Kenny estava deitado quando ouviu o rangido da porta exageradamente grande para aquelas criaturinhas. Tudo bem, talvez os elfos não fossem tão miúdos assim, mas certamente pareciam, dada sua mania de grandeza. Tudo que eles construíam parecia maior do que o necessário. O prisioneiro passou a língua nos dentes da frente, esticando o pescoço para esperar que alguém aparecesse em frente às grades de sua tão formosa cela. Não era escura e empoeirada como ele havia esperado. Não. Era espaçosa, limpa, as paredes de pedra crua quase davam um toque de elegância ao ambiente. E havia uma janela, mesmo que muito alta, da qual Kenny poderia enxergar (quando ficava de pé em sua cama) parte do morro esverdeado e pequenos caminhos que cortavam entre as árvores, pelos quais elfos passavam o dia inteiro carregando cestos sobre suas cabeças. Ele se perguntava o que havia dentro dos cestos.
A cama era basicamente uma tábua de madeira erguida por duas correntes enferrujadas. Era difícil se equilibrar em cima dela por muito tempo, especialmente pelo risco de que a coisa despencasse sob seu peso. Ele preferiu deitar no chão, de frente para a parede, encolhido em posição fetal. Tinha encontrado um pedacinho de carvão largado no chão da cela, tão miúdo que mal podia segurar em seus dedos. Presente do prisioneiro anterior, talvez. Usava o carvão para rabiscar na parede, com o rosto bem próximo, concentrado em fazer uma casinha de camponês. Muito semelhante àquela em que havia crescido.
Bom, não “muito” semelhante. Ele não desenhava tão bem assim e seu material de trabalho também não era o melhor.
A madeira do chão da torre rangia quando alguém pisava sobre suas tábuas. Passos se aproximavam. Kenny guardou o carvão no bolso, gemendo de dor ao sentir os músculos do braço repuxando por dentro da sua carne. Levantar o tronco foi ainda mais difícil. Com o apoio das duas mãos, ele conseguiu se sentar, recostando seu tronco contra a parede irregular de pedra, soltando um gemido aliviado. O sol já havia se posto e a cela estava mais escura agora. Não fazia ideia de quantas horas se passaram, mas foi tempo o suficiente para o sangue secar por dentro de sua roupa e o gosto amargo em sua boca piorou consideravelmente. Provavelmente havia um dente mole apodrecendo lá no fundo. Ele não se importava tanto com isso agora.
Tossiu. E esperou.
Sua boca, que antes era uma linha reta incomodada pelo desconforto físico, se abriu em um sorriso quando duas figuras entraram no cômodo. A madeira rangia mais alto em seus ouvidos agora. Kenny reconheceu um deles pelas botas, antes mesmo de ver seu rosto: o guerreiro que apontou uma flecha em sua cara. Ele ainda carregava o arco nas costas. Kenny não gostava muito desse cara. O outro... Era coberto por um manto vermelho e desenhos dourados, as duas cores que reluziam nos seus fios de cabelo. E havia uma coroa. Uma coroa de madeira. Kenny sorriu de canto, inclinando o tronco para frente de forma sutil, imitando uma reverência.
-Olhe só se não é vossa alteza. Os rumores não fazem jus. Você não parece tanto uma garota quanto dizem.
Assim que as palavras saíram de sua boca, Stan já havia avançado com a mão em uma das flechas penduradas em um saco nas suas costas, mas a mão de Kyle interveio, tocando seu peito de leve, e ele parou. O rei não olhou seu guerreiro. Não tirou seus olhos do homem ensangüentado no chão de sua cela, nem por um segundo. O prisioneiro estava com uma das pernas dobradas e a mão descansando sobre o joelho, a cabeça caída para o lado. Kyle franziu as sobrancelhas.
A mão de Stan sacou a flecha devagar, cuidadosamente retirando-a do saco, mas depois caiu com o braço na lateral do corpo, segurando a flecha firme em sua mão. E esperou como um cão de guarda, com o queixo erguido e a expressão séria.
O rei começou a se aproximar das barras de ferro.
-E quem diz isso?
-Meu povo.
Não houve qualquer hesitação na voz do loiro, apesar da garganta estar arranhada e latejando, tornando suas palavras roucas. Ele se sentia profundamente desmoralizado.
Para sua surpresa – apesar de não ter demonstrado – um sorriso apareceu no rosto sério do rei elfo. Uma das mãos, de dedos longos como todos por ali pareciam ter, envolveu uma das barras em um toque gentil. Stan deu um passo à frente. Parecia incomodado com a proximidade entre o rei e o prisioneiro, mesmo que o homem capturado estivesse sentado no chão do outro lado da cela e não fizesse qualquer menção de se levantar. Talvez ele nem conseguisse levantar mais.
-Como é seu nome?
-Kenneth.
Novamente, o elfo sorriu, como se achasse o nome engraçado.
-Diga-me, Kenneth, as minhas maçãs estavam boas o suficiente para você?
-Eu não tive tempo de experimentar, vossa alteza. Veja bem, antes que eu tivesse o prazer, seu exército de coisinhas pulou em cima de mim e agora eu estou aqui.
