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História Rex Meus - Ao rei, com amor


Escrita por: caulaty

Capítulo 21 - Ao rei, com amor


Terrance e Phillip eram duas criaturas difíceis de compreender. Mas para entender o motivo, é preciso visitar uma terra não tão distante, a 1406.83 milhas de Zaron, onde neva o ano inteiro. Foi dividida por guerras territoriais ao longo de milênios, e então fragmentada entre as tribos aborígenes e a população civil, que constituiu sua monarquia, expulsando os nativos por serem considerados “selvagens” demais para a convivência civil. A tribo Due, uma das mais antigas, destacava-se por uma mutação genética em que toda gravidez geraria filhos gêmeos idênticos. Era senso comum que essa mutação era relacionada à magia, especialmente pela interação curiosa entre dois gêmeos nascidos em Due. Não somente suas feições seriam idênticas, mas também haveria uma ligação telecinética inquebrável para toda a vida. Era uma característica obrigatória que os gêmeos Due tivessem cores de cabelos diferentes e olhos da mesma cor: no caso de Terrance e Phillip, algo extraordinário aconteceu. Algo inédito para aquele povo. Terrance nasceu com os cabelos muito negros e um par de olhos tão pretos que não se fazia diferença entre sua íris e suas pupilas. E Phillip nasceu com os cabelos de um loiro platinado, quase branco, e um par de olhos mais azuis do que o próprio céu. Todos pensaram que houvesse uma desconexão desastrosa entre os dois irmãos, mas o tempo provou justamente o contrário; não havia dois seres mais interligados na tribo do que Terrance e Phillip.

Os gêmeos haviam deixado a tribo para estudar magia em Zaron, instalando-se no interior de uma das cavernas das Montanhas Gêmeas, no Arvoredo élfico. Levou anos para que os elfos descobrissem sua presença, e quando descobriram, ambos foram convocados ao palácio como prisioneiros. O filho mais novo do rei, nascido na região civilizada do Canadá, estava extremamente doente. De alguma forma, Terrance e Phillip sentiram isso assim que se colocaram diante de Gerald, e foram as palavras que lhes salvaram de um bocado de dor de cabeça: “nós podemos salvá-lo”, ditas em perfeito conjunto entre suas vozes, sem uma vogal sequer fora de sintonia. Era como se a entonação de suas vozes formasse uma só. Os magos não precisaram explicar a quem se referiam, ou como sabiam da condição enferma do príncipe. Contra os protestos escandalosos de Sheila, foi consentido aos gêmeos que dessem uma olhada em Ike. Esse foi o momento em que se estabeleceu a confiança entre os Gêmeos da Montanha e a família real dos elfos de Zaron.

Agora, lá estavam os dois, exatamente da mesma altura, parados no salão de entrada do castelo dos elfos novamente, um ao lado do outro, como um par de vasos cuja posição fora meticulosamente calculada. Quando um virava o rosto para o lado esquerdo, o outro virava também, ambos pares de olhos carregados de curiosidade e deslumbramento. Terrance apertava entre os dedos um pedaço de papel de seda amassado, que havia sobre a mesa da saleta na qual foram colocados para aguardar alguns minutos antes. Havia um mapa desenhado com carvão, que os gêmeos fizeram em conjunto, levando apenas setenta e quatro segundos. Houve uma pequena discussão sobre quem seguraria o mapa, mas Phillip soltou quando ouviu o barulho do salto alto de Henrietta ecoando do outro lado da porta dupla, que se abriu bruscamente, revelando a figura voluptuosa da mulher. Apenas sua silhueta era visível, dada a luz intensa que surgia de trás dela.

-Venham. – Ela anunciou em uma voz seca.

