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História Rex Meus - O fim da clareira


Escrita por: caulaty

Capítulo 23 - O fim da clareira


Este é o conto de três irmãos. Poderia ser um conto para crianças, uma vez que todas as histórias infantis contêm elementos que são simplesmente obscuros e profundos demais para que os pequenos compreendam. Pode-se tomar como exemplo qualquer conto de fadas; pessoas adultas sempre veem o que está entrelinhas, o conflito e a dor que passam despercebido pelos olhos inocentes. Uma criança diria que o conto de três irmãos é encantador, sobre uma linda princesa, um grande herói e um vilão perverso. O herói tinha um superpoder: ele era imortal. Ele usava seu superpoder apenas para o bem, para fazer justiça, pois nasceu muito honrado, corajoso e íntegro, ao contrário de seu irmão invejoso e maligno que também queria viver para sempre e, portanto, odiava o mais novo. E esta seria a cena do clímax quando o irmão mal, tão feio e deformado, invade o esconderijo a fim de arrastar o herói de volta para as masmorras do castelo onde o rei atroz - a quem ele servia, naturalmente, porque o rei também era maldoso - trancaria o herói para torturá-lo, apesar dos apelos da doce princesa, visto que ela inocentemente acreditava que seu irmão mais velho era um homem bom por dentro.

Mas os olhos de uma criança não podem perceber toda a verdade. Eles não vão perceber que a bela princesa é, na verdade, um menino que odeia o seu próprio corpo, uma pessoa muito melancólica que olha para si mesmo nu no espelho por horas e chora. Alguém que é constantemente abusado e empurrado porque nunca aprendeu a se defender das opressões por ser diferente e, por isso, está acostumado a ser ridicularizado por todo o seu reino. E alguém que está enlouquecendo por não poder salvar sua família, por não poder evitar que seus amados irmãos acabem se matando. Os olhos de uma criança não lhe diriam o quão desesperado e traído o irmão perverso se sente, como ele se esforça a cada segundo de cada dia, porque ele realmente acredita que os seres humanos devem lutar por sua espécie e é uma tortura para ele assistir ao seu irmão mais novo mudando de lado, ficando mais e mais distante, abandonando-o, entregando-o aos inimigos para que o mutilassem como fizeram, e agora ele precisa aprender a viver como um homem inútil para o seu trabalho, em constante dor, sem uma das mãos. Os olhos infantis não vão dizer-lhe como ele ainda está tentando salvar a irmã mais nova que ele havia perdido na guerra e como ele simplesmente não suportaria perder mais um irmão, porque ele é o filho mais velho, era seu dever protegê-los da maneira que seu pai bêbado nunca fez.

E acima de tudo, um conto de fadas nunca desconstruiria um herói. Esses tijolos não podem ser derrubados, porque tudo depende do herói para terminar bem. A verdade nua e crua é que este herói sempre foi o melhor de todos os mentirosos, sem nenhuma consideração pela moralidade, a ética ou sentimentos de outra pessoa. Ele roubava e enganava sem peso no coração. A única coisa que sempre importou para ele era a sua família, mas ele também desistiu disso quando permitiu que seu irmão fosse pego. Talvez até antes disso. E você também não saberia quanta escuridão que ele carrega dentro de si, o pouquíssimo tempo que ele dedicava a se preocupar com a própria vida depois de anos e anos sendo brutalmente assassinado (cometendo suicídio muitas dessas vezes, até mesmo quando era criança) e se lembrando cada segundo de cada morte. Era tão difícil acreditar no bem depois de enfrentar o diabo de perto.

Agora sim deve ser mais fácil compreender o conto de três irmãos.

-Kevin. - Marjorine disse lentamente, levantando as mãos como se estivesse pedindo para ele se acalmar. - O que... Como você soube?

-Pelo amor de Deus, Butters, como você acha? O seu rosto não muda só porque você não está usando um vestido. O carcereiro te reconheceu.

Não era exatamente isso o que tinha acontecido, mas resumia a história.

-Você me seguiu?

-Se eu tivesse seguido você, eu já teria pego aquele elfo viadinho maldito. Agora, onde ele está?

-Bom, aqui que não é. - Kenny disse, bêbado e zangado, levantar-se do chão. Ele teve que segurar o sofá empoeirado para conseguir se colocar de pé. - Você perdeu ele por alguns quilômetros. Ele já está longe pra caralho a essa altura.

Kevin virou a cabeça ligeiramente para o lado, estreitando os olhos em suspeita. Deu um passo à frente, lambendo os lábios devagar, olhando para os outros dois como se quisesse entender se eles estavam blefando.

-O que vocês fizeram?

-O que tinha de ser feito, Kevin. - Butters respondeu com certa agonia, muito mais nervoso do que seu outro irmão. Ele não se sentia mais como Marjorine no momento. Sentia-se como um garoto de 12 anos novamente.

