muito diferente da sua casa em Kupa Keep. Não morava no castelo com sua irmã; optara por um refúgio no condado, em uma casa de madeira que poderia não ser tão maior assim do que a cela em que ele habitava agora. Até aquele momento, não havia parado para sentir falta de sua casa. Mas a saudade estava ali, em algum lugar, e era com nostalgia que Kenny pensava em sua pequena horta no quintal dos fundos, no gramado verde, no rangido da janela que batia com o vento toda noite e ele sempre se esquecia de fechar. Sentia falta do cobertor de lã que sua mãe havia tricotado, que mesmo depois de tantos anos, ainda tinha o cheiro dela. Acima de todas as coisas, sentia falta de Marjorine. Cartman, naturalmente, não permitiu nenhum contato entre eles até então. Mas o loiro não se deixava abalar pelas expectativas; conhecia sua irmã o suficiente para saber que não estava sozinho.

E em termos práticos, realmente não estava. Pois podia ouvir o choro abafado do outro lado da parede de tijolos. Era o tipo de choro contido que insiste em escorrer, mesmo contra a vontade de quem chora. Não podia ver Kyle, mas em sua mente, a imagem era perfeita e nítida: o ruivo devia estar encolhido, abraçado aos joelhos, com a cabeça baixa, tentando por tudo que havia de mais sagrado ser forte. Kenny percorreu os olhos em torno da cela, mordendo o lábio inferior, sentindo o peito latejar pela sua própria incapacidade no momento. A cela de Kupa Keep era bastante diferente da cela dos elfos, a começar pelo fato de que fedia a estrume. Não havia barras de ferro, era um cubículo cercado por quatro paredes com apenas uma porta e uma janela pequena e alta que deixava entrar alguma luz durante o dia. Havia feno no chão, por algum motivo. Um banco de madeira, uma coluna de pedra para sustentar o teto exageradamente alto, um baldinho para as necessidades, e nada mais. Odiava imaginar Kyle em tal ambiente.

–Kyle. – Chamou gentilmente.

O choro continuou em soluços, sem fôlego, e Kenny teve certeza por alguns instantes de que seria ignorado. Não podia culpá-lo. Mas para a sua surpresa, após uma fungada e um suspiro profundo, a voz falha surgiu do outro lado da parede, muito baixa e fraca:

–O quê?

–Não chore. – O loiro respondeu prontamente, ajoelhando-se no chão para virar de frente para a parede como se isso possibilitasse um contato entre os dois. Kenny escorregou a mão pela parede, sentindo os tijolos ásperos e sujos contra sua pele. – Vai ficar tudo bem. Eu prometo. Eu...

Hesitou por um instante, passando a língua sobre o lábio inferior enquanto voltava a se sentar no chão lentamente, apoiando a mão na madeira empoeirada. Seus olhos azuis estavam quase arregalados enquanto esperavam por uma resposta, qualquer resposta, mas o único som era o de choro ofegante. Kenny lançou um olhar de relance à porta, como se esperasse alguma manifestação dos guardas que logo mandariam que calassem a boca, se ele ainda se lembrava de como funcionavam as coisas em Kupa Keep. Aquilo não o intimidou. Prosseguiu:

–Eu vou morrer vinte vezes antes de deixar que façam qualquer coisa com você, entendeu?

–Céus. – Kyle respondeu com o que parecia ser um riso fraco, limpando seu rosto úmido, retomando aquele tom prepotente que era tão familiar ao loiro. – Você acha que é por isso que eu estou chorando? Eu não tenho medo do Cartman.

O loiro chegou a gaguejar.

–Então...?

Kyle demorou a responder novamente, dando a ligeira impressão de que ainda não estava preparado para qualquer tipo de conversa. Mas acabou cedendo mais cedo que o loiro esperava, com a voz ainda carregada de dor, mais fina e melancólica do que Kenny jamais ouvira dele antes.

–Eu não queria servir meu próprio vinho. – Foi tudo o que disse.

Talvez aquilo tivesse a intenção de esclarecer algo, mas só fez com que Kenny franzisse a testa em estranheza, entortando os lábios antes de fazer menção de dar qualquer resposta. Acreditou que não tivesse ouvido bem. Era difícil conversar através dos tijolos.

–Como?

Kyle fechou os olhos e balançou a cabeça muito sutilmente, num movimento quase imperceptível, e as lágrimas escorriam pelas bochechas avermelhadas dele rapidamente. Os lábios estremeciam em descontrole, e as mãos estavam trêmulas, tamanha era a tortura de estar a sós com a própria consciência em um cômodo fechado e escuro.

–Pip está morto porque eu não podia servir meu próprio vinho. – Explicou.

Os trovões ecoaram lá fora, mandando um clarão de luz que invadiu a cela pela minúscula janela, logo desaparecendo no ar, e tudo era escuridão novamente. O som demorou um pouco a chegar, tão estrondoso que fez parecer que as paredes em torno de Kenny estremeceram, interrompendo sua tentativa de responder qualquer coisa. O que, analisando friamente, foi bom. Porque Kenny estava sentado no escuro sem qualquer ideia do que dizer, de como dizer, do que pensar. Seus lábios frios estavam levemente entreabertos, os olhos perderam todo e qualquer brilho.

–Pip está morto?