A sala na qual os gêmeos entraram era extraordinariamente clara, maltratando as córneas daquelas criaturas que estavam acostumadas ao fundo de uma caverna e à proteção da sombra das árvores quando era necessário sair. A iluminação se devia às janelas imensas que tomavam uma parede inteira. Havia uma mesa longa como nada que os gêmeos já tivessem visto antes, coberta por uma toalha de veludo verde como a própria grama, e Phillip esticou a mão para tocar o tecido, mas Terrance o impediu com um tapa barulhento no pulso do irmão, sem precisar olhá-lo para acertar onde bater. Philip não soltou qualquer resmungo e sua expressão não se alterou, mas a mão imediatamente retrucou como se tivesse vontade própria, colidindo com as costas contra a barriga de Terrance, que também não reagiu.

Henrietta ergueu uma sobrancelha.

Vestia preto da cabeça aos pés, como havia feito nos últimos dias. Sempre foi uma mulher de preto, então seria preciso observá-la muito de perto de perto para perceber como as nuances de roxo, vermelho, vinho e azul marinho haviam desaparecido de suas vestes. Terrance e Phillip notaram, ainda que não tivessem visto aquela mulher mais de duas ou três vezes durante a vida. Tinham em comum acordo que Henrietta era assustadora o suficiente para não dizerem nada, pelo menos enquanto fosse possível evitar. Outra figura no canto da sala, que, ainda que desconhecida, era igualmente assustadora; um homem francês humano com os braços cruzados em frente ao peito, ferido na cabeça, de olhos avermelhados. Terrance e Phillip prenderam os dois pares de olhos arregalados no homem, suas bocas idênticas enrugadas, projetando bicos curiosos, sentindo a energia oscilante de Christophe.

Os gêmeos deram as mãos. Foi impossível definir qual dos dois teria tomado a iniciativa, visto que as duas mãos se moveram exatamente no mesmo segundo, e os dedos se entrelaçaram como se pertencessem ao mesmo ser, conhecendo-se de cor.

-Ouçam, criaturas. – Henrietta disse, firmemente. – Precisamos entrar em um acordo. Vocês... – Os lábios da mulher selaram ao perceber que ela não tinha a atenção dos gêmeos. Estalou os dedos em frente ao rosto, apoiando-se à mesa com a mão livre. Terrance e Phillip ainda observavam Christophe. – Estão ouvindo?

Phillip usou a mão esquerda para cutucar a barriga do irmão, cochichando em voz alta:

-Acho que ela está falando conosco.

-Será que ela está falando conosco?

-Acho que está, Terrance, está sim.

-Oh bem. Quem?

Em momento algum, as pupilas deles se moveram. Henrietta e Christophe trocaram um breve olhar impaciente, e ele fez um gesto de encorajamento para que ela pegasse o livro pesado de magia índigo, erguendo-o trinta centímetros acima da mesa antes de soltá-lo, emitindo um estrondoso barulho que captou a atenção dos gêmeos. O susto fez com que pulassem em um movimento uniforme, coeso, totalmente harmônico, saltando a mesma altura calculada e aterrissando no mesmo instante. Phillip se inclinou para o lado, sem mover o pescoço um centímetro, estranhamente estático.

-Eu disse que ela estava falando conosco.

-Oh, sim, você disse.

Christophe cobriu o rosto com a mão e suspirou fundo.

-Prestem atenção, seus... – Henrietta começou, mas conteve as palavras com uma careta perturbadora, as linhas de expressão muito marcadas sob a luz do vitral. – Vocês entendem que moram em nossa propriedade, em nossa floresta, em troca de algo? Entendem que são nossos aliados?

Os gêmeos se entreolharam.

-Ela pensa que somos retardados. – Terrance cochichou em voz alta ao irmão.

-Ela certamente pensa! – Phillip concordou.

-Não importa o que penso. – Henrietta disse, não se dando ao trabalho de negar. – Importa que entendam qual é sua responsabilidade. Eu não vou enviar o príncipe e herdeiro do trono em uma viagem com vocês dois se eu não estiver absolutamente certa de que vão cumprir sua parte. Vocês sequer sabem o que devem fazer?

-Proteger o cetro. – Ambos responderam simultaneamente, suas vozes condensando em uma só, como duas partes da mesma música. Separadamente, as vozes dos gêmeos eram agudas, estranhas e desagradáveis. Mas unidas, em sintonia, eram harmônicas aos ouvidos.