-Mas caralho, vocês dois perderam completamente a merda do juízo?! Enfiaram a cabeça oca de vocês no rabo, foi isso? O que você fez para a porra do elfo? Eu não estou pra piadinha, Kenny.

Kevin estava começando a ficar nervoso agora. Ele realmente não tinha considerado que seus irmãozinhos teriam sido inconsequentes a ponto de realmente soltar o elfo. Pelo menos não sozinho. Quando Kevin colocou os olhos sobre Kenny, ficou aliviado porque isso significava que Kyle ainda estava naquela casa também. Ele estava absolutamente certo de que os dois planejavam fugir e desaparecer juntos. Não demorou muito para que Carter, o carcereiro, descobrisse que cada um dos guardas na ala B estava apagado em sono profundo. Kevin ainda estava acordado quando a coisa toda aconteceu, ele não conseguia dormir devido à dor crônica em sua mão perdida - que ele ainda podia sentir, como se estivesse sendo arrancada pouco a pouco do seu pulso – e isso tinha se tornado algo frequente para Kevin. Dormir era um luxo perdido. Havia algumas noites piores do que outras. Aquela, em particular, foi um verdadeiro inferno. Carter correu para encontrá-lo por uma razão muito simples: quando se deu de cara com Butters vestido de guarda na cela do elfo, ele imediatamente pensou que era Kenny McCormick. Nunca tinha visto a princesa sem seus vestidos, sem sua maquiagem e suas jóias. É por isso que ele não havia dito uma palavra antes daquele momento; estava amedrontado pelo desconhecido e acreditava que toda magia era magia negra. Carter era um homem extremamente religioso, que não falava muito e preferia manter suas opiniões para si mesmo. Ele era responsável por supervisionar os guardas e a maioria deles o temia, com motivos.

Carter chegou ao quarto de Kevin perturbado e confuso, relatando seu encontro com o irmão do homem, dizendo que o elfo tinha desaparecido através de forças sobrenaturais. Kevin levou algum tempo para entender. Uma parte dele pensou que talvez Kenny nunca fosse voltar, mas se o fizesse, a outra parte dele simplesmente acreditava que Kenny faria o que era melhor para ele - como de costume - e fugiria. Não fazia sentido que ele estivesse dentro de paredes do castelo, porque Kenny não era estúpido. Ele não seria pego tão facilmente, ele era um ladrão treinado. Butters, ao contrário, sempre fora o mais lento dos três.

Kevin trotou na direção de Kenny para agarrá-lo pelo colarinho com sua única mão, apontando o braço com o cotoco para o rosto de seu irmão mais novo de maneira ameaçadora.

-Você não deixaria sua puta ir sozinha, ele morreria lá fora sem ninguém. Onde diabos você está escondendo ele?!

-Solte-o, Kevin. - Butters pediu, aflito.

Mas Kenny, por outro lado, apenas sorriu. Era um sorriso doente, muito grande e cheio de satisfação. Ele estava quase rindo da cara de Kevin. Teria levado um soco se Kevin ainda tinha a mão esquerda.

-Procure, então! Pode revirar a porra da casa inteira, olhar onde caralhos você quiser. Você chegou tarde demais, Kevin.

-Por favor, pare! - Butters soou mais como Marjorine novamente, mais seguro de suas próprias palavras. Mas continuou a ser ignorado.

-Você tem alguma ideia do que Cartman vai fazer com você quando eu levar o seu rabo de volta pra casa?

Agora Marjorine estava verdadeiramente irritada. Ela agarrou a parte de trás da camisa de Kevin para puxá-lo, afastando-o de Kenny antes que qualquer um deles fizesse algo imprudente. Não foi uma tarefa tão difícil assim.

-Por que diabos você está defendendo esse filho da puta?! - Kevin gritou, virando-se para olhá-la. Pela primeira vez, havia alguma fragilidade em seu rosto e Marjorine pôde percebê-la, mas era sutil demais, encoberta pelo ódio. - Ele não dá a mínima pra nós. Você é retardada? Esqueceu que ele está lutando pelo outro lado?! Ele nos abandonou, Butters, a você e a mim e ao seu precioso povo também. - Kevin levantou o braço mutilado em frente ao seu rosto para expor a mão que faltava. - Essa porra aqui é culpa dele!

-Eu sei. - Ela segurou-o suavemente pelo braço. Sua voz era calma e macia, não muito mais que um sussurro. - Eu sei, Kevin. Mas ele é nosso irmão. E o nosso rei não está do lado do povo, você sabe disso.

-Isso é uma porra de uma guerra, Butters! Os elfos não estão lutando contra o Cartman, eles estão lutando contra os humanos. Eles vão matar nossos soldados e nós vamos matar os deles. É assim que essa merda funciona, você não pode ceder. Você não pode estar no lado humano e agir como se o seu rei fosse um maldito elfo!

