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História Rex Meus - Primogênito


Escrita por: caulaty

Capítulo 22 - Primogênito


 -Eu sinto muito, Majestade. Não quis assustá-lo.

Kyle balançou a cabeça negativamente, perturbado, cobrindo os olhos com a mão para esfregá-los, massageando as têmporas. Estava sentado em uma poltrona cor de pêssego, imensa e macia, que acomodava seu corpo deliciosamente em meio às almofadas brancas de capa de seda. Colocou uma delas no colo para abraçá-la contra o tórax, engolindo seco ao descer os olhos até os pés de Baahir, que estava apoiado contra a parede no lado oposto do quarto. Baahir era um homem alto de pele escura e cabelos pretos crespos, com a mesma faixa vermelha amarrada na testa, exatamente como na noite em que visitara o quarto do rei elfo. Era um homem belo, sem dúvida alguma, especialmente aos olhos de um elfo que não estava habituado com a estrutura do rosto humano (sempre mais grosseiro, maior, mais bruto). Baahir era exótico até mesmo para um humano de Zaron, pois vinha do Oriente. Tinha os cabelos longos, os cachos descendo até o pescoço, uma barba rala na cara, um nariz protuberante e quadrado que ornava tão bem com o maxilar másculo, os lábios carnudos um tom mais acinzentado do que a pele morena dourada. Vestia o brasão da coroa de Kupa Keep no pano azul que envolvia seu tronco, e por baixo, apenas uma regata cinza chumbo que deixava seus braços fortes à mostra.

O humano levou a mão ao peito, cobrindo os leões prateados estampados na roupa, inclinando o tronco para frente.

-Eu peço perdão.

-Não há necessidade alguma disso. Eu apenas não compreendo. - Kyle respondeu em uma voz apática, erguendo os olhos ao rosto do homem. Apertou a almofada em suas mãos. - Não faz sentido. Por que me ajudaria, se foi você mesmo quem me trouxe para cá?

-Foi o rei quem o trouxe, Vossa Graça, eu apenas fui suas mãos. - Baahir explicou com sua voz baixa e rouca carregada de um sotaque pesado, limpando a garganta. - Veja, não seríamos de grande ajuda se o rei nos atirasse a uma cela também. Eu precisei obedecer.

-”Nós” quem?

-Eu e a Princesa McCormick. - O homem se desencostou da parede, mantendo a mão sobre o peitoral, alisando o tecido. Prosseguiu quase sussurrando. - Não há mais ninguém envolvido. As paredes têm ouvidos.

-E por que está fazendo isso?

O homem sorriu como se fosse óbvio.

-Pelo mesmo motivo que Kenny fez tudo o que fez.

Kyle franziu as sobrancelhas em desconfiança quando Baahir começou a se aproximar, ainda que só tenha dado três passos. Escorregou os dedos pelo tecido gelado da seda da almofada, voltando o rosto para a grande janela atrás da poltrona, através da qual era possível observar a intensidade da chuva. Um trovão estourou pelos ares, lançando um clarão pela sala que era mal iluminada pelas tochas.

-Não consigo acreditar nisso. Você permitiu que a pessoa mais inocente desse mundo fosse empalada bem na sua frente. - O elfo disse com amargura. - E Christophe... - A voz falhou. Kyle esfregou o rosto com uma das mãos. - Céus, ele está vivo? O que aconteceu com ele?

Baahir o encarava com pesar nos olhos. Encolheu os ombros, não com indiferença; genuinamente não sabia responder àquilo.

-O francês? Bem, eu não vi. Tudo o que sei é que Clyde... Não voltou. Mas não sei dizer o que houve com os dois. - Uma longa pausa. Kyle não retribuiu o olhar. - Eu sinto muito pelo seu amigo.