O rei elfo assentiu com a cabeça antes de se dar conta de que o outro não podia vê-lo. Fungou mais uma vez, apertando os olhos para conter mais lágrimas, pois já estava cansado delas.

–Está.

Até mesmo o barulho dos trovões teria sido bem vindo para acabar com o silêncio mortal que se estabeleceu em seguida, em que não era possível ouvir sequer um rato xereta passeando. E havia muitos ratos ali, Kenny não tinha dúvida disso. Imediatamente, a imagem daquele garoto loiro segurando o próprio chapéu lhe veio em mente, com as orelhas pontudas aparecendo em seu cabelo ridiculamente liso, cortado para parecer uma tigela, o sorriso torto e tímido de quem nunca viu maldade nesse mundo. Kenny engoliu seco, lentamente erguendo o queixo para olhar para cima, como se sua visão pudesse atravessar o teto e as nuvens e o cosmos, chegando até o paraíso – em que ele nem mesmo acreditava – para ver Pip acenando lá de cima, com aquela gravatinha borboleta absurdamente grande e horrorosa.

–Merda.

Um gosto amargo surgiu em sua boca. Ele tinha certeza de que iria vomitar. Todo o sangue, as tripas, o cheiro de carne queimada, os olhos semi-vivos o encarando, a face de Bradley Biggle no chão, nada disso saía de sua mente desde que deixaram o reino do Arvoredo. Nada daquilo teria acontecido se ele não estivesse lá, se ele tivesse feito o que lhe fora pedido, certo ou errado. E a consciência disso era como um soco direto no estômago.
Kenny socou o chão subitamente, chutou o banco de madeira e gritou mais alto:

–Merda!

Esperou que algum dos guardas colocasse a cabeça pela abertura da porta e mandasse-o calar a boca, mas ninguém apareceu, e essa era de longe a menor de suas preocupações. Enquanto esfregava a cara, deslizando as pontas dos dedos pelo cabelo seboso, lembrou-se de Kyle do outro lado da parede, e do silêncio que lhe era oferecido, como se o elfo simplesmente não tivesse o que acrescentar àquilo. Respirou profundamente, ainda esfregando a mão sobre a boca durante algum tempo, sentindo a barba coçando sua palma.

–Como? – Perguntou amargamente. – O que fizeram com ele?

Sabia que aquela não era a coisa certa a se dizer, mas isso não importava. Kyle podia esperar outra coisa, talvez até buscasse alguma espécie de conforto naquela cela escura e imunda, de seu jeito orgulhoso, mas Kenny não tinha condição de dar. Mal podia pensar direito. A mão continuou cobrindo a boca depois de soltar as palavras, que eram como um cutucão em uma ferida aberta para Kyle.

Demorou a responder, e Kenny respeitou isso imensamente.

–Não era para ele estar no meu quarto quando chegaram. Ele deveria estar na cama dele, dormindo, longe de tudo. Seguro. Mas... Eu não conseguia dormir, e não queria ficar sozinho, então eu... Eu pedi que ele ficasse no meu quarto, servindo o vinho. – Uma pausa. E depois, mais baixo: - Eu só queria companhia. Poucas pessoas sabem fazer companhia como ele. Céus, e Christophe, eu nem sei se ele... – O rei levou a mão aos olhos e abaixou a cabeça, estremecendo para manter a firmeza na voz. A cabeça fervia. – Pip está morto porque eu não podia servir a porra do meu próprio vinho.

Kenny gastou um longo tempo encarando o chão de pedra, o limo que crescia entre as frestas, pois agora seus olhos já estavam mais acostumados à escuridão.

–Você não pode pensar desse jeito. – Disse em uma voz rouca, limpando a garganta.

–É a verdade.

O loiro chegou a soltar uma risadinha.

–Como nós somos egoístas, puta merda. Kyle... Nós não controlamos nada. Ele não morreu por sua causa. As coisas acontecem porque elas acontecem, não existe forma de mudar isso.

Prontamente se arrependeu do próprio tom ríspido ao ser deixado novamente no silêncio, porque o rei não tinha qualquer intenção de debater filosofias sobre o funcionamento das cordas que sustentam o universo. Kenny passou a língua pelo lábio inferior, sentindo um gosto salgado na ponta, depois respirou fundo. Quase um minuto se passou antes que decidisse prosseguir, agora em uma voz mais calma:

–A perda já é tão dolorosa sem que fiquemos pensando no que poderíamos ter feito para evitar. Tenho certeza de que você sabe disso, sendo um órfão. Eu costumava pensar todos os dias, religiosamente, como nunca deveria ter levado minha irmã para as trincheiras. Todo dia. Isso quase te deixa louco depois de um tempo, é peso demais para qualquer um suportar. Acredite em mim, é melhor quando você descobre que não é importante o suficiente para ser a causa de nada. Se não foi você que meteu a flecha, ou a bala, ou a espada que o matou, então a culpa não é sua.

Kyle permaneceu em silêncio.

O punho de Kenny se fechou. Ele pressionou os lábios, batendo com o punho no joelho repetidamente.

Ao abrir a boca para falar, foi como se o ar voltasse a invadir seus pulmões:

–Mas eu falo muito sério quando digo que não vou deixar nada acontecer com você. Isso eu posso controlar. Você diz que não tem medo de Cartman, mas... Talvez tivesse, se o conhecesse.