-Certo. – Ela respondeu de forma hesitante, quase surpresa. Cruzou os braços.

-E o que teremos em troca? – Terrance perguntou, enfim olhando para a mulher.

-É! O que teremos em troca?

-Vocês já recolhem a recompensa há anos, morando em nossa floresta. O que mais esperam de nós?

Quando Henrietta se preparava para um longo e exaustivo debate que, ela tinha plena certeza, andaria em círculos, algo mais forte pareceu prender a atenção dos dois homens. Como se algum zumbido estourasse seus tímpanos, mas eles fossem os únicos capazes de ouvi-lo, enquanto todos os outros presentes no saguão franziam suas testas em dúvida. O zumbido parecia vir diretamente de Henrietta, pela forma com que os gêmeos se aproximaram – ainda de mãos dadas, os passos assustadoramente sincronizados – e a mão de Christophe instintivamente correu ao cinto em que a faca estava presa, colocando-se na posição de um predador caso tivesse que agir rápido. Não foi necessário. Os passos dos gêmeos diminuíram ao se aproximarem o suficiente da mulher, seus corpos magros combinadamente inclinaram-se para frente e as narinas se abriram, cheirando Henrietta como cães amestrados fariam. Ela deu um passo para trás, por instinto, e levou a mão à barriga. Talvez fosse a natureza se manifestando, a necessidade extraordinária de pensar no feto que crescia dentro dela muito antes de pensar na própria segurança (embora não corresse perigo real naquele momento), mas algo dentro dela lhe avisou que eles estavam interessados em seu filho, não nela propriamente.

Estava certa.

Phillip ergueu a mão livre para tocar a barriga dela, com a fascinação de uma criança, mas Terrance lhe deu um tapão antes que alcançasse o objetivo. Os dois se olharam como se encara a própria imagem em um espelho. Phillip correspondeu com um beliscão, e Terrance retribuiu com um pisão no pé, mas logo os dois estavam endireitados e olhando para Henrietta como crianças levadas que estão prestes a levar uma bronca. Ela foi tomada por uma estranha sensação de afeto pela inocência nos olhos daquelas duas criaturas. Sentiu-se enjoada.

-Você viu isso? – Terrance perguntou ao irmão, mas seus olhos jamais deixaram a barriga de Henrietta.

-Eu certamente vi, sim senhor, eu vi sim. – Phillip respondeu, assentindo com a cabeça.

-Devemos pedir?

-Ora, e por que não?

-Vamos pedir.

Henrietta virou-se em direção a Christophe, cujo olhar passeava entre ela e os gêmeos, suas grossas sobrancelhas franzidas em uma cômica expressão de desentendimento. Mas ninguém sorriu. Quando ela voltou a encará-los, vestia sua corriqueira impaciência novamente. Levou as mãos à cintura.

-Do que estão falando, suas aberrações?

Os dois responderam em uma única e coesa voz:

-São gêmeos.

-O quê?

-Dentro de você. – A voz dupla respondeu casualmente. – São gêmeos.

Toda a força de Henrietta foi esgotada em uma tentativa de não cobrir a barriga com a mão novamente. Levantou o queixo em uma serena curiosidade, umedecendo os lábios manchados, escorregando a língua pelos dentes.

-O que sabem sobre isso?

-Vamos ajuda-la. – Terrance disse de repente, em um tom de brilhantismo, como se tivesse acabado de descobrir o fogo. – Se nos der um deles!

-Sim, sim! – Phillip concordou, soltando a mão do irmão para unir as palmas em frente ao rosto. – Nos dê um deles!

Os lábios da mulher estavam partidos, incrédulos.