Estavam trancados no quarto de Lady McCormick, um ambiente bastante tranquilizador com suas cores pastéis e ornamentos femininos, panos delicados, estatuetas brancas, flores amarelas que por vez ou outra faziam Baahir espirrar. A grande lareira estava acesa, provendo calor aos seus corpos; os estalos da madeira preenchiam o silêncio quando ele se estabelecia. Ainda havia um estranhamento entre eles depois que Baahir segurou o elfo por trás e tapou sua boca para que ele não gritasse, empurrando-o para dentro do quarto, tentando explicar suas intenções. Assim que o elfo foi solto, correu para a lareira e agarrou a vara de ferro usada para mexer na lenha, apontando-a para o pescoço de Baahir, e se fosse para o inferno, arrastaria este filho da puta com ele. Estava pronto para fazer com ele o que foi feito de Kenny. Estremeceu com a lembrança da ponta da lança rasgando a carne do pescoço do loiro, todo o sangue jorrado que cobriu o rei da cabeça aos pés. Os poucos segundos que gastou se lembrando do tempo que passara agarrado ao corpo sem vida de Kenny, ambos no chão, a cabeça deitada sobre o peito do loiro na vã esperança de ouvir um batimento, foi quando Baahir aproveitou para mobilizá-lo. Foram mais de dez minutos até fazer Kyle entender que não tinha intenção de machucá-lo, pois o ruivo se debatia como se estivesse beirando um ataque psicótico. Baahir não permitiu que ele fizesse barulho. O elfo precisou ser grato por isso, no fundo, porque foram dez minutos em que esteve completamente fora de si, sem qualquer noção de quem era e onde estava.

Baahir conseguiu explicar-lhe, enquanto o segurava gentilmente contra o chão de porcelanato frio, que era um amigo. Essa foi a essência do que disse. Kyle não acreditou, assim como não acreditava na Princesa, mas que escolha tinha? Era um farrapo daquela criatura vistosa, graciosa, iluminada, respeitada que reinava de um castelo majestoso em uma floresta cheia de criaturas encantadas. Aquilo não era nada agora. Estava na terra dos humanos, onde a tortura é a lei, onde o que você ama é arrancado como a sua pele do couro e não há nada que se possa fazer a respeito. Seus pés imundos estavam descalços, as pernas desnudas, as mãos sem unhas, as costas marcadas pelos cortes profundos das chibatadas de Cartman. Teve certeza absoluta de que não foi o rei quem chicoteou suas costas – estava vendado na ocasião -, pois como Baahir colocara, havia mãos que fizessem o trabalho sujo para ele. Mas Cartman estava presente, e sua risada ecoava pelas paredes altas da catacumba e invadia os ouvidos de Kyle, penetrando o fundo do cérebro e lá continuava, dando voltas e voltas em seus ouvidos como um zumbido que não cessa. Aquela risada... Tão satisfeita, repleta de deleite, alegre, até mesmo. Era um prazer quase sexual para Eric Cartman, isso podia ser percebido em sua gargalhada.

Kyle fungou, algo que fazia muito nas últimas semanas. Talvez tivesse contraído alguma doença pulmonar. Abaixou a cabeça, percorrendo a mão pelo topo da cabeça, sentindo os imundos cabelos ruivos que caíam sem força, sem vida, com falhas de alguns tufos que haviam sido arrancados pela raiz. Eram tão diferentes dos cachos laranja-dourados que brilhavam como metal ao sol um dia, contrastando com as bochechas que já foram rosadas, os dentes que já foram brancos. Era tão fácil se esquecer quem se é em dadas condições.

Poucos minutos depois, com os dois homens mergulhados em silêncio e sem trocar olhares – Baahir apenas fazia guarda na porta, de braços cruzados, pois sua tarefa era sacar o facão preso na cintura para qualquer criatura que atravessasse aquela entrada -, Marjorine anunciou sua chegada com um assobio antes de girar a maçaneta. Não estava mais vestida como um rapaz, mas assemelhava-se mais a uma camponesa pobre e feia, com os longos cabelos dourados presos em um coque no topo da cabeça, o vestido azul muito simples, com apenas alguns detalhes modestos de renda acinzentada, o rosto sem qualquer tipo de maquiagem, nenhum enfeite. Também não parecia um homem de vestido, talvez porque realmente não fosse um homem, apenas uma mulher que nascera no corpo errado.

Mas seu sorriso brilhou na escuridão do quarto.

-Você conseguiu. - Disse junto a um suspiro, unido as mãos.

Kyle apenas a encarou sem expressão, observando como Baahir levava a mão à cintura de Marjorine, o olhar que os dois humanos trocaram. E compreendeu.

-Vamos. - Ela sussurrou, voltando-se ao elfo. - Está na hora.


 

* * *

A floresta era escura e a chuva era cruel. As três sombras atravessavam o jardim coberto às pressas, Marjorine alguns passos na frente, segurando um saco de pano contra o peito, seu vestido esvoaçante sendo erguido pelo vento, seguindo-a como uma capa. Olhava para trás de vez em quando, como Baahir estava sempre ao lado de Kyle, pois a impressão era de que suas pernas finas quebrariam a qualquer instante caso fossem forçadas demais. Podiam ouvir ruídos, barulhos de alguma movimentação distante, mas todos estavam na parte interna por causa da chuva torrencial que castigava Kupa Keep. Quando começaram a se aproximar da floresta, os pés descalços de Kyle afundaram tanto na lama que ele mal pôde correr.