–Ah, eu o conheço.

Kenny estreitou os olhos para a resposta. Considerou perguntar a respeito, mas as palavras foram tão breves e soaram tão óbvias que o loiro optou por relaxar os músculos, deitar sobre a palha no chão e fechar os olhos.

–Deveríamos dormir. Foi um dia longo.

Lá fora, a chuva começava a cair.


* * *

Kenny foi acordado por um chute tão forte nas costas que bateu com a cabeça na parede ao ser arremessado contra ela, logo sentindo todos os pontos em seus músculos que latejavam de dor pelo desconforto e por socos e pontapés que ainda não haviam curado propriamente. Não conhecia o guarda que o puxou pelo braço bruscamente para que se colocasse de pé, mas já começava a sentir falta dos guardas do reino élfico, que não vestiam aquelas armaduras pesadas, não tinham a altura de um armário e não cuspiam em sua cara. O catarro amarelo do homem pousou bem próximo ao seu olho, e Kenny limpou com as costas da mão, oferecendo um sorriso amarelo e malicioso em resposta, pensando como era bom estar em casa.

–Bom dia, querido. – Disse ao guarda, que imediatamente mandou que calasse a boca.

Enquanto era arrastado ao seu destino, com os olhos semi-cerrados pelo incômodo da luz do dia, arrastando os pés como um zumbi, Kenny ouviu passos logo atrás. Virou o rosto para encontrar Kyle com as mãos algemadas em frente ao corpo, por correntes pesadas que arrastavam ao chão, com o cabelo ruivo mais laranja do que nunca, caindo por cima dos olhos que pareciam os de um felino furioso, brilhando em um sentimento muito mais controlado do que a raiva, porém muito mais intenso: ele calculava mentalmente como mataria cada um dos humanos que pusessem as mãos dele durante sua estadia em Kupa Keep, foi o que Kenny compreendeu. Vestia a mesma roupa fina e branca da noite anterior, agora muito suja, e não usava calças; suas pernas estavam expostas, não usava nada nos pés, a pele alva coberta por manchas de terra. Trocaram um longo contato visual antes de Kenny voltar a olhar para frente.
O corredor era longo, com janelas altas que deixavam entrar fachos estreitos de luz que ardiam os olhos de Kenny. Conhecia aquele caminho dolorosamente bem, pois apesar de não viver propriamente no castelo, era onde passava boa parte de seus dias quando era um homem livre.

Logo, ouviu a voz de Kyle:

–Pare com isso, seu porco!

O guarda que o arrastava era um homem alto de cabelos longos, que brincavam entre um ruivo e um castanho, dependendo da luz. O homem parou de andar de repente em meio ao corredor, enrugando o tapete sob seus pés, fazendo com que Kenny freasse também, segurando-o em um aperto firme no braço. O loiro também virou o rosto para encontrar o guarda que segurava Kyle pela cintura, com a mão grossa perigosamente envolvida na curva do quadril do ruivo, apertando a carne, com o rosto próximo ao ouvido dele. Era um homem ainda mais alto do que o de cabelos longos, com uma cicatriz medonha atravessando o olho. Kenny o reconhecia de vista, apenas.

–Seu filho da puta. – Kenny disse, erguendo os punhos algemados, considerando mentalmente o dano que o ferro das algemas poderia fazer ao rosto do homem. Mas foi bruscamente segurado pelo guarda, que apontou a ponta da lança contra o pescoço dele.

–Paradinho, loira. – Ele alertou com um sorriso maligno, e logo em seguida voltou sua atenção ao outro guarda. Kyle dava uma cotovelada de mal jeito no estômago do homem que o segurou imediatamente pelos cabelos, e ao mesmo tempo a lança foi pressionada mais fundo na garganta de Kenny, enquanto o guarda de cabelos ruivos dizia calmamente. – Ei, Rynn, qual é o seu problema? Quer que o rei corte a sua mão fora, quer? Ficar maneta que nem o irmãozinho desse daqui? Cuide com a merda que você faz.

Aquilo soou estranho, desconfortável e subiu o sangue de Kenny por mais motivos do que ele seria capaz de listar. Mas seu problema estava apenas começando, e ele não queria se precipitar e estragar as coisas agora. Apenas fez um contato visual longo com o homem, retribuindo ao sorriso doente quando ele afastou a lança e obedeceu ao continuar a andar ao seu destino, que, pelo que imaginava, seria a câmara particular do rei.

Estava certo.

A câmara era grande o suficiente para acomodar as estátuas de ouro gigantescas dos grandes guerreiros de Kupa Keep, incluindo uma do próprio Eric Cartman bem no centro, parecendo muito mais magro e majestoso do que era realmente – como as estátuas devem ser. Os dois prisioneiros foram colocados em cadeiras de madeira que destoavam completamente do resto da decoração rica do ambiente, que exagerava no ouro e nos diamantes, com uma fonte imensa no centro que produzia um barulho de água corrente estranhamente reconfortante. Kyle não fazia contato visual com Kenny, talvez por sensatez, e não por mágoa. A noite anterior pareceu estabelecer o laço entre eles, pelo menos um pouco da ligação remanescente do que costumavam ter. Era confortável saber que o outro estava ali, mesmo que estivessem sentados em lados opostos da sala.