-Você está com fome?
Kenny estreitou o olhar. O tom e a expressão facial desse homem à sua frente pareciam tão pacíficos que ele nem acreditaria, enxergando de fora, que era por causa desse diabinho que ele estava agora preso atrás de grades com o rosto latejando e alguns ossos possivelmente fraturados. Mas ele não pôde evitar o sorriso por entender direitinho a brincadeira que o rei estava propondo a ele. Ou pelo menos acreditava que sabia.
Stanley, agora poucos passos atrás de seu rei, o observava com muito mais cautela. Parecia muito disposto a armar aquela flecha a qualquer sinal.
-Vossa majestade é sempre tão gentil com homens que manda torturar?
-Ninguém torturou você, mas podemos. Já que você quer tanto. – a voz veio de trás do rei, mais grossa e mais zangada que a dele. Stanley apertava a flecha no punho com tanta vontade que poderia parti-la ao meio.
O rei o ignorou.
-Kenneth... Você vai me contar o que estava fazendo nas minhas terras. Isso não é um pedido, tampouco uma ordem. É um fato. Isso pode acontecer agora, enquanto você ainda está inteiro, ou... – Seus dedos magros deslizaram pela barra de ferro tão delicadamente, de forma quase erótica, umedecendo os lábios ao mesmo tempo. – Ou você pode conversar com elfos que não hesitam em sujar as mãos antes.
-Escuta aqui, princesa.
Em um piscar de olhos, a flecha estava armada no arco e Stan puxava a corda e mirava entre as barras, colocando-se ao lado do rei. Deixou apenas escapar um bufo de irritação, mas o restante de seu corpo congelou em uma pose de ameaça.
-Eu não vou ter problema algum em colocar um buraco no seu crânio se continuar com essas gracinhas.
Por alguns instantes, foi suficiente para que o prisioneiro se calasse com uma risada de deboche, desviando o olhar e passando a mão pela testa. Pingava de suor, mas ele sentia frio. Talvez alguma infecção estivesse dando início a uma febre.
O guerreiro não recuou até que a mão do rei soltasse a barra da grade e alisasse seu braço em um gesto de conforto.
-Abaixe a flecha, Stanley.
Stan hesitou por um momento, virando o rosto para Kyle em dúvida, encontrando uma certeza incondicional nos olhos verdes do rei. Tão verdes... Que Stan quase se esqueceu que segurava uma arma. Com um suspiro calmo, ele abaixou o arco, lançando um olhar fixo e desconfiado ao prisioneiro.
-Ouça. – Kyle disse a ele, levando as duas mãos ao seu rosto para que Stan voltasse a encará-lo, diminuindo a distância entre seus corpos. – Espere-me ali fora, por favor.
-O quê? Não, eu não vou te-
-Stanley.
-Kyle!
O guerreiro apertou seus lábios como se acabasse de dizer algo profano após soltar o nome do rei com tanta intimidade, como quando eram crianças. Esperou por um tapa, uma punição, um olhar de repulsa. No lugar disso, sentiu o toque suave da mão em seu rosto, deslizando pela bochecha, o polegar brincando próximo aos lábios de Stan. Ele fechou os olhos em êxtase com o toque, apertando-os de forma quase dolorosa, esquecendo-se de respirar.
-Nada vai me acontecer.
-Ele arrancou o dedo de um dos nossos com os próprios dentes. – sussurrou com os olhos ainda fechados. - É um animal. Você não sabe o que ele pode...
-Você jamais deixaria que algo acontecesse comigo. – Kyle murmurou, segurando as duas mãos firmes nas laterais da cabeça do guerreiro e trazendo seu rosto para perto, colando as testas. – Saberá se eu precisar de você. Sentirá. Eu sei disso.
Stan não ousou tocá-lo.
-Aaaawn. Que meigo. Acho que eu vomitei um pouco na minha boca. – o homem de dentro da cela proferiu com uma expressão sátira, rindo sozinho em seguida.
Stan lhe ofereceu apenas uma olhada rápida antes de engolir seco e dar um passo para trás, curvando-se diante de Kyle, que acenou com a cabeça ao observar o guerreiro deixando o cômodo com relutância, assegurando-o com o olhar.
O rei continuou virado em direção à porta por alguns momentos, mais afastado das grades do que anteriormente. Talvez temendo pela ausência do seu escudo protetor, como se de repente Kenny fosse se levantar do chão e agarrá-lo por entre as barras, enforcá-lo com as próprias mãos ou coisa do gênero. A ideia chegava a soar tentadora na mente do prisioneiro. Envolver aquele pescocinho longo com as duas mãos e trazê-lo para perto, observar enquanto a compostura de autoridade suprema se desfazia diante de seus olhos. Mas Kenny não ia idiota a esse ponto.
-Então. – disse casualmente, esticando a perna que antes estava dobrada. – Eu não sei que tipo de perversões você tinha em mente para querer ficar a sós comigo, princesa, mas Kenny júnior não funciona muito bem quando dói até para eu me mexer. Sinto desapontá-lo.