-Ande, dê seus sapatos a ele. - Marjorine gritou para Baahir sob o barulho estrondoso da chuva que agora caía diretamente sobre eles, fazendo a pele exposta formigar.

Baahir obedeceu imediatamente. Os sapatos eram grandes demais para os pés de Kyle, não facilitando muito a caminhada, mas ele não estava disposto a reclamar. Mal podia absorver o que estava acontecendo; a mera sensação da chuva em sua pele, o vento gelado soprando, os sons e aromas da floresta que apenas os elfos sabiam reconhecer, a terra molhada, a lua, a liberdade. Ele podia correr, e isso era suficiente. Havia um sorriso fraco em seu rosto que superava o pavor, a expectativa, a possibilidade do que viria depois. Não importava. Porque agora, ele estava em uma floresta, ele podia correr. Isso bastava.

Houve um momento em que Baahir o segurou pelo braço, quando os joelhos de Kyle falharam diante da empolgação. Ele estava fraco. Havia se esquecido da fome, da dor corrosiva no estômago, apenas por conta daquele sopro de liberdade. Por alguns segundos, derrubou todas as barreiras cuidadosamente construídas para lidar com aquelas duas pessoas que, por qualquer motivo que fosse, pareciam querer ajudá-lo. Apenas quando alcançaram o destino no íntimo da floresta é que Kyle se deu conta de onde estava. Havia dois cavalos amarrados em uma árvore, selados e prontos para sair, um deles com as patas tão imundas de lama quanto os pés de Kyle. As imensas folhas e os galhos grossos das árvores protegiam os animais da chuva, mas ainda sim, estavam molhados.

-Espere. - Kyle disse, aproximando-se da princesa para que ela pudesse ouvi-lo sob o despejar da chuva. - Para onde nós vamos?

Marjorine o olhou de perto, a água escorrendo pelo seu rosto, os cabelos presos encharcados pingando ininterruptamente, com alguns fios loiros escapando do coque e descendo ondulados, colando na pele úmida. Seus olhos azuis cintilavam, mesmo que no escuro, exatamente como os de Kenny.

-Os elfos estão em viagem para a batalha. Devem chegar ao Monte do Tigre em uma semana, é para lá que Baahir vai levá-lo.

-Então por que você está vindo também?

Ela sorriu.

-Vamos fazer uma pequena parada antes.


 

* * *


 

A velha casa dos McCormick era um lugar esquecido na beirada da terra, uma pequena residência localizada na mais miserável rua de Kupa Keep, onde nenhum forasteiro se atrevia a pisar. Butters não era nenhum forasteiro, mas Marjorine era, em partes. É por isso que ela sempre escolhia o meio da noite como o melhor momento para voltar àquela rua sempre que fosse necessário (ou caso simplesmente sentisse vontade de fazê-lo). Era difícil ver as casas da vizinhança sob tanta chuva, mas os olhos de Kyle eram muito mais precisos em comparação aos dos humanos e captavam o suficiente para entender que a maioria daquelas moradas já estava caindo aos pedaços. Ele não sabia exatamente o que os três estavam fazendo em um lugar como aquele.

Foi só quando eles se aproximaram da casa certa - verde, minúscula, abandonada - que Kyle reconheceu a descrição dada por Kenny quando costumavam passar horas deitados na cama conversando intimidades. O loiro lhe contara sobre a árvore fina com um balanço de pneu, a grama feia, agora misturada com lama, onde ele gostava de rolar com Kevin e fingir que eles eram soldados em uma trincheira. Era a casa onde Kenny crescera. Kyle parou de andar antes que eles passassem do portão destruído, olhando fixamente para a construção por cinco segundos ou menos, conseguindo sair de seu transe para seguir atrás Marjorine e seu amado Baahir.

Eles entraram. Estava escuro e frio, mas não estar mais sob a chuva forte foi um alívio, embora não houvesse nada de acolhedor sobre aquele lugar. O trovão tornou o cômodo visível por uma fração de segundo, revelando poucos móveis cobertos por lençois que outrora tinham sido brancos e tons de poeira que deixavam claro: ninguém habitava aquela casa há anos. Se não estivesse assim tão escuro, Kyle provavelmente já teria notado o prato de comida na mesa de café e o par de sapatos sujos logo ao lado da porta que diziam o contrário. Não demorou muito, porém, para sentir o cheiro familiar. O cheiro de Kenny. Aquele cheiro doce entre o pescoço e o ombro, onde Kyle escondia seu rosto por horas em tempos melhores.