O rei já os aguardava, trajando um manto de pele de urso, com olheiras profundas de quem passara a noite em claro. Assim que colocou os olhos em Kenny, que entrou primeiro, ofereceu um cumprimento sarcástico mencionando a falta que ele fez ao reino. Mas assim que o rei elfo pisou no cômodo, o sorriso malicioso nos lábios de Cartman cresceu em largura, e imediatamente Kenny percebeu que, aos olhos do rei humano, todo o resto havia desaparecido. Kyle era a única coisa que ele enxergava, com as pupilas dilatadas como as de um animal selvagem que avista sua presa. Aquilo não chegou a preocupá-lo.

Agora, estavam sentados em pontos diferentes da câmara, com os pulsos algemados descansando sobre as coxas. Podiam trocar olhares, mas raramente o faziam, especialmente pelo corpo robusto de Eric que se encontrava entre os dois. O rei pediu para que todos os guardas deixassem o cômodo, com exceção do homem de cabelos longos que ficaria na porta se certificando de que ninguém mais entraria. Não queria interrupções para a confabulação que estavam prestes a ter. Havia um rubor na face de Eric, não de vergonha, mas de alegria e vitalidade. Apesar de não parecer descansado, estava regozijado com a situação. O brilho jamais deixava seus olhos, que eram cor de caramelo, como ambos se lembravam. A cor parecia mais viva do que jamais viram antes, qualquer um dos dois.

–Então. – Cartman disse empolgadamente, batendo uma palma. Estava virado de lado para os dois homens, de forma que pudesse enxergá-los ao mesmo tempo. – Nós três temos assuntos importantes a resolver, não temos? Não entendo porque estão com essas caras, nós somos todos camaradas aqui. Só vamos ter uma conversinha.

Kenny soltou um riso baixo, sacudindo a cabeça, e imediatamente recebeu um olhar de desaprovação de Kyle, mas o rei humano virou o rosto em sua direção com um sorriso iluminando a face, um sorriso obscuro, carregado de malícia, entretido demais pelo próprio sadismo para se incomodar.

–Viu? Ele entende. – Disse a Kyle com um gesto apontando para Kenny, com a palma virada para cima. – Vocês querem saber o que vai acontecer aqui, hoje? Devem estar curiosos para saber, não é?

–Ande logo com isso, Eric. – Kyle disse em um tom exausto, com os olhos fechado.

Cartman manteve os olhos fixos nele, mas caminhava em direção ao homem loiro, que observava os dois com o queixo erguido e uma sobrancelha levemente erguida. Quando Cartman se pôs ao seu lado, pousando uma mão em seu ombro (à qual Kenny não se opôs, ou sequer reagiu), enfim ele continuou:

–Ah, Kyle. Se está tão ansioso assim, quem sabe pode começar.

O ruivo franziu a testa.

–Com o que exatamente você quer que eu comece?

Durante alguns instantes, não houve resposta, pois o rei parecia distraído simplesmente observando o rosto dele, com os lábios entreabertos. Logo em seguida, umedeceu-os, como se pensasse algo deliciosamente profano. A ideia trouxe um mal estar à boca do estômago de Kenny, que desviou o olhar do rosto do rei, voltando a encarar o elfo.

–Kenny, meu amigo. – O aperto no ombro do loiro ficou mais forte. – Eu não te culpo, sabe? Você foi tapeado. Eu entendo, é isso que ele faz. Aconteceu exatamente a mesma coisa comigo. Não é culpa sua que essa víbora ruiva te pegou. Para a sua sorte, eu estou aqui como seu amigo de infância para te iluminar.

–De que merda você tá falando, Cartman? – O loiro questionou, mais irritado do que confuso.

Cartman estralou os dedos vagarosamente, e o sorriso maldoso continuava brincando em seus lábios, deixando seu rosto feio sob a luz doentia das tochas. Lançou um olhar ao rei elfo, como se os dois compartilhassem um segredo que estava prestes a ser revelado; embora Kenny não acreditasse que fosse o caso.

–Você não parece muito disposto a começar, Kyle. Então eu terei o prazer de iniciar os trabalhos. – Disse o rei, soltando o ombro de Kenny e caminhando em direção ao outro homem, que o encarava com olhos estreitos, carregados de ódio. Cartman parecia satisfeito com aquele olhar, colocando as duas mãos para trás enquanto se aproximava.


* * *

Eis o que houve: eu era apenas um garoto. Tinha o quê? Quinze, dezesseis anos? Acredito que eu tivesse de dezesseis para dezessete. Sei que pode parecer cruel à filosofia viadinha dos elfos, mas aqui, nós começamos a lutar muito jovens. Um homem aprende o valor de sua espada assim que tem força o suficiente para erguer uma, e isso eu tenho desde os oito anos de idade. Era um rapazinho robusto, sempre fui. Todo garoto, até certa idade, é uma garotinha. Como todo adolescente, eu era babaca. Acreditava cegamente nas causas do meu rei, a ditadura de que o povo humano deve reinar soberano a todos os outros, e era por isso que eu lutava: por um mundo limpo, justo, em que a autoridade e superioridade humana fossem respeitadas. Infelizmente, em alguns momentos, suas próprias crenças podem voltar para te morder o rabo. O rei do chapéu decretou na época o que era chamado de “processo de limpeza”, querendo se livrar de toda e qualquer imoralidade em nossas terras. Negros foram queimados vivos, bichas foram enforcadas, e... As mulheres que trabalhavam no cabaré foram apedrejadas em praça pública. Minha mãe era uma dessas mulheres. Eu assisti. Agora, minha mãe podia ser uma mulher imunda, mas nunca desejei aquilo para ela. Se acontecesse hoje, eu teria arrancado meu distintivo e enfiado no olho dos executores, mas como mencionei mais cedo, eu era um babaca. Continuei a lutar pelo rei porque eu era um soldado de juramento e eu havia almejado o processo de limpeza, eu sabia que seria o melhor para a nossa sociedade.