Conseguiu se mover somente quando Terrance ergueu a mão, aquela mão diabolicamente magra, cujos dedos sujos eram tortos e ossudos o bastante para serem associados com os de um demônio, tão pálidos, as unhas tão escuras. A mão se aproximava da barriga da mulher, que já apresentava uma protuberância imperceptível a quase todos os olhos, mas não aos olhos dos gêmeos, que a olhavam como se pudessem ver através de sua carne. As pupilas dos gêmeos se dilataram simultaneamente, e seus lábios finos formaram um sorriso cínico, contrastando com os olhos estáticos como se seus rostos fossem feitos apenas disso. Os dentes amarelos brotavam entre os lábios, tornando seus sorrisos quase doentios. Instintivamente, Henrietta deu um passo para trás e bateu com força na mão que se aproximava.

-Não chegue perto de mim, sua besta!

Christophe, que parecia em guarda a espera de um sinal para agir, não deu um passo sequer à frente. Parecia paralisado. Não havia nada em sua expressão, nenhum brilho nos olhos, nenhuma emoção transparecendo dos traços rígidos da face. Talvez por saber que os gêmeos tinham mais medo de Henrietta do que o contrário. Ele era talentoso em cheirar o medo.

Terrance, por sua vez, não pareceu ofendido ou incomodado com a reação de Henrietta. Phillip deitou a cabeça para o lado, confuso, e o irmão fez o mesmo para o lado oposto, alguns segundos depois. Poderiam ter feito exatamente no mesmo segundo, se quisessem.

-Bradley é um lindo nome. Não acha um lindo nome, Terrance?

-Oh, sim, um lindo nome. Sem dúvidas um lindo nome.

A menção do nome do irmão foi como um soco na boca do estômago. A mulher respondeu com uma careta, como se engolisse o próprio vômito.

-O que sabem sobre Bradley? – Ela perguntou com fraqueza.

-É o nome do seu bebê. – Phillip esclareceu. Os olhos permaneciam estáticos, o sorriso permanecia doente. – O loiro!

Terrance agarrou o braço do irmão, olhando-o com os olhos carregados de algo que, mais tarde, Henrietta identificaria como amor. Algo havia mudado dentro dela, tornando natural reconhecer o amor entre duas pessoas que se têm como família. Aquilo nunca pareceu importante antes. Era incrível. Antes mesmo dos dedos lhe tocarem o braço, Phillip já estava encarando-o de volta.

Uma sombra lhes cobriu os olhos de repente.

-Christophe. – Sussurrou Terrance, voltando-se para Henrietta.

Ela olhou de relance para trás, onde o homem francês levava um cigarro à boca e alcançava um fósforo no bolso para acendê-lo. Seus olhos subiram brevemente, em curiosidade, mas não pareceu tão interessado quanto se esperaria.

-O quê?

-Será o nome do bebê de cabelos escuros. Cabelos negros como os seus.

-E por que eu o chamaria de Christophe?

-Oras, e como vamos saber? É você quem dará o nome! – Phillip exclamou.

O estômago de Henrietta embrulhou diante da ideia. Com tudo o que acontecera nos últimos dias, ela não havia tido tempo para pensar sobre a pequena criatura que se desenvolvia em seu ventre. Não pensara em nomes, muito menos pensara na possibilidade de se ver com dois bebês em vez de apenas um. Era impossível afugentar a ideia de que havia um pedaço de Michael dentro dela, o que imediatamente torcia seu coração e tirava o ar de seus pulmões. Henrietta nem mesmo gostava de crianças. Mas algo que corria em suas veias era forte o bastante para querer matar aquelas duas criaturas à sua frente pela simples intenção de levarem seu filho. Seu coração palpitou. Era a primeira vez em que pensava naquele bebê como um filho. Tentou não imaginar seu rosto, caso fosse um menino, com os cabelos negros e os olhos de Michael. Ou cabelos claros, como os de Bradley. Seu doce, inocente Bradley.

Olhou novamente para Christophe. Aquele rosto bruto e tranquilo, por trás da fumaça dançante e azulada, parecia enaltecido. Como ela desejou um cigarro naquele momento.