-Eu sinto muito, Kevin. Eu realmente sinto. - Kenny interveio. - Eu só... Eu sinto muito por ter te entregado. Eu já te disse...

-Não. Nem começa com essa merda. Você me convenceu a não dizer que você tava trabalhando pro Cartman porque você tinha que estar livre para poder me tirar daquela porra de cela. E então você mesmo foi correndo contar tudo para que a sua vadia ficasse com peninha e você pudesse ser a porra de um mártir. No que dependesse de você, eu estaria preso apodrecendo até agora. Você não é meu irmão, você não é nada para mim.

-Qual é, não...

Kenny não conseguiu terminar a frase antes de Kevin pegar a garrafa no chão e usá-la para golpeá-lo com força na cabeça, quebrando-a, abrindo um corte no couro cabeludo e fazendo com que seu irmão caísse inconsciente. Marjorine gritou.

-O que você está fazendo?!

-Vocês dois querem que o Cartman mate vocês? Porque é isso que vai acontecer. Agora, eu não dou a mínima para ele, mas eu não vou deixar que ele te arraste pra esse buraco também.


 

* * *


 

O acampamento de guerra dos elfos tinha uma aspecto em particular que era diferente de todos os outros acampamentos de guerra: havia sempre alguém cantando. Elfos geralmente tinham adorável vozes, mas esse não era o real motivo pelo qual desenvolveram o hábito de cantar. A guerra não era parte de sua natureza, eles eram criaturas que normalmente não vivem perto de outras espécies e não tinha nenhuma razão para lutar entre si. Os elfos de Zaron, por outro lado, estiveram envolvidos em guerras desde o início dos tempos e acreditavam que as canções manteriam fastados os espíritos das trevas, pelo menos quando tudo começou. Não era uma crença literal para a maioria dos elfos atuais, mas cantar fazia com que eles se sentissem perto de casa. A noite estava linda, o céu estava claro e brilhante por causa das infinitas estrelas reluzindo sobre as tendas. Havia uma fogueira para aquecer aqueles que ainda não estavam dormindo e o fogo dançava tão maravilhosamente laranja, a madeira estalando de vez em quando conforme queimava. Wendy estava sentada em um toco próximo ao fogo, com as mãos sobre os joelhos, com seu longo cabelo preto solto, liso e brilhante. Sua voz era doce, misturada tão bem com o tom áspero e impecável de Gregory. Era verdade que os dois nem sempre se davam bem, mas quando se tratava de cantarem juntos, era como se tivessem sido feitos um para o outro.


 

There are loved ones in the glory
Whose dear forms you often miss
When you close your earthly story
Will you join them in their bliss?


 

Havia cerca de cinco ou seis soldados ouvindo, mas um deles estava deitado na grama com os olhos fechados, quase adormecido. Stan tocava banjo, produzindo o som mais suave na terra, com um sorriso triste no rosto que combinava perfeitamente com a música. Os últimos dias tinham sido difíceis, repletos de chuva e de medo. Naquela noite, o céu tinha finalmente clareado um pouco, dando ao exército uma faísca de que dias melhores estavam por vir.

Ike se sentou longe do pequeno grupo, recostando-se em uma árvore. Ele observava Terrance e Phillip enquanto os dois dançavam com os olhos fechados em movimentos ridiculamente desajeitados que nada tinham a ver com o ritmo que Stanley tocava. O menino estava quase sorrindo para aquela cena. Ele se percebeu fascinado pelos gêmeos de uma maneira curiosa. Phillip carregava algo em seus braços, algo que merece atenção.


 

In the joyous days of childhood
Oft they told of wondrous love
Pointed to the dying saviour
Now they dwell with him above

Will the circle be unbroken
By and by, by and by?
Is a better home awaiting
In the sky, in the sky?


 

Afinal, tudo o que tinha acontecido ao longo dos últimos meses se desenrolou em torno do chamado cetro da verdade.

Ike sabia que a o cetro era mantido em uma caverna. A Caverna da Boa Vontade. Era a mais bela caverna de Zaron, mas pouquíssimas pessoas sabiam sobre ela, visto que era muito bem escondida. Você teria que atravessar uma velha ponte longa que ligava uma montanha à outra. No meio, havia um abismo. Ike teve de cruzar essa ponte com as duas criaturas mais estranhas que ele já conheceu, o que piorava substancialmente o quadro geral. Mas no final das contas, ele ficou grato por Terrance e Phillip estarem apavorados com a altura, pois assim teve que se concentrar em garantir que os dois chegaram ao outro lado. Ele não podia ter medo. Então, não teve.

Quando eles estavam andando através daquela caverna horrivelmente escura, o medo do Ike finalmente começou a se manifestar. Sua família o havia preparado para isso. Kyle descreveu o caminho para ele anos antes, portanto, ele não estava totalmente surpreso com o que encontrou. Mas os gêmeos nervosamente balbuciando e o tempo de caminhada no completo breu, sem enxergar qualquer coisa à sua frente, estava começando a dar nos seus nervos.