Até que ocorreu a Batalha do Fundador, um confronto que entraria para os livros de nossa história, contando a derrota desgraçada de Kupa Keep. Os elfos brancos causaram um banho de sangue belíssimo; vi companheiros sendo decapitados bem na minha frente, humanos caindo como moscas, sendo cortados ao meio como se fossem feitos de papel. Ah, ainda posso sentir o cheiro da carne e do sangue. Havia pele por todo lado, globos oculares, tripas e massa cinzenta... Era lindo. Simplesmente lindo. Os elfos realmente mostraram quem são naquele dia. Ao fim da batalha, Kupa Keep reconheceu o massacre e se retirou sem verificar se homens vivos seriam deixados para trás. Eu fui um desses homens, talvez o único, vivo em meio a uma pilha de cadáveres, com uma fratura exposta na perna, sem poder me mover.

Detalhes grotescos à parte, eu perdi a consciência depois de sangrar por mais de três horas, certo de que aquilo seria o fim. Mas eu não queria morrer. E eu exigi ao filho da puta que é Deus: você me faz ser rejeitado a vida inteira, me dá uma mãe puta, me deixa sem pai, tira a minha mãe puta assim e agora eu vou morrer desse jeito escroto? Segundo os termos dos elfos? Não. Eu me recuso. Eu tinha certeza absoluta de que eu sairia daquele campo de morte de um jeito ou de outro, mas com vida.

É claro, a essa altura eu já estava delirando. Ou achei que estivesse, porque em meio ao cheiro podre, às moscas, aos olhos arregalados e sem vida, surge uma criatura que literalmente brilhava. Eu pensei que estivesse morto, porque foi a coisa mais próxima de um anjo que eu já vi.

* * *

–Ah, Cartman, pelo amor de deus. Para de mentir.

–Não é mentira, seu elfo de merda! Você brilhava.

–Elfos não brilham, seu ignorante, pare de inventar coisas.

–Você brilha sim, sua fada demoníaca, é com isso que você atrai os humanos desavisados. O Kenny deve ter visto, não é, Kinny?

O loiro preferiu não se manifestar.

Kyle respirou fundo.

–Você quer chegar a algum lugar com isso?

–É claro que sim, mas pare de me interromper.

* * *

Longe de mim engrandecer uma criatura perversa dessas, mas você há de entender, para um moleque que estava estirado ao chão em meio a tantos corpos, com insetos pousando na sua cara, esperando a sua vida terminar para poderem plantar larvar nos seus olhos, aquilo foi um sinal de esperança. Eu não fazia ideia de que se tratava do príncipe dos elfos. É claro, você conhece o nome da família real inimiga, mas eu não perderia meu tempo memorizando rostos de crianças idiotas que logo seriam assassinadas. Ou pelo menos esse era o plano do rei do chapéu. O que eu não sabia, e acho que ninguém sabia, era que o filho mais velho do rei elfo acompanhava o pai nas batalhas e trabalhava com as enfermeiras cuidando dos soldados elfos que eram feridos. Algo sobre aprender a natureza da guerra, o valor do trabalho, ou era tudo pureza do coração do principie, qualquer merda do gênero. Ele estava buscando por elfos vivos. Não foi exatamente isso que ele encontrou. Lá estava eu, com o osso da perna fraturado cortando pela minha carne, tossindo sangue, trêmulo pelo cheiro de morte ao meu redor, cercado por homens que até poucas horas antes lutavam ao meu lado. Eu troquei olhares com essa... Criatura, que eu não sabia dizer muito bem o que era, porque esse cabelo afro ruivo gigantesco cobria as orelhas pontudas. Cheguei a achar que era uma criança. Eu não dava a mínima, só queria que me tirasse dali.

Não que eu fosse pedir isso a ninguém, não conseguia nem falar. Não precisei pedir. Eu vi a expressão no rosto dele ao bater os olhos em mim, tão hesitante, tão assustado, e quando me dei conta de que eu ainda estava vivo e ainda podia sentir dor, pensei que ele fosse me deixar lá. Porra, como doía. O cheiro de fuligem era quase insuportável, eu sentia meu estômago revirado do avesso, minha garganta tão inchada que eu achei que fosse sufocar. Não podia enxergar direito também. A criatura era só um borrão de repente, que se aproximava cada vez mais de mim. Não consigo me lembrar muito bem do que aconteceu depois. Acordei algumas vezes e lembro de estar em um carrinho de mão, com o torcicolo mais fodido do mundo, mas a consciência não durava quase nada. Lembro de pássaros sobrevoando, provavelmente urubus, porque naquela hora eu quis oferecer o dedo do meio para que os carniceiros tomassem no cu. Eu não viraria refeição naquele dia.