-Ouçam, pestes. Eu não quero ouvir mais uma palavra sobre isso. Temos trabalho a fazer. Christophe, por favor, vá buscar Ike. Vocês vão acompanha-lo. Sua recompensa será manter suas bolas, pois vocês estão me irritando profundamente.

Os gêmeos gargalharam.

* * *

-Eu posso ir junto. – Christophe disse pela terceira vez, cada palavra mais insistente que a anterior. Agora, ele e Henrietta estavam sozinhos no saguão principal.

-Não. De forma alguma. Você ainda está debilitado demais. Quer estar consciente e conseguindo levantar sozinho quando Kyle voltar, não quer?

Havia algo de doce na voz dela. O homem bufou.

-Alguém precisa ir com eles.

-Eu sei. Mas Gregory está resistente, há regras contra esse tipo de coisa.

-Foda-se. Eu não gosto disso. Estamos colocando demais na mão deles. Parecem duas crianças retardadas, puta merda.

-Sei que é difícil de acreditar. Mas eles são excepcionais. É possível que já saibam onde o cetro está, sem precisar de ninguém. Eles enxergam tudo.

O rosto de Henrietta era difícil de encarar. Muitas pessoas fortes estavam desabando diante de seus olhos, e Christophe sentia que seria o próximo. Quis consolá-la, mas aquele saguão amplo e abrangente parecia exposto demais, pouco íntimo, e nenhum dos dois se sentiria confortável. Então, tirou um cigarro do bolso e estendeu a ela. Henrietta recusou, e ele ficou contente por isso.

* * *

Ele tinha feito tudo o que foi lhe dito. As coisas não deveriam ter dado tão errado.

 

Kyle nunca tinha sido muito bom em seguir ordens, isso era verdade, mas aquela noite era diferente em todos os aspectos. Apesar da promessa feita por Marjorine sobre aparecer na noite seguinte, a princesa levou mais três dias para realmente ir até ele com um plano. Não eram instruções complicadas, na verdade, ele só tinha que ser rápido e não se deixar distrair com a possibilidade de encontrar o quarto de Eric Cartman para assassiná-lo em seu sono. Esse foi o pensamento mais latejante em sua mente, junto com outras ideias obscuras que ele constantemente tentava expulsar de seu cérebro enquanto deitava no chão sujo frio de sua cela, imerso na escuridão, mal vestido, tentando lembrar-se de quem ele foi um dia, da vida que teve fora daquelas paredes. Era quase impossível. O barulho alto de chuva forte e vento lá fora fazia com que se sentisse ainda menor, encolhido em posição fetal e abraçando os joelhos, tremendo como um garoto que havia perdido sua mãe. Era mais fácil ser frágil quando não havia ninguém por perto para vê-lo desmoronando em pedaços. Seu rosto estava sempre pressionado contra o chão, seu cabelo estava sempre caído sobre os olhos (embora tivesse sido cortado poucos dias antes, ele não tinha certeza de quando), até o ponto em que Kyle estava se acostumando com essa condição, esquecendo-se de que já tinha sido qualquer outra coisa. Era quase fácil tornar-se apenas um pedaço de carne no chão, deixado para trás por alguém que não o queria mais.

 

Mas ele não tinha desaparecido ainda. Seus olhos ainda brilhavam. As palavras de Cartman ainda ecoava em seu crânio, repetidamente, como combustível para um incêndio em crescimento. Às vezes, o próprio Kyle se encontrou movendo os lábios para sussurrar aquelas mesmas palavras, olhando para o vazio de sua cela, as lágrimas escorrendo pelo seu rosto e ele sequer percebia até que seus olhos estivessem queimando. Mas ele não chorava por Cartman, não, isso nunca. Após a visita de Marjorine, ver Kenny tornou-se uma espécie de hábito. Ele estava absolutamente certo de que estava enlouquecendo, mergulhando mais profundamente em sua própria insanidade, mas aquilo o anestesiava e isso era mais do que Kyle poderia pedir. O rosto de Kenny parecia ainda mais jovem do que ele se lembrava (e Senhor, como ele se esforçava para tentar não esquecer daquele rosto), seu sorriso tão pueril e brilhante, iluminando toda a sala, dizendo coisas que só Kenny diria.