Já haviam lhe contou ao longo de toda a sua vida que o poder do cetro podia ser sentido a quilômetros e que poderia fazer qualquer um esquecer seu próprio nome, todas as preocupações, cada trauma que um indivíduo sofreu simplesmente desapareceria diante da energia do cetro. Era verdade. Quando Ike começou a sentir a sua presença, foi dominado por uma gigantesca e inexplicável calma. Tudo ficaria bem, ele só sabia disso. Os gêmeos provavelmente tinha sentido muito antes dele, porque há algum tempo haviam se calado de repente. Quando seus olhos se acostumaram com o escuro, Ike notou que Terrance carregava Phillip em suas costas. Isso o fez sentir saudade de Kyle.

Agora, de volta ao acampamento, Ike assistia aos dois gêmeos dançando alegremente enquanto Phillip segurava o cetro em seus braços, envolto por um cobertor azul como se fosse um bebê. Desde que recuperaram aquele cetro maldito, ele não o largou nem mesmo por um minuto.

-Eles são esquisitos pra cacete. - Christophe observou, sentando-se ao lado do jovem garoto, gemendo cansado. E ele realmente deveria estar exausto, Ike pensava. - Eu fiz um deles chorar hoje à tarde. Foi lindo.

-E como foi isso?

-O idiota loiro ficou me pentelhando com uma merdinha de um galho qualquer, fingindo ser algum tipo babaca de feiticeiro das galáxias ou alguma merda do gênero. Então, eu quebrei o galhinho dele e disse que faria o mesmo com as pernas dele se não me deixasse em paz.

Ike finalmente riu, algo que ele nem sabia que ainda se lembrava de como fazer. Christophe percebeu isso; como a risada do rapaz era deliciosamente tímida. Isso o fez sorrir, algo que também não acontecia com muita frequência, mesmo em circunstâncias normais.

Os gêmeos começaram a brigar quando Terrance perguntou se podia segurar o cetro por um tempo (eles tinham repetido essa briga o dia todo, a dinâmica de Terrance pedir para segurar o cetro e Phillip se aborrecer). Mas o único som que tomava conta do ambiente era a voz serena de Wendy, lenta e melancólica, penetrando seus crânios. Logo, os dois irmãos pararam de discutir e começaram a balançar juntos ao som da triste melodia da canção, abraçados um ao outro com o cetro preso entre seus corpos, novamente como se fosse um bebê, fruto do amor que compartilhavam. Eles tinham essa capacidade incrível de parar no meio de uma briga para fazer algo que julgavam ser mais importante - dançar, no caso - e Ike curiosamente se perguntava como seria discutir com alguém que já sabe tudo o que você tem a dizer. Sua primeira conclusão seria que os gêmeos provavelmente já teriam se entediado um com o outro àquela altura, mas não parecia ser o caso. Na verdade, parecia que eles eram tudo um para o outro.


 

I told the undertaker,
"Undertaker, please drive slow,
For this body you are haulin'
Lord, i hate to see her go."


 

Ike virou-se para olhar para o homem ao seu lado e teve a ligeira impressão de que seus olhos castanho-esverdeados estavam cheios de lágrimas. Lágrimas não derramadas, naturalmente, das quais Christophe logo se livrou usando as costas da mão. Mas o menino mais novo não acreditava no que tinha visto. Ele não pensou que fosse real, que um homem como Christophe poderia chorar e sangrar assim como todo mundo; uma fantasia doce dos olhos jovens, que em nada corresponde à realidade.

-É uma música bonita do caralho. - O francês murmurou para si mesmo.

-É.

Christophe levou um momento para falar novamente.

-Me desculpe pelo tapa.

-O quê?

O Toupeira esfregou o rosto, respirando longa e profundamente. Ele tinha treinado para falar sobre aquilo tantas vezes dentro de sua própria cabeça, mas ainda não se sentia bem o suficiente para pronunciar as palavras em voz alta. Não havia nenhuma maneira certa de dizer o que ele estava dizendo.

-Me desculpe por ter te batido. - Ele repetiu. - Eu não deveria ter... Eu não estava são quando fiz aquilo.

-Por favor, Toupeira, não. Você estava certo. Eu não posso desmoronar quando as coisas derem errado, especialmente se eu quiser ser um guerreiro. Eu não sou mais uma criança.

-Não tem nada a ver com isso.

-É claro que ele tem. Você não chora quando está com dor.

Christophe teve que rir. Não rir propriamente, mas soltar o ar pelas narinas, oferecendo um sorriso curto que revelou seus dentes, sacudindo a cabeça, porque ao mesmo tempo em que Ike era tão inteligente, por vezes ele ainda soava como uma criança.