Só fui acordar de verdade quando já era de noite. Eu estava dentro de uma caverna, acredite se quiser. A Batalha do Fundador ocorreu em um rochedo, eu ainda podia ouvir o som das ondas batendo nas pedras, o vento que vinha do sul soprava tão forte que assobiava. E agora, o que eu podia ver claramente que era um elfo – pois o cabelo estava atrás das orelhas – estava agachado a poucos metros de mim, torcendo um pano úmido em um balde de água. Fiquei surpreso, para dizer o mínimo. A caverna era iluminada por duas ou três velas, o suficiente para que eu visse muito bem aquele rosto que virou para me encarar, e... Puta merda, como ele era novinho. Minha cabeça latejava, meu peito ardia, minha perna doía tanto que eu queria pedir para amputar, mas tudo o que fiz foi perguntar o que caralhos ele queria. Eu mal tinha voz, isso me fez um mal desgraçado, porque minha fala saía pastosa e rouca. E o filho da puta sorriu para mim, acredita nisso?

Sorriu e disse que não queria nada. Depois, com toda a autoridade do mundo (e eu devia ter adivinhado que ele era uma porra de um príncipe só por aquela arrogância intrínseca às palavras dele) que precisava voltar ao acampamento antes que sentissem falta dele, que era para eu tentar dormir e assim que ele pudesse voltaria para dar uma olhada nos meus ferimentos. Simples assim. Que era para eu me hidratar e sei lá mais que merda, não prestei atenção. Pensei que ele fosse um doente. Não fazia sentido, um elfo salvar a vida de um humano, era antinatural.

Só então percebi que ele havia trazido um pequeno travesseiro de pena de ganso para a minha cabeça e outro para a minha perna. Sozinho, ele colocou o meu osso no lugar enquanto eu estava apagado pela dor. Impressionante, não? Ele queria que eu ficasse impressionado, essa cobra meticulosa filha da puta.

Voltou no dia seguinte com comida, como prometido. Tivemos nossa primeira chance de conversar, quando eu já não estava mais grogue, embora tenha sido uma conversa muito breve; perguntei quando é que ele iria me matar, ele disse para eu calar a boca e comer meu ensopado. Não estava vestido como um príncipe, aliás, muito pelo contrário. Vestia roupas mais pobres do que as suas, Kenny, que não tem onde cair morto.

–Quem é você afinal?

–Kyle.

–Kyle. Eu tive uma cadela com esse nome.

–Que interessante.

Eu sorri pelo tom sarcástico dele, pela forma como ergueu as sobrancelhas, sem olhar para mim. Eu ainda estava muito, muito quebrado. Mal podia me sentar. Ele sempre mantinha uma distância segura, exceto quando tratava das feridas abertas, passando um negócio fedido que ardia pra caralho. Eu o xingava um pouco, mas nunca conversávamos realmente. Mas eu tinha muita curiosidade, não minto, em conhecer aquele bicho e saber porque ele estava fazendo o que estava fazendo, aparecendo sorrateiramente em horários estranhos para medicar um inimigo com ervas e o caralho a quatro, que primeiro eu tinha certeza de que era veneno. Como você pode ver, ele não me envenenou. Deveria tê-lo feito quando teve a chance.
No terceiro dia, a curiosidade foi mais forte do que eu.

–Você nunca me respondeu, mocinha.

–Hm?

–Quando perguntei o que você queria. Qual é a tua?

Ele ficou em silêncio por tanto tempo que pensei que me ignoraria, e já esquematizava uma forma mais persuasiva de falar, quando ele se ergueu do chão, uma esponja pingando em uma das mãos, os cachos vermelhos balançando com o vento, me dando uma boa olhada na cara.

–Eu quero que você viva.

Nunca vou me esquecer do rosto dele quando disse aquilo, tão seguro, como se fosse real.

Você quer a versão curta da história? Eu posso narrar em detalhes sórdidos tudo o que ele fez pra te arrastar pra teia dele, Kenny. Tudo. Eu sei da fala mansa, suave, do jeito que ele tocou o seu rosto e te disse como você tinha valor, como você era melhor do que as coisas que você fazia, como ele via que você era bom no fundo, como ele acreditava em você. Eu sei como essa mão leve fez carinho no seu cabelo e como você esqueceu de tudo que era certo pra você antes, você esqueceu como se raciocina. Eu sei das trocas íntimas, das conversas noturnas, de como ele fez você abrir detalhes íntimos da sua vida pra ele. Contou da sua irmã, talvez? É. Eu sabia. Ele não tem que fazer nada para que você se abra, ele só te olha nos olhos e você se sente tão seguro, como se esse muro que você construiu a sua vida inteira desabasse num piscar de olhos. Você se esqueceu de quem você é, de como você se chama, de quem é seu povo, de a qual causa você serve, tudo por causa desse viadinho. Eu sei disso tudo porque ele fez exatamente a mesma coisa comigo. Ele salvou a minha vida pra falar as bruxarias de fadinha dele no meu ouvido, botou a mão na minha coxa, disse como eu era forte, como eu era bom, como eu só lutava pelo motivo errado, pelo rei errado. Ele fez com que eu contasse do rei do chapéu, da ditadura, dos assassinatos, da minha mãe. Ele nunca me contou quem ele era, se vestiu de maltrapilho e me fez acreditar que alguém nessa merda desse mundo realmente se importava com a minha vida miserável de soldadinho de chumbo. Ele me fez contar do cetro, das coisas que o rei fazia com ele. E eu fui imbecil, eu permiti. Eu senti o ódio me corroendo por dentro e eu disse, com os olhos ardendo, que eu sabia onde ficava o cetro, que aquele rei corrupto filho da puta era descuidado, e essa cobra judia alimentou o meu desejo de iniciar uma resistência para derrubar o rei, de roubar o cetro e retomar o poder do povo. Ele me fez contar onde o rei guardava o cetro.