 

"Vamos lá, gatinho, você é mais forte do que isso", Kyle ouvi-lo dizer dentro de seu cérebro, "Eu não posso matar esse filho da puta para você, mas eu juro que o faria. Você não precisa de mim para nada, não é? "

 

Às vezes, isso ajudava. Às vezes, ele mandava Kenny calar a boca.

 

Quando seus olhos se acostumaram com a escuridão e ele estava encontrando paz com a ideia de passar o resto de seus dias lá dentro, de repente, apareceu uma luz. Kyle literalmente pensou que iria cegá-lo, a forte luz que vinha do corredor, quando Marjorine abriu a porta de sua cela, mais uma vez vestida como um guarda do sexo masculino. Kyle percebeu como ela caminhava sem jeito quando ela usava aquela armadura pesada, e em qualquer outra situação, a cena o teria feito sorrir. Mas ele não conseguiu encontrar uma forma de fazê-lo quando Marjorine ordenou aos sussurros nervosos que ele deveria segui-la em cerca de dez minutos. Ela lhe disse que tinha lançado um feitiço em cada guarda da ala B, a mesma ala que Kyle deveria cruzar até que chegasse à enorme porta dupla verde que dava para o quarto da princesa. Ela tinha algo importante a fazer e pensou que seria mais rápido e mais seguro se Kyle fosse sozinho. Ela deu-lhe roupas novas e pediu quea aguardasse alguns minutos para que tivesse tempo suficiente para verificar se todos estavam realmente dormindo.

 

No entanto, Kyle sabia que seu coração estava acelerado e que estava morrendo de medo de ser pego. Seria injusto dizer que ele não tinha nada a perder; ele tinha o seu irmão mais novo, tinha Stanley, tinha seu reino e uma guerra que ainda não estava perdida. Mas por alguma razão, nada disso parecia importante o suficiente para deixá-lo aterrorizado com a possibilidade de morrer. Vestiu as roupas que Marjorine lhe dera assim que ela deixou a cela, e o algodão causava uma sensação gostosa e confortável contra sua pele ferida. Ele nunca tinha amado tanto o toque de algodão em sua vida.

 

Descalço, ele espiou para dar uma olhada no guarda aos roncos antes de dar qualquer passo à frente, pisando leve e com cuidado, como se realmente pudesse acordar o homem enfeitiçado simplesmente por pisar alto demais. Era bobagem. O homem não pareceu mover um músculo. Kyle caminhou lentamente para fora de sua cela, parando um momento em frente à porta da cela ao lado, o bloco em que Kenny tinha sido preso quando chegaram a Kupa Keep. Kyle tentou resistir à tentação de se aproximar da porta, colocando-se na ponta dos pés para ver através da pequena abertura que revelou uma sala vazia e suja. Ele não sabia porque de repente se sentiu tão decepcionado.

 

Quando o guarda adormecido se agitou, Kyle conseguiu sair de seu transe e correu.

 

Ele seguiu a primeira escada e saiu em um grande salão com piso de linóleo que refletia toda mobília, estátuas e objetos na sala. Era tão grande e tinha tantas portas que Kyle começou a ficar inquieto, sentindo-se muito exposto, como se qualquer um pudesse entrar a qualquer momento. Olhou para a escada; havia duas, uma de cada lado do salão. Marjorine lhe tinha dito para seguir a escadaria à esquerda, com o tapete vermelho. O elfo correu imediatamente para cima.