-Bem, eu já ouvi isso uma vez. Meu velho não acreditava que homens devessem chorar. - Ele disse, envolvendo os ombros de Ike com o braço. - Quando eu era muito mais jovem que você, minha família e eu viemos para Zaron. Nós viajamos através do mar no porão de um navio. Eu estava aterrorizado, pra dizer o mínimo. Não tinha irmão ou irmã, era só eu e os meus pais. O porão era imundo, todo mundo tinha que mijar e cagar no chão, não tinha muita comida e algumas pessoas estavam adoecendo e morrendo bem ao nosso lado. Os corpos tinham que ficar lá embaixo, apodrecendo. Nós éramos fugitivos, imagine. A guerra estava destruindo o continente europeu de maneiras que você não poderia começar a imaginar. Os seres humanos em Zaron costumava viver muito bem naquela época, as coisas não eram como são agora. - Christophe balançou a cabeça, perdido em pensamentos, retomando a linha de raciocínio. Ele se afastou de Ike, que o encarou com os olhos bem abertos. - De qualquer forma. Meu pai acordou uma noite e me viu chorando. Ele me deu uma puta de uma surra e disse que não criou uma bichinha pra chorar. É uma das únicas memórias que eu tenho dele.


 

We sang songs of childhood

Hymns of faith that made us strong

One that out mother had taught us

Hear the angles sing along


 

Os gêmeos não dançavam mais, embora a música ainda estivesse tocando e Wendy ainda estivesse cantando. O Toupeira observava como Terrance e Phillip se abraçavam, lentamente balançando ao seu próprio ritmo. Era provável que houvesse uma música tocando dentro de suas cabeças que ambos (e somente eles) podiam ouvir. Seus olhos estavam fechados como se nada mais existisse no mundo. Estar perto deles - e perto do cetro – fez Christophe se sentir melhor por algum motivo.

-Eu tinha oito anos. - Ele acrescentou casualmente enquanto acendia um cigarro.

Ike piscou pela primeira vez depois do que pareceu uma eternidade. Sentiu que deveria dizer algo, mas não havia nada em sua mente.

- Isso é horrível.

Christophe sorriu, colocando a mão sobre o joelho de Ike.

-O que eu quero dizer é: eu fico feliz que você ainda consiga chorar. Não perca isso, não importa o que aconteça.

O menino assentiu com um certo orgulho do que ouvia, mostrando o pequeno sorriso que ele tinha para oferecer no momento, mas Christophe não estava olhando para ele.


 

One by one their seats were emptied
And one by one they went away
Now the family is parted
Will it be complete one day?


 

-Toupeira?

-Sim?

-Você acha que meu irmão vai ficar bem? Digo... Você acha que ele vai voltar como era antes?

Não, ele não acreditava que tal coisa fosse possível. Mas ele não estava prestes a dizer a verdade bem na cara de Ike, não quando os olhos do menino continuavam tão cheio de esperança. A esperança era algo que Christophe não tinha experimentado ou mesmo visto em algum tempo. Ele não queria que acabasse.

-Eu não sei, garoto. Eu realmente não sei.

Terrance também os observava de onde estava, apoiando o queixo no ombro de Phillip, sorrindo para si mesmo porque sabia de coisas que eles sequer imaginavam. O gêmeo podia sentir no ar a chegava de um príncipe valente, Terrance tinha sonhado com isso e seus sentidos lhe diziam que a hora estava quase chegando. Quando ele acordou do sonho, na noite anterior, ele imediatamente contou ao seu irmão - a única pessoa a quem ele contaria tudo. Phillip já sabia de tudo o que ele relatara, é claro, mas simplesmente disse a Terrance que ele precisava parar de comer esquilos antes de dormir.


 

* * *


 

O salão de festas era o lugar favorito de Cartman no castelo, mas somente quando estava vazio. Cartman amava cômodos que haviam sido construídos para a grandeza; amava como tudo era alto, imponente e imenso, como sua voz se projetava e ecoava por todo o salão quando ele promovia encontros íntimos lá.

Na noite em que o seu mais precioso prisioneiro desapareceu, ele estava ocupado em uma importante reunião para resolver uma pequena situação desconfortável que tinha em mãos. O rei convocou Damien, um dos senhores das trevas que foi se hospedar na floresta pessoal do rei (também conhecido como o Jardim Mago). Cartman sabia como tratar os seus hóspedes e Damien, como a criatura selvagem que era, não se sentia confortável cercado por muros, então ele teve a floresta inteira para si enquanto esperava pelo seu prêmio. No salão de festas, no entanto, parecia tranqüilo. “Ótimo”, Cartman pensou, “isso deve facilitar as coisas”. Damien sentou-se em um sofá vermelho com as pernas cruzadas, as mãos descansando em suas coxas. Seu rosto era quase vicioso de se olhar.