E depois, você sabe o que ele fez? Você sabe, sua loira burra?! Ele correu pro papaizinho dele e contou absolutamente tudo que eu confidenciei.

* * *

Kenny piscou devagar.

A cabeça se mantinha abaixada, as sobrancelhas franzidas, os cabelos loiros sebosos cobrindo o rosto. Os lábios ligeiramente abertos, expondo os dentes amarelados, como se ele tivesse se esquecido de como fechar a boca. Ele não fazia parte daquele momento, e estava perfeitamente ciente disso. E não se importava.

O corpo imponente do rei humano agora estava muito mais próximo de Kyle, virado de frente para ele, e os dois se olhavam como se ainda estivessem vivendo a memória descrita, como se o tempo não tivesse passado. Por alguns segundos, Cartman ainda pareceu um garoto de dezesseis anos, por debaixo dos panos ricos e da barba, das linhas de preocupação que adquiriu como rei. Havia uma súplica em seus olhos, bem lá no fundo, escondida, porque em um primeiro olhar só se veria ódio e rancor.

–Eric. – O elfo disse em um tom tão gentil que só pareceu enfurecer mais o outro. Agora, Kenny erguia a cabeça, assistindo à cena de longe, como se nem estivesse no mesmo cômodo. Kyle sacudia a cabeça como se não tivesse certeza do que dizer, umedecendo os lábios. – Eu sinto muito. Mas não foi como você pensa.

–Ah, não?

–Eu não... Céus. Eu não te tirei do campo de batalha pra conseguir informações. Eu não te manipulei. E eu não me vesti de pobre pra te enganar. O que aconteceu na caverna foi real. Mas quando você me contou sobre o cetro, eu... Eu pensei que seria o fim da guerra. Eu precisava contar ao meu pai.

Um sorriso diabólico apareceu nos lábios de Cartman, amargo e em defensiva. Então, ele deu as costas ao elfo, voltando a encarar Kenny, gesticulando com as mãos.

–Vê? É exatamente disso que eu estou falando. E em partes, eu preciso te agradecer. Se o covardão do seu pai não tivesse roubado o nosso cetro, nós jamais teríamos conseguido derrubar o rei do chapéu erguendo uma rebelião. É graças a você que eu sou um rei, Kyle. Agora... – Limpando a garganta, retomando a postura, o rei deu alguns passos à frente, colocando um pé em frente ao outro sem pressa. – Nós precisamos tratar do que você fez, Kinny. Veja bem, não é porque eu entendo que isso justifica a sua traição.

–Cartman. – Kyle insistiu. – Seja lá qual for o seu problema, é comigo que você tem que resolver. Deixe ele fora disso. A sua vingancinha não tem importância agora, nós estamos no meio de uma guerra.

–Não me diga o que tem importância, Kyle.

–Venha aqui. – O elfo disse em um pedido quase agoniado.

O rei já havia parado no meio do caminho, mas não deu um passo sequer em direção ao ruivo.

E enquanto isso, os olhos azuis de Kenny ardiam diante dos acontecimentos, extremamente concentrados, a ponto de nem piscar. A expressão no rosto de Kyle era despreocupada, as sobrancelhas estavam levemente arqueadas e o queixo um tanto erguido enquanto sinalizava com as mãos juntas para que Cartman fosse até ele. Desconfiado, o rei humano discutiu com alguns palavrões, mas Kenny não absorveu, não ouviu. Algo crescia dentro dele.

–Eu sei que eu não estou em posição de negociar, Eric. Mas seja racional. Você sabe que o meu conselho não vai te entregar o cetro para me ter de volta, eles não vão te entregar de maneira alguma. Eles nem sabem onde fica. Então você pode me matar de uma vez e dar um fim nisso, ou nós podemos resolver como pessoas civilizadas.

Algo estourou dentro de Eric Cartman antes mesmo que a frase de Kyle fosse concluída. Ele trotou como um cavalo em direção ao elfo, agarrando-o pelo tecido fino da camisa branca e puxando com força para frente, movendo o corpo mole de Kyle sem dificuldade, sacudindo-o com a mão forte de forma que o pescoço do elfo estalou para frente, respondendo com uma voz descontrolada:

–Você acha que eu sou retardado?! Não use essa vozinha comigo. Eu sei exatamente o que eu tenho em mãos e o quanto vale. – A mão soltou o tecido e subiu ao rosto dele, fincando os dedos na carne do maxilar para que ele erguesse o rosto, e os olhos de esmeralda não se intimidaram um segundo sequer. – Você não quer me irritar, sua vadia. Eu já estou perdendo a paciência com você.