 

Ele não tinha ideia do quão neurótico Cartman poderia ser sobre sua segurança, mas a quantidade de guardas deitados no chão era intimidadora, especialmente quando ele chegou ao corredor estreito que o levaria a Ala B, de acordo com as instruções de Marjorine. Tinha que ser essa, a passagem com uma enorme estátua de leão na frente. Kyle penetrou na sala escura com passos fáceis e a adrenalina finalmente começou a atingi-lo, enquanto ele tentava encontrar espaços vazios entre os corpos no chão, fantasiando que de repente um desses homens agarraria seu tornozelo. Foi um momento terrível para duvidar das palavras de Marjorine, embora ele ainda não entendesse por que ela o ajudaria para começo de conversa. Aquele corredor era mais longo do que Kyle esperava. Ele podia sentir aqueles homens humanos respirando como animais selvagens, como se ele tivesse acabado de entrar numa cova de leões, ou dragões, como contava uma das histórias de seu povo.

 

Mas ele saiu do outro lado, vivo e bem, ou tão bem quanto era possível estar em uma situação como essa. A camada fina de cabelo que cobria suas pernas se arrepiou, talvez por causa do terrível frio que surgiu sob o seu manto. A princesa tinha lhe dado uma túnica longa com nada para colocar por baixo, mas o material era muito mais espesso do que aquele que estava usando durante as últimas semanas. A luz fraca das tochas fazia as marcas em sua pele mais visíveis, e elas estavam mais feias do que ele imaginava, mas não havia tempo para parar e analisar essas coisas. Ele começou a andar mais rápido. Por um tempo, não havia guardas à vista, enquanto corria pelo corredor que tinha enormes pinturas do rei humano ao longo de ambas as paredes, uma mais majestosas do que a anterior. O tapete era macio e gostoso sob os pés de Kyle.

 

Havia a porta verde. Ele estava quase lá. Kyle sabia que não estaria totalmente seguro uma vez que adentrasse aquele quarto, ainda havia um milhão de coisas que poderiam dar errado, mas ele precisava de uma vitória. Uma pequena vitória, algo, qualquer coisa que pudesse comemorar, ele precisava tanto.

 

Ele tinha feito tudo Marjorine lhe disse para fazer. Tudo o que ele era suposto. Ele era rápido, silencioso e atento; ele seguiu o caminho certo e não deixe que ninguém vê-lo. E ele estava quase lá.

 

Mas Baahir veio do nada. E assim que Kyle parou diante da porta dupla verde, estendendo a mão para a maçaneta, os enormes braços com os quais ele estava tão familiarizado, que agora pareciam duros como um tijolo, agarraram-no bruscamente por trás. Não houve tempo para reagir. Kyle foi empurrado contra o homem que parecia alto como uma parede, a mão forte de Baahir cobrindo a boca e nariz ao ponto de ele pensar que não seria capaz de respirar de novo, e, naquele momento, Kyle percebeu o quanto ainda tinha a perder.

 

A respiração de Baahir foi intensa contra seu ouvido, sua voz rouca sussurrando em um tom quase suave:

 

-Aí está você.

* * *

Eram doze fileiras de exatamente oitenta elfos em cada, todos trajando armaduras de madeira esculpida com um círculo e uma rosa no centro, cujas ramificações dos galhos espinhosos se atrelavam ao círculo. Todos usavam elmos, a única parte de seu traje que era feita de ferro, pois os elfos não gostavam do peso das armaduras. Eram velozes, leves, ágeis. Os trinta últimos elfos de cada fileira eram os arqueiros, que seguravam os arcos cuidadosamente talhados nos desenhos tribais do povo antigo, uma belíssima sequência de curvas que contornava a madeira toda de cada arco como o movimento de uma planta trepadeira. As flechas eram guardadas nas costas de cada soldado, a grande maioria com os cabelos lisos e longos, como era hábito dos soldados élficos, precisamente o oposto dos soldados humanos. Isso tornava a identificação em campo de batalha muito mais fácil, embora talvez esse não fosse o motivo pelo qual os soldados elfos não cortavam seus cabelos: era o símbolo de sua força. Os próximos trinta homens de cada fileira lutavam com suas lanças e escudos artesanais, e batiam-nas com força no chão enquanto emitiam o grito de guerra ao sinal do general. As novecentos e sessenta vozes ecoaram a céu aberto, um céu esverdeado e azul que só acontecia no inverno, com um horizonte se desmanchando em um azul celeste comum dos dias de sol. Não era um dia de sol.