Havia ainda outra presença no salão naquela noite. Não era um ser humano, não, mas uma criatura exótica que parecia humano da cabeça à cintura, enquanto suas pernas eram como as de uma cabra, cobertas por uma camada de pelos de um loiro dourado como seu cabelo. Era um fauno. Ele estava sempre tremendo, assustado; Primeiro por causa de sua natureza frágil, mas também por causa do trauma que o havia moldado para ser assim. Tweek era o seu nome. Ele era o servente de vinho pessoal de Cartman, desde que foi capturado em uma das aventuras de caça que o rei fazia na floresta. Quando a presa não poderia ser consumida ou pendurada na parede de troféus, era escravizada. Foi o caso de Tweek.

Mas a presença de Tweek não parecia ser reconhecida pelos homens. Eles tinham questões importantes a discutir.

-Eu realmente deveria ter agradecendo de forma mais apropriada. É uma vergonha que não tive tempo para fazê-lo mais cedo.

Damien normalmente não cedia à bajulação barata de Cartman, mas naquela noite ele estava em um excelente humor. O rei estalou os dedos na direção de Tweek, ordenando que ele servir algo para seu convidado beber, apontando para uma garrafa específica. Não precisou usar palavras, o fauno já conhecia os gestos do rei de cor. As mãos de Tweek tremiam quando ele segurou a garrafa vermelho-escuro para derramar o seu conteúdo em uma taça de cristal. Suas narinas dilataram para o perfume do líquido prateado expresso que escorria da boca da garrafa. Tinha um belo brilho arroxeado. Tweek franziu a testa.

-Eu só quero a minha recompensa, Cartman. - Damien respondeu.

-Ah, não se preocupe com isso. Você tem sido um grande camarada. - O rei continuou, levantando-se. - Eu sei que nem sempre estivemos nos melhores termos, mas eu sempre gostei de você, Damien. Você é, de fato, uma grande parte dessa vitória.

-Vitória? Não é um pouco cedo para afirmar isso?

Cartman caminhou em direção a Tweek, que estava ao lado do carrinho de bebidas segurando o copo com o líquido prateado. Era sangue de unicórnio, Tweek reconheceu de imediato. Mas tinha o cheiro estranho. Cheirava como algo inteiramente diferente, um aroma que ele tinha certeza de que já tinha sentido antes, mas não conseguia dizer exatamente do que se tratava. Pela maneira com que Cartman o encarou, Tweek imediatamente percebeu que não deveria descobrir. Ele soltou um suspiro assustado quando o rei rudemente puxou a taça de sua mão.

-Sirva-me uma porra de vinho, seu inútil de merda.

Cartman estava bem ao lado dele, esperando com uma mão apoiada no quadril dolorido. Estava ficando velho para aquilo tudo, pensou. Damien inverteu as pernas elegantemente cruzada, erguendo o queixo e distraidamente acariciando a parte interna da coxa, observando aquele copo com um brilho de curiosidade nos olhos vermelhos.

-Como eu estava dizendo. - O rei sorriu. - Eu queria tirar um momento para agradecer por tudo o que você fez. Então, olhe só o que eu tenho para você. - Ele orgulhosamente ergueu a taça. - O melhor sangue de unicórnio que Zaron tem a oferecer. Você nunca vai encontrar nada parecido.

Damien tinha que sorrir pelo quão pretensioso Cartman podia ser quando queria. Aquele era um motivo forte que contribuía para o fato de que eles nunca tinham se dado lá muito bem; O rei teve vontade de arrancar aquela expressão divertida do rosto de Damien com seu canivete, mas as coisas não funcionavam assim, especialmente quando se estava lidando com um demônio. Ele teve que aceitar que era impotente, o que foi extremamente doloroso para um homem egóico como Eric Cartman. Para Damien, ao contrário, a experiência toda se mostrava deliciosa.

-Que adorável.

Tweek derramou um pouco de vinho na bandeja de prata que segurava as bebidas. Em circunstâncias normais, Cartman teria lhe esbofeteado para que aprendesse a controlar as mãos, mas naquela noite, estava distraído demais para sequer notar. Tweek se encolheu quando o rei se inclinou para pegar o copo de vinho, ainda falando com Damien, não prestando atenção ao medo do servo. Cartman se alimentava do pavor de seus serventes, Tweek pensou, então havia algo estranho acontecendo ali. Ele apenas ficou parado de pé observando enquanto o rei voltava para o sofá e entregava o sangue para Damien, aquele líquido viscoso brilhando lindamente em nuances de roxo e verde, dependendo de como a luz o atingia. Damien não se alimentava há algum tempo - alguns dias, pelo menos -, principalmente porque ele estava se resguardando para o que seria a melhor refeição de sua vida. Suas pupilas dilatavam-se por luxúria e fome, sua boca se encheu de saliva quando ele segurou o copo - algo que ele não estava acostumado a fazer - e bebeu. O gosto era algo fantástico. Demônios ansiavam por sangue de unicórnio mais do que qualquer coisa, ainda mais do que por sangue élfico, no que se tratando de gosto. Damien não terminou de uma só vez, ele parou no meio do caminho para guardar um bocado para pura degustação, gemendo baixinho e fechando os olhos. Sua boca e queixo estavam manchadas pelo líquido denso.