- Vossa Graça. - A princesa chamava no escuro, caminhando em direção à cozinha para pegar uma vela. Ela se movia pelo cômodo como se estivesse claro feito o dia, fazendo com que Kyle se perguntasse se ela já tinha estado lá atrás depois de se tornar um membro da realeza. Kenny lhe tinha dito que não: em sua versão dos fatos, Marjorine tinha abandonado sua família para servir a sede de Cartman por sangue. Mas agora, Kyle tinha aquilo como uma das muitas mentiras contadas pelo loiro quando estavam juntos. - Temos que conversar. - Ela finalmente disse, antes de entrar na cozinha.

Baahir colocou as mãos nas costas e esperou em silêncio, ao lado da porta da frente. Ele lembrava um observador atento, muito parecido com Stan como seu guardião pessoal a maior parte de sua vida. O rei chegou à conclusão – um tanto quanto óbvia - que Baahir estava loucamente apaixonado e isso tinha afetado seu melhor julgamento das coisas. A visão de Kyle agora estava se acostumando com a escuridão, pelo menos o suficiente para ver olhos negros imperdoáveis do outro homem estudando-o. O elfo, no entanto, não se importou. Ele estava muito distraído procurando por algo; uma pintura de família, um brinquedo velho, qualquer coisa que trouxesse o rosto de Kenny de volta à sua mente. Kyle tinha pavor de esquecer aquele belo rosto.

Logo, Marjorine surgiu com uma vela acesa e seu brilho laranja banhou o lugar quase vazio. Nada de novo foi revelado.

- Por que diabos estamos aqui? - O rei finalmente perguntou.

- Eu sinto muito, benzinho. Eu sei que você deve ter muitas perguntas. Vamos... - Ela descansou a vela sobre a mesa de centro, ao lado do prato cheio de migalhas que ninguém pareceu perceber. Em seguida, ela se sentou no sofá coberto e usou um lenço de bolso delicado para secar seus braços. Marjorine sempre carregava um lencinho, um hábito que herdou de Eric Cartman como seu mentor. Virando-se para Baahir, ela prosseguiu. - Eu acho que ele está dormindo. Você pode ir buscá-lo?

Sem pestanejar, o homem obedeceu seu pedido, caminhando para o longo corredor, desaparecendo da vista deles em alguns segundos.

-Quem? - Kyle perguntou imediatamente, inquieto e irritado. Estar lá, por si, era difícil, mas a silhueta de Marjorine iluminada pela vela quase o deixou insano; A luz era fraca, brilhando em seu rosto apenas o suficiente para deixá-la idêntica ao seu irmão. - Por que diabos você quis voltar aqui? Isso não te mata? Ele era seu... Pelo amor dos deuses.

Ela observou-o por um momento.

- Você está tremendo. - Marjorine respondeu gentilmente. E era verdade, ele estava tremendo, mais do que tinha percebido em meio a todo o caos interno. - Venha cá, vamos aquecer suas mãos.

- Não! Foda-se, apenas... Diga-me o que está acontecendo aqui. Por Favor.

Ela olhou para o elfo por um longo tempo, não se parecendo mais com Kenny, mas sim como uma mulher, como se genuinamente tivesse nascido uma. Marjorine era saudável e bonita, nada como o fantasma que Kyle estava vendo há semanas. Ele entreabriu os lábios para pedir desculpas por sua grosseria, mas Lady McCormick falou primeiro, baixando os olhos para a pequena chama da vela à sua frente.

- É um fantástico e vasto mundo lá fora, Vossa Graça, cheio de coisas que nós ainda não podemos inteiramente compreender. - Ela fez uma pausa. - O que eu quero dizer é... Como você poderia explicar o fogo para alguém que nunca o tenha visto, que não entende isso? Como poderia fazê-lo sem ser chamado insano? Você teria que mostrar o fogo a eles para que acreditassem em você.

- O que você tem medo de me contar?

Marjorine finalmente levantou o olhar para ele. Levou algum tempo, mas o sorriso finalmente chegou, como de costume.

- Alguém aqui realmente sentiu sua falta.

Não é tão difícil adivinhar o que aconteceu a seguir, não é?