Os vinte primeiros homens de cada fileira estavam montados em cavalos e guardavam suas espadas em suas bainhas. Eram os únicos que tinham suas cabeças cobertas por mantos vermelhos, os pescoços envoltos por lenços verdes, o brasão da coroa estampado em seus peitorais. O mesmo brasão estampado no peito de Stanley Marsh, à frente de todo o seu exército, encarando-os de frente. Estaria mentindo se dissesse que conhecia cada um daqueles rostos, mas era como se pudesse visualizá-los um por um. Stan nunca foi muito bom com palavras, nunca teve muito gosto ou interesse por elas, mas era outra história quando estava diante do seu exército. Naquela madrugada em especial, no frio cortante, diante das doze fileiras de elfos imponentes antes mesmo do nascer do sol, as palavras ardiam em sua garganta como refluxo.

Gregory estava a aproximadamente três metros dele, sobre seu alazão dourado, o rosto congelado em uma expressão rígida. Ofereceu-o um olhar breve de encorajamento, e Stan deu início:

-Meus amigos. – Fez uma breve pausa para lamber os lábios rachados. – Não vou lhes pedir que não temam. Não tenho esse direito. Pois em tempos negros, o medo parece ser sua única companhia. Medo de falhar com seus irmãos, medo de falhar consigo mesmo, medo da morte. Não há nada de errado em sentir medo, contanto que ele não vença a indignação, a fúria, a coragem que trouxe cada um de vocês até aqui. Vocês não são ordinários, são os elfos mais valentes que existem. São bons de coração, justos, verdadeiros, como seus votos afirmam, e algo lhes foi tirado. Aquele que lhes consagrou com os títulos nobres que hoje carregam, aquele que não usa vocês, seus soldados, como marionetes. Aquele que manteve a paz em nosso reino, mesmo no período mais obscuro, e que visitou cada ritual de passagem dos seus companheiros de guerra que foram perdidos pelo caminho. Aquele que mantém suas famílias seguras, sua comida na mesa, que cuida de seu povo sem fazer diferença entre o camponês e o nobre.

Os olhos de Stan percorriam os diferentes semblantes, toda a variedade de cores de pele e cabelos e olhos, todos os formatos de nariz, boca e maxilar, passando do elfo mais alto ao mais baixo, analisando até mesmo os animais sobre os quais eles montavam. Um dos cavaleiros tinha os olhos marejados, franzindo levemente o nariz como se sentisse dor, como se tentasse conter o choro, mas uma lágrima já descia correndo pela bochecha. Stan lembrar-se-ia de dizer a ele, mais tarde, que não havia vergonha em chorar.

Respirou fundo.

-Os humanos acreditam que têm vantagem sobre nós. Aproveitaram-se da nossa natureza compreensiva para tentar desestruturar nosso reino, mas não somos feitos somente de um rei. Kyle sempre nos lembrou disso. Nós somos o reino. Cada um de vocês é o reino. E esse reino não será destruído e não cederá a chantagem alguma, não é dessa forma que nós lutamos. Mostraremos a eles. – O som metálico da espada de Stan pôde ser ouvido a certa distância quando ele a sacou da bainha e ergueu aos ares com orgulho, fazendo com que o cavalo de Gregory tentasse dar um passo para trás, mas o loiro segurou firme nas rédeas do animal. – Estão me ouvindo?!

O grito de guerra estourou, novecentas e sessenta vozes em coro, assustando os pássaros da floresta.

-Os humanos não tomarão suas vidas. Eles não tomarão mais nada de nós.

Novecentas e sessenta vozes gritaram.

-E nós traremos nosso rei de volta para casa.

Novecentas e sessenta e uma vozes gritaram, pois Gregory se juntara ao coro.

-Hoje, - Stan disse, projetando sua voz tão grave e alta que chegasse ao ouvido do último arqueiro de cada fila. – nós marchamos.  



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