-Porra, isso é gostoso pra caralho.

Cartman sentou-se ao lado dele, desfrutando de sua própria bebida com muito menos ardor.

-Fico muito feliz que você goste. - O rei encostou o rosto na palma da mão e apoiou o cotovelo sobre as grandes almofadas no encosto do sofá, levantando o canto dos lábios em um sorriso discreto. - Eu pesquisei em meus livros para aprender mais sobre a sua raça, porque eu queria ter certeza de que você estaria satisfeito. Há algumas coisas realmente fascinantes sobre demônios.

-É? - Perguntou Damien, não se dando ao trabalho de realmente ouvir o rei humano, lambendo as gotas de seus lábios e segurando o copo com as duas mãos enquanto se deleitava com o delicioso fluido.

-Sim, é verdade. Há algumas coisas que eu nunca tinha sequer pensado. Por exemplo... Como é viver com uma ninfa sabendo que elas são tóxicos para a sua raça?

-Elas não são tóxicas, apenas o sangue delas é. Você quer chegar a algum lugar com isso? Para que você me trouxe aqui afinal?

Cartman piscou lentamente e sorriu para a impaciência do demônio, tomando mais um gole do seu vinho. Em seguida, deixou seu dedo indicador brincar o cristal fino da boca do copo.

-Eu te trouxe aqui para avisar que houve uma mudança de planos.

O demônio ainda estava olhando para ele, mas era difícil dizer se ele tinha ouvido as palavras do rei, se ele estava acompanhando algo do que estava acontecendo. Damien tinha se tornado mais pálido do que normalmente e um de seus olhos vermelhos começou a contrair-se, bem como os olhos de Tweek constantemente faziam. Sua boca ficou completamente seca, seus olhos que eram sempre de uma cor de vermelhos-sangue começaram a escurecer, tornando-se quase pretos. Ele não largou a taça e nem quebrou o contato visual. Na verdade, Damien não moveu um músculo.

-Kyle fugiu. - O rei continuou, nenhuma alteração em sua voz. - Eu não tenho certeza de onde ele está, mas não se preocupe, eu vou descobrir.

Damien abriu a boca para tentar dizer alguma coisa, mas nada saiu. Nada que fizesse sentido, pelo menos. Depois de alguns segundos, houve um som horrível, seco e lento, mas Damien começou a tossir uma substância escura que logo começaria a sair de seus olhos também. Cartman tomou outro gole, prosseguindo com a voz mais calma do que nunca.

-Veja bem, eu poderia ter usado da sua ajuda se você não fosse assim tão ganancioso. Você poderia ter me pedido qualquer coisa, Damien. Eu ficaria perfeitamente contente em conseguir qualquer coisa para você.

O demônio estava quase irreconhecível àquela altura. Enfim, soltou a taça para que se espatifasse no chão e quebrasse em um milhão de pedaços. Logo, o demônio caiu do sofá diretamente sobre o cristal quebrado, segurando sua própria garganta, finalmente capaz de gritar de agonia pura, cego, sentindo sua carne derreter sobre os ossos. Foi lento. A fumaça era proveniente da pele queimando e do líquido ácido que o corroía de dentro para fora, fazendo com que ele se contorcesse no chão como um epiléptico. Tweek se escondeu atrás do carrinho de bebidas, observando a cena com enormes olhos assustados, encolhendo-se com os gritos desesperados de Damien que ecoavam pelas paredes altas do salão de festas. Cartman se levantou, aproximando-se do corpo deformado, da carne que escurecia em cinza muito rapidamente, aquele rosto que logo era reduzido ao formato do crânio, pois mal havia pele cobrindo-lhe a face. O cheiro era terrível.

-Você me pediu pela única coisa que eu nunca poderia dar. Você realmente acha que eu deixaria você ter o Kyle? Fácil assim?

O rei caminhou ao redor do corpo contorcido que estava caindo aos pedaços bem a sua frente. Os olhos de Damien, tão vermelhos e mortais, agora tinha sido reduzida a duas poças de sangue que escorriam para tomar conta do seu rosto que, poucos momentos antes, havia sido tão perversamente belo. O sangue saía de sua boca, o nariz e das orelhas. Ele estava perdendo todos os sentidos, afogando-se em si mesmo, rezando (por mais irônico que pareça) para que aquilo acabesse logo. Cartman deu mais um gole e gemeu de prazer, esfregando seu quadril.

-Bebe era uma puta gostosa. - Ele assegurou-se de que Damien ainda estivesse vivo para escutá-lo. - Fiz questão de esclarecer pelo que ela estava morrendo quando eu drenei todo o sangue do corpo dela.