O homem loiro emergiu do corredor. O rei estava de costas para a porta, mas o cheiro veio mais forte agora, intoxicando suas narinas. "Então é isso", o rei pensou consigo mesmo: "Eu não aguentei. Minha mente não aguentou e agora eu fiquei louco, eu fiquei completamente louco." Porque ele sabia que o loiro estava a poucos passos atrás dele, não precisava se virar para saber disso, mas tinha plena consciência também de que aquilo não era real, não podia ser, porque Kenny estava morto. Ele estava morto. Ele estava...

Em seguida, o homem loiro disse seu nome, evocando o rei de uma forma tão firme que não tinha nada de familiar com a maneira suave que sempre fez. Ou que costumava fazer, quando estava vivo. O chamado saiu pesado e cru, mas parecia distante aos ouvidos do rei, como uma antiga canção de sua infância.

Ele virou-se para seguir o som daquela voz. E foi surpreendentemente fácil para Kyle ceder, deixar para trás o seu reino, a sua família, a guerra e aquele cetro maldito, tudo o que o manteve vivo e lutando até o momento, mesmo quando tudo o que ele queria era lavar as mãos e se deixar levar por sua própria mente. Kyle lutou para manter a sanidade, porque seu povo precisava dele. Ele se recusou a morrer naquela cela, nos termos de Cartman, recusou-se a nunca mais ver seu irmão mais novo outra vez. Mas agora, era precisamente o que o rei pretendia fazer; era tudo real demais. Aquele cheiro, a voz, o calor, era tudo muito real para que ele pudesse recusar. Se o homem loiro estivesse apenas dentro de sua cabeça, Kyle não daria a mínima.

Foi só quando Kenny passou os braços ao redor do elfo, segurando-o com tanta força que ele não conseguia respirar, que Kyle percebeu: absolutamente não estava louco. Sua mente estava exatamente onde deveria estar. Levantando o queixo, de frente para aqueles olhos azuis terrivelmente próximos, Kyle não tinha dúvidas: o homem loiro estava vivo.

Kyle tinha sonhado com esse momento por tanto tempo, mesmo que nunca tivesse realmente acreditado que isso iria acontecer – o que talvez provasse que ele não tinha perdido completamente a sanidade - mas era como se ele tivesse vivido aquela cena milhares de vezes. A primeira coisa que fazia quando pensava que estivesse vendo Kenny era erguer a mão para colocá-la no rosto do loiro, apenas para se certificar de que ele estava realmente lá, respirando e inteiro. Ele nunca parecia real, mas também nunca parecia irreal. Kyle estava sempre nesse limbo que nunca queria deixar para trás.

Dessa vez, pareceu real. Kenny fechou os olhos ao toque, algo que ele nunca tinha feito antes nas fantasias do elfo. O Kenny que vivia no seu cérebro nunca tinha realmente respondido às suas ações, ao contrário deste, este homem feito de carne e osso que o segurou com força, emanando calor, piscando, roçando sua pele grossa contra a palma da mão de Kyle, apertando as próprias mãos nas costas dele. O loiro sussurrou algo em seu ouvido, algo que ele não entendeu, mas haveria muito tempo para conversar mais tarde. Tudo o que importava era o coração pulsante de Kenny, o fluxo sanguíneo corrente e o abraço apertado que ele havia desejado tanto que quase o matou. Foi demorado. Eles não faziam ideia de quanto tempo passaram assim, mas foi tempo suficiente para Marjorine fazer um sinal a Baahir, puxando-o pelo pulso para que fossem ao outro cômodo, deixando a vela para trás para que Kyle e Kenny pudessem ver um ao outro, como se tal coisa fosse necessária. Eles não precisavam da luz.

Quando separaram o abraço, ainda enroscados e extremamente próximos, Kyle deixou a mão cética na bochecha macia, deslizando-a para baixo até o pescoço do loiro para sentir a região que tinha sido destruída quando o viu pela última vez. Kyle se lembrava tão bem da carne dilacerada e do banho de sangue que o cobria quando os olhos de Kenny perderam toda a luz.

- Eu te segurei... - O elfo sussurrou. - Eu segurei o seu cadáver nos meus braços por horas. Você estava morto. Eu vi... Eu...