A palma gorda colidiu contra a face pálida, antes que ele tivesse a chance de responder qualquer coisa que o rei não quisesse escutar. O barulho foi alto e o rubor foi imediato, deixando a marca vermelha e ardente na pele suja do elfo, que apertou os olhos e abaixou a cabeça com um gemido fraco, sentindo um formigamento e uma dor aguda que não chegou a transparecer durante muito tempo. Kyle levantou a cabeça a tempo suficiente de ver Kenny, silencioso como um rato, saltando por trás das costas de Cartman, passando a cabeça do rei entre seus braços para pressionar a corrente das algemas contra a garganta dele, puxando para trás com tanta força que Eric quase caiu por cima dele, emitindo um grunhido sufocado de surpresa, levando as duas mãos grandes aos braços de Kenny para apertá-lo até sentir as unhas cravadas nos músculos, mas Kenny não aliviou a pressão, e rei começava a engasgar, sugando o ar pela boca em ofegos quase desesperados.

O barulho foi suficiente para que o guarda de cabelos longos chutasse a porta, mas Kenny não pareceu dar qualquer importância àquele homem que se aproximava com uma lança.

–Eu vou te matar, seu gordo filho da puta. – Murmurava com ódio contra o ouvido de Cartman, cujo rosto começava a mudar de cor, tomando um tom quase roxo, enquanto a corrente trancava a passagem do ar pela laringe. Cartman tentava tossir de forma escandalosa, sacudia o corpo para tentar jogar Kenny para o lado, mas o aperto era forte demais, as veias do braço do loiro estavam saltadas para concentrar toda a força de seu corpo em se manter em cima do homem, como quem se mantém sobre um cavalo selvagem. – Tá me ouvindo?! Eu vou te matar.

Os cabelos longos do guarda voavam enquanto ele corria, com a cara inteira franzida enquanto um grunhido de ataque escapava de seus lábios, a lâmina da lança bem apontada no ângulo calculado mentalmente desde que ele abrira a porta. Kyle se levantou quando percebeu o que estava acontecendo, mas era como se movesse em câmera lenta enquanto todo o entorno acontecia como um acidente de trem: a ponta da lança rasgava a carne do pescoço de Kenny, e em menos de um segundo, já havia saído pela nuca, logo abaixo do pomo de adão, dilacerando a laringe por completo, atravessando de lado até raspar na cervical. O impacto fez com que os dois homens caíssem ao chão, Eric Cartman e Kenny McCormick, mas agora os braços de Kenny já não faziam mais força alguma. O guarda puxou a lança ensangüentada, segurando o corpo de Kenny com o pé enquanto ele convulsionava, e um jato de sangue manchou as roupas, os cabelos e parte do rosto do rei humano.

Kyle gritou.

Cartman respirava pesado como um touro, enchendo os pulmões de ar enquanto usava as mãos trêmulas para se livrar dos braços de Kenny, fazendo um sinal brusco ao guarda para que lhe ajudasse a levantar. Foi apenas ao se colocar de pé que o rei pareceu retomar a postura, alisando as roupas amassadas casualmente, em seguida dando uma boa olhada no homem algemado ao chão, que parecia agora afogar no próprio sangue grosso e escuro que transbordava da boca, os olhos mais azuis do que nunca.

Kyle já estava de joelhos.

E engatinhou lentamente para perto do corpo de Kenny, que ainda por vez ou outra se debatia, emitindo sons guturais úmidos e desesperados.

–Kenny... – Kyle disse de forma quase inaudível, com os olhos tão arregalados que poderiam saltar das órbitas, virando-o com dificuldade pelas mãos algemadas, tentando erguer a cabeça dele, mas tremia demais ao se dar conta de que o loiro não estava mais ali. – Ken... – Murmurou, mas a palavra foi interrompida por um ofego trêmulo, quase como um gemido de dor, enquanto abaixava o rosto até encostar a testa contra o peito molhado de sangue do loiro, pressionando o rosto contra ele como se buscasse os batimentos de um coração que não mais batia.

–Ah. – Cartman disse, retirando um lenço do bolso para limpar o sangue do próprio rosto calmamente. – Isso realmente não teve graça. Eu tinha tantos planos para ele.
Kyle não reagiu, pois não ouviu uma palavra sequer do que foi dito.

Cartman esfregava o próprio pescoço ferido, como se ainda sentisse a corrente ali, esboçando certa dor na expressão. Mas durou apenas um momento. Logo voltou sua atenção ao elfo no chão, os cabelos ruivos caídos por cima do rosto abaixado, as mãos agarradas à camisa imunda do homem morto, apertando-o contra o seu corpo, ajoelhado como quem faz uma oração para que ele simplesmente se levantasse. O rei precisou rir, ainda que brevemente.

–Parece que somos só você e eu afinal, Kyle.

Lentamente, o elfo foi erguendo a cabeça, os olhos úmidos aparecendo parcialmente por trás dos fios vermelhos colados ao rosto rosado, o corpo inteiro trêmulo, e a expressão completamente sem vida. Kyle reuniu todas as forças restantes para murmurar, ainda com os dedos agarrados à camisa de Kenny, apertando com ódio enquanto os músculos do rosto se contorciam de forma macabra.

–Não há nada que você ame que eu não vou destruir, Eric Cartman. Nada.



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