-“Kenny?” É assim que o chamam lá em Kupa Keep?
-Sim, madame.
-Hm. – O rei levou as mãos por trás das costas e começou a andar pelo pequeno aposento, olhando para o chão. – Você viajou um caminho muito longo apenas por maçãs deliciosas, não?
-O que eu posso dizer? São famosas em todos os reinos. Pena que não consegui provar.
-Você não vai provar nem comida de cachorro enquanto não decidir colaborar comigo. Sabe disso, não sabe, Kenny?
O prisioneiro levantou o queixo. Alguns fios de cabelo loiro caíram por seus ombros. Estavam muito mais longos do que ele preferia, mas não encontrou tempo ou navalha para resolver essa situação nas últimas semanas.
-Não sei do que está falando.
Kenny estava ficando impaciente. Apoiou uma das mãos na parede e a outra no joelho para tentar erguer o corpo, que parecia pesar 20kg a mais do que normalmente. O rei o espiou de canto enquanto ele se aproximava das barras de aço, cambaleando feito o um bêbado para caminhar porque seus sentidos ainda não haviam voltado ao normal. Elfos desgraçados. Aquilo tudo estava começando a perder a graça a essa altura. Ele segurou nas barras com força, sacudindo a cabeça para afastar os fios dos olhos, perfurando Kyle com o olhar azul – ridiculamente azul – a ponto de intimidá-lo um pouco.
Não que o rei tenha demonstrado intimidação.
-Você acha que eu vou perder o olho, princesa?
Kyle o encarou por um momento, avançando com o pé para a frente e o observando sem expressão.
-O quê?
-Meu olho. – Ele apontou com o indicador. – Está bem feio, não? Eu estava aqui pensando se eu ficaria bem com um tapa-olho quando eu o perdesse. O que você acha?
O manto vermelho voou de forma dramática quando o rei se aproximou em passos pesados e furiosos, enfiando a mão por entre as barras sem hesitar e puxando os cabelos loiros imundos do prisioneiro para trazer sua cabeça mais para baixo, à altura de seus olhos. Foi só ao se colocar de pé que Kenny percebeu o quanto essa figura de poder maior dos elfos era pequena. Um sorriso de satisfação surgiu em seus lábios ao vê-lo tão irritado.
-Escute aqui. Eu tenho coisas muito mais importantes a fazer do que me preocupar com um verme humano como você. Não vai ter que se preocupar com um tapa-olho porque você não vai ter mais rosto se continuar me irritando. – ele sussurrou rápido entre seus dentes, bem próximo do rosto de Kenny, cuspindo em seu olho ao soltá-lo. – Eu vou perguntar mais uma vez: para que você foi mandando? Quem é você, qual é seu sobrenome?
O loiro passou dos dedos pelo olho delicadamente para limpar a saliva, embora os dedos estivessem muito mais sujos. Deixou escapar apenas um som de constatação ao observar o cuspe em suas digitais, franzindo as sobrancelhas e voltando a encarar o rei, que não havia se afastado. Não sorria mais, mas parecia considerar suas possibilidades. Kyle apenas esperou.
-Eu achei que vocês teriam algum tipo de pessoal especializado para lidar com os vermes humanos. Digo... De onde eu venho, o rei não iria ao calabouço fazer uma visita pessoal a um elfo. A menos que fosse para assistir à tortura. Ele acha isso divertido.
A expressão no rosto de Kyle era de asco. Kenny não riu dessa vez.
-Eu presto um tratamento especial para o povo de Cartman. Isso não significa que eu não tenha uma fila de elfos ansiosos para arrancarem as suas unhas por informações, mas eu costumo esperar que não se chegue a tal ponto.
A mão imunda do prisioneiro passou entre as barras para que as costas da mão encontrassem com a bochecha macia do rei, alisando-a por um segundo antes que Kyle agarrasse seu pulso com muito mais força do que Kenny esperava. Mas não afastou sua mão, e por alguns instantes, os dois ficaram imóveis.
-Isso significa que você quer me proteger? Que gracinha. Seu namorado vai ficar com ciúme.
Com um suspiro cansado, Kyle afastou a mão do prisioneiro delicadamente e lhe deu as costas. As tábuas de madeira rangiam conforme o rei se afastava da cela. Seu manto por pouco não arrastava no chão, erguendo-se conforme ele andava depressa em direção à porta.
-McCormick.
O rei parou.
Virou apenas o pescoço, olhando para o chão, mantendo as costas para o prisioneiro.
-O quê?
-Meu nome. É Kenneth McCormick.
-Como em... – Ele recuou com um dos pés e virou metade do corpo em direção à cela, o rosto ligeiramente confuso. – Como em Lady McCormick?
Kenny soltou uma risada e encolheu os ombros.
-Princesa McCormick, na verdade.
-Eu... – o rei murmurou sem pensar, voltando a virar de costas, uma das mãos subindo ao topo da cabeça para ajeitar a coroa torta. – Eu deveria ter percebido. Você se parece muito com sua irmã.
E com isso, Kyle deixou a sala.
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