Kenny encolheu o nariz pela dor, balançando a cabeça como se para confirmar que ele estava certo, que tudo isso tinha acontecido e ele ainda estava ali de pé. "Sim, sim você viu", disse a ele em sua mente. Pela primeira vez, Kyle viu aqueles olhos azuis enormes umedecerem, cheios de lágrimas brilhando sob a luz fraca da vela, mas ele não estava chorando, não propriamente. Talvez seus tenham ficado irritados depois de passar tanto tempo na escuridão, longe do calor de outro. Agora, Kyle poderia dar uma boa olhada no homem loiro a certa distância, capaz de se concentrar na expressão impressa em seu rosto. Ele parecia cansado, envelhecido, com profundas olheiras sob seus olhos avermelhados. Kenny não usava camisa, seu grande peito nu estava quente e reconfortante, mas ele era um resquício do homem que costumava ser, assim como o próprio Kyle. Era perturbador perceber que seu brilho dourado infantil tinha desaparecido. Ele sempre esteve lá, mesmo quando Kenny estava trancado no topo da torre élfica, o jovem doce espírito sempre esteve lá para suavizar tudo. Era aquela atitude que assegurava a todos ao redor dele que as coisas ficariam bem no final.

- Isso é Deus? - Perguntou Kyle, quase chorando de admiração e medo. - O seu... Deus vaidoso, vingativo, cruel, impiedoso. O Deus humano, Ele é real?

Pela primeira vez desde que se entreolharam na escura sala de estar, Kenny estava realmente sorrindo. Não era como o seu sorriso habitual, no entanto. Foi um sorriso contido, extremamente triste, mas ainda sim verdadeiro.

- Kyle... Isso não é obra de Deus. Se iisso prova qualquer coisa, é exatamente o contrário.

- Eu não entendo.

Kenny também não podia dizer que compreendia inteiramente. Era difícil colocar em palavras o que tinha acontecido antes de ele acordar no meio da floresta, nu e coberto de lama. Fosse o que fosse, só Kenny sabia que aquilo era uma parte dele desde que podia se lembrar, mas não havia acontecido em anos e ele não tinha ideia de se poderia acontecer novamente. Ele estava com medo de morrer, medo de sumir para sempre, de desaparecimento da face da terra e ser esquecido. Assim como todo mundo. Ironicamente, ao contrário de todos os outros, Kenny também tinha medo de nunca ser capaz de morrer. Gostava de pensar - em um ato estúpido de auto-conforto - que ele só voltaria enquanto ainda tivesse algo para fazer na terra.

- Eu quero explicar para você... Porra, eu senti sua falta pra caralho. - O loiro pegou as mãos de Kyle nas dele, olhando para elas, incapaz de ver como estavam machucadas. Kyle se encolheu, parecendo absolutamente aterrorizado. - Eu queria tanto te ver.

Kyle não tinha certeza de como responder a essas justificativas vazias, principalmente porque elas não eram necessárias. O elfo se livrou do forte aperto de Kenny e levou as duas mãos para seu rosto enquanto Kenny falava nervosamente, interrompendo-o pressionando um beijo longo no canto da sua boca. O loiro não conseguiu respirar por um momento ou dois, tomado pela esmagadora realização do que estava prestes a acontecer, do que ele precisava fazer em seguida. Kenny tinha passado infernos suficientes para compreender quaos medidas eram necessárias. Ele segurou a cabeça de Kyle entre as mãos por um longo momento, esfregando a ponta do seu nariz contra o do elfo, pressionando os dedos nas laterais do pescoço, desejando nunca soltá-lo novamente.

Baahir timidamente parou na porta do cozinha, segurando outra vela na mão, iluminando suas feições severas. Seus olhos encontraram os de Kenny, carregados de culpa por interromper esse momento necessitado, mas era hora de ir. Afastar suas mãos do corpo de Kyle naquele segundo foi provavelmente a coisa mais difícil Kenny já teve que fazer em toda a sua vida. Umedeceu os lábios, olhando para baixo, para aquelas duas esmeraldas, tenso e ansioso ao mesmo tempo.

- Você vem conosco, não é? - Kyle perguntou, como se já soubesse a resposta. E, naturalmente, sabia.

- Meu irmão ainda está em Kupa Keep.

- Seu irmão? - O rei questionou em um tom que o informava que aquela não era a melhor explicação que ele poderia ter oferecido.

A princesa emergiu da escuridão quando ouviu as vozes mais altas, já não mais os sussurros desesperados presos entre realidade e fantasia. Eles tiveram que superar isso. Ela abraçou Baahir por trás, descansando o queixo no ombro dele, acariciando seu peito enquanto observava a cena como uma invasora.

- Por favor. - Kenny implorou. - Só dê o fora daqui o mais rápido possível, Cartman vai saber que você sumiu em uma hora ou duas, no máximo. Ele vai saber onde procurar. - Ele agarrou a mão de Kyle. O elfo estava apático demais para responder. - Esse era o plano o tempo todo.

- Você ficou doido?! Não, eu não vou te deixar. Não de novo.

- Kyle, não faça isso agora.

Foi impressionante a rapidez com que Kyle conseguiu absorver a coisa toda e ainda ter energia para discutir. Ele parecia tão destruído quanto se sentia, mas quando chegou a hora, ainda havia um brilho dentro dele que o motivou a controlar a situação, algo Kenny tinha previsto que aconteceria. Eles não deveriam perder tempo com qualquer exegese sem sentido do passado de Kenny ou por que ele era do jeito que era. Kyle estava exigindo isso dele, como era de se esperar. O que importava era que Kenny estava bem à frente dele e o elfo tinha toda intenção de mantê-lo dessa forma.

- Não! Você não entende? Quando eu pensei que você estivesse... Porra, eu queria morrer junto. Eu nunca deveria ter te jogado em uma cela como eu fiz, eu não percebi... Só os deuses sabem o que teria acontecido se...

- Ei. - O loiro interrompeu o mais suavemente possível, puxando-o mais perto para um estranho abraço transitóri. - Calma.

- Eu não posso ir sem você. - Kyle murmurou contra o braço forte e envolvente de Kenny. - Eu não vou.

- Me escuta. - Ele sussurrou, baixo o suficiente para que os outros dois não pudessem ouvi-lo, afastando-se um pouco para dar uma boa olhada no rosto ferido, roçando o polegar sobre os lábios rachados e secos do ruivo, tentando sorrir. Foi fácil fazê-lo quando Kenny pensou no quão belo ele era, mesmo sob essas circunstâncias horríveis. - Você vai ver Stan em breve, certo? Baahir sabe onde encontrá-los. Se alguma coisa der errado, o cara vai se jogar numa lança pra que você não se machuque, se for preciso. Ele pode te manter seguro, eu não posso.

- Se o meu exército está viajando para a batalha, Cartman não pode fazer nada com você lá. Por que diabos você vai ficar aqui? Não há nada que você possa fazer pelo Kevin.

- Há sim. Seu povo não vai me receber, Kyle, eles vão colocar uma flecha entre os meus olhos assim que me virem com você. E eles estão certos nisso, eu mereço.

- Eu vou falar com...

- Pare com isso. - O homem loiro disse com um sorriso triste esboçado nos lábios. - Sua criaturinha teimosa. Nós sempre soubemos que chegaria a isso. Você pertence à sua raça, eu pertenço à minha. Eu não vou deixar a minha família.

Marjorine queria sorrir também, mas não podia.

É engraçado como essas as coisas funcionam. Em um momento, Kyle estava ansioso para fazer qualquer coisa - para matar e morrer, se preciso fosse - para manter Kenny perto até o dia em que fosse um velho enrugado e malcheiroso demais para decidir as coisas por si mesmo. Ele queria passar o resto de sua vida com aquele homem a qualquer custo, nunca considerando o fato de que nem sabia se Kenny poderia envelhecer, ou a traição que seria à sua própria espécie. Nada disso importava. Mas agora, as coisas tinham de repente sido postas em perspectiva de novo. O êxtase foi desaparecendo, embora lentamente, mas com persistência, dizendo-lhe que era melhor ouvir o loiro.

E rezar, acima de tudo. Rezar para o Deus de Kenny, para seus próprios deuses, rezar para que Kenny voltasse para ele quando a guerra chegasse ao fim. Rezar que isso tudo não tivesse sido apenas um vislumbre criado pela sua mente destruída e solitária tentando fazê-lo sobreviver a essa experiência. Então, ele ficou na ponta dos seus dedos para pressionar seus lábios contra o homem loiro, por saudade e fúria, implorando com aquele beijo para que ele ficasse bem e voltasse quando pudesse.

Kenny sorriu quando ele se afastou, segurando a cabeça de Kyle perto dele, sussurrando:

- Além do mais... O que pode Cartman fazer? Me matar?

Não foi engraçado. Mas de alguma forma, provava que Kenny estava vivo.

* * *

Mas há ainda um terceiro homem loiro que precisamos discutir. A essa altura, você provavelmente está ficando cansado deles, mas é crucialmente importante mencionar o terceiro homem loiro em questão. Ele atravessou a velha rua Ravage em busca de uma casa com a qual você já está familiarizado. A chuva acabou mostrando alguma misericórdia e cessou a sua força, mas nunca realmente parou de cair. Dentro dessa casa, Kenny e sua irmã Marjorine sentavam no chão e compartilharam uma garrafa de Bourbon roubado que a inteligente princesa trouxe junto consigo, envolto no saco de roupas que ela tinha trazido para Kyle levar em sua viagem. O elfo tinha partido com Baahir mais de uma hora atrás e a princesa deveria estar voltando para o castelo no momento, mas já fazia muito tempo que os dois irmãos tiveram a chance de conversar sozinhos. Marjorine percebeu que eles poderiam ter um momento para celebrar o triunfo da primeira parte do seu plano.

Depois que contaram a ela sobre a morte de Kenny, Marjorine havia visitado o mesmo bosque a cada noite, esperando ele voltar. Ela não tinha qualquer dúvida de que ele retornaria. Quando eles eram crianças, tinham passado pelo susto e luto de perder Kenny inúmeras vezes, mas ele sempre se levantou vivo e bem, rindo do seu medo. Ele era apenas um menino quando descobriu que tinha um superpoder - pelo menos foi assim que Kenny denominou seu “dom” durante uma pequena parte de sua infância - que a maioria dos seres humanos não têm. Sua mãe havia se envolvido com magia negra quando ela estava grávida dele, por razões sobre as quais ela nunca falava, pois depois que Kenny nasceu, ela se tornou uma mulher do Senhor. Antes disso, Carol McCormick nunca tinha sentido a necessidade de se comprometer com a religião humana comum. Ela não acreditava em Deus. Na verdade, Carol passou a maior parte de sua vida fazendo coisas pecaminosas que a condenariam a queimar no inferno. E para ela não havia problema, já que também não acreditava no Inferno. Foi apenas quando seu segundo filho nasceu que ela encontrou a Luz, ou pelo menos era isso que ela dizia. Kenny, ao contrário, sabia que não havia nada de iluminado sobre o que aconteceu com sua mãe; que ela simplesmente perdeu a sanidade mental ao ver seu filho morrer tantas vezes e voltar são e salvo. Ficou muito pior depois de Karen foi assassinada, jamais se levantando do seu túmulo na trincheira. Carol se tornou uma mulher louca, cega pelo seu dogma.

Mas Marjorine era a única que parecia entender o que acontecia com o Kenny. Ela pensou naquilo como uma parte dele, como a cor dos olhos de alguém. É apenas a maneira que a pessoa nasceu. E a imortalidade de Kenny tornava-o diferente do resto do mundo, assim como o próprio Butters se sentia na época. Não havia ninguém como eles, por razões distintas. Butters se sentia uma menina. Kenny não podia morrer. Se eles não compreendessem um ao outro, quem mais os compreenderia? O resto do mundo parecia pensar neles como monstruosidades.

Então, ela esperou. Fazia anos desde que Kenny morrera a última vez e uma pequena parte dela estava começando a pensar que talvez tivesse acabado, que ele nunca mais retornaria de sua sepultura. Mas Kenny retornou. Ele acordou no meio da Floresta Escura de Kupa Keep, completamente nu, coberto por lama e chuva. Isso só ocorreu depois que Marjorine desistiu de esperar por ele. A Floresta Escura era onde Kenny sempre renascia, não importa onde seu corpo fosse enterrado ou o que acontecesse com ele. Kenny teve que matar um guarda por trás, sufocando-o, para roubar suas roupas e encontrar sua irmã no meio da noite. Marjorine acordou com o rosto de Kenny bem próximo dela. Chorou por 10 minutos depois que percebeu que era realmente ele. Mas não havia muito tempo para emoções, eles precisavam pensar em um plano.

O que nos traz de volta ao terceiro McCormick subindo os degraus na varanda. Ele estava com raiva. Afinal, Marjorine não era a única que estava esperando pela volta de Kenny. Ela não era a única pessoa que tinha estado lá por toda a sua infância, que sabia o que ele podia fazer.

Kevin chutou a porta aberta, emitindo um estrondo muito alto que assustou os outros dois. Marjorine imediatamente levantou-se, pôs-se de pé em frente a Kenny, que permanecia no chão segurando a garrafa de Bourbon.

- Merda. - Kenny sussurrou.

O sorriso no rosto de Kevin demonstrava um misto de alívio e maldade, ao mesmo tempo, misturados em uma expressão cansada de realização, como quando eles eram crianças brincando de esconde-esconde. Kevin estava encharcado. Agarrou o cabo da espada com sua única mão, dando uma pequena risada enquanto observava a face perturbada do seu irmão mais novo.

- Porra, Butters. Eu sabia que você era retardado, mas eu nunca pensei que fosse tanto.

Isso não estava indo de acordo com o plano.



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