-Oh, doce mãe do céu... - Tweek murmurou depois de um tempo, quando Damien não podia gritar mais. Cartman casualmente virou-se para olhar para ele.

-O que foi, Coisa?

-Oh, uh. Eu... - Ele hesitou, olhando para baixo. - M-me perdoe, V-v-vossa Majestade. Mas o sangue de ninfa é... É rosa. É rosa c-como lábios de um v-vir-virgem. Você o enfeitiçou, meu Senhor, m-mas como...? Eu não entendo como é possível.

-O que você não entende? - Perguntou Cartman, impaciente. Tweek estava arruinando um momento muito doce para ele.

-C-c-como é que ele não percebeu isso? Eu... Eu pude sentir o cheiro.

-Estava cego pela luxúria. - O rei sacudiu a cabeça, virando-se novamente para olhar para o que tinha sido uma vez Damien Thorn. - Pobre filho da puta. Limpe essa bagunça para mim, Coisa. Está fedendo aqui.


 

* * *


 

Baahir teve uma semana de merda. Viajar para tão longe - e pelas razões que o levaram a fazer isso - nunca era fácil. Para ser honesto, na maioria das vezes, ele não tinha ideia de por que diabos ele estava levando um prisioneiro precioso de volta para as pessoas que estavam em guerra contra sua própria espécie, mas Marjorine explicou aquilo tudo de uma forma que fez tanto sentido quando lhe pediu por ajuda. Ele tentava não pensar sobre isso, principalmente porque surgiam algumas ideias muito obscuras quando ele parava para considerar a situação. E Kyle parecia tão frágil que Baahir sempre se perguntava o quão fácil seria simplesmente estrangulá-lo na floresta e acabar com aquela tormenta. Era tão mórbido e sombrio, mas a verdade era que Baahir ficava ainda mais aflito ao pensar no que aconteceria com aquela pobre criatura se Cartman pusesse as mãos nele novamente. Kyle merecia descansar. Cartman nunca iria matá-lo, nunca deixaria que a tortura terminasse.

Por mais frágil que Kyle parecesse, Baahir tinha algumas evidências de que ele era de fato muito mais forte do que se poderia pensar. Em primeiro lugar, porque Baahir tinha acreditado naquela imagem aristocrática delicada, supondo que ele teria que cuidar do elfo durante o caminho inteiro, como se ele fosse uma princesa. Mas descobriu-se que Baahir foi humilhado repetidas vezes pela capacidade absurda de Kyle para viver em uma floresta. Os seres humanos não foram treinados para isso. Kyle, como todo elfo, conhecia a vegetação, sabia o que podia e não podia ser comido, onde encontrar que tipo de animal ou água potável, do que eles deveriam manter distâncias, como marcar a localização, se iria ou não chover de acordo com o céu. O último quesito não era particularmente difícil: choveu durante toda a semana, o que intensificou os dias de merda de Baahir.

Eles quase não se falavam. Baahir tentou algumas vezes, perguntando sobre a vida no reino élfico, sobre Kenny, mas Kyle não lhe deu chances de iniciar uma conversa.

Quando a semana chegou ao fim, Baahir teve a doce visão de uma fogueira à distância. Era tarde da noite. Kyle estava dormindo com o rosto pressionado contra as costas de Baahir e tinha os braços ao redor do torso do homem para que não caísse do cavalo. O elfo ainda estava fraco e, no início da viagem, ele adormecia mesmo sem perceber, como se sua mente de repente parasse de funcionar. Ele quase caiu e bateu a cabeça algumas vezes. Baahir teve que pedir a ele repetidamente para que segurasse na sua cintura para evitar acidentes caso acontecesse de ele apagar. Kyle estava hesitante sobre isso no início, sobre o contato físico com aquele estranho, mas eventualmente acabou cedendo.

O humano não acordou o elfo imediatamente após avistar o acampamento. Havia ainda vários metros para percorrer e ele sentiu que Kyle merecia algum tipo de descanso durante o máximo de tempo possível, uma vez que ele não teria um pingo de sossego depois que se reunisse com aqueles que amava. As tendas estavam bem escondidas - elfos, em geral, conheciam o caminho em qualquer floresta de mata fechada, aparentemente - para que eles não estivessem expostos, mas Baahir podia ver pelo menos uma delas quando ele chegou perto o suficiente, ouvidos e olhos bem abertos em busca de movimento.

O acampamento não estava localizado no meio da floresta. Eles tinham encontrado uma imensa clareira (que, na verdade, Gregory conhecia antes e ele planejou o caminho do exército muito estrategicamente), mas a maioria das tendas foram colocadas entre as árvores. O acampamento iniciava-se na entrada da floresta e se espalhava por todo o caminho até o campo aberto para acomodar todo o exército. Estava muito escuro à noite, Baahir teve que chegar bastante perto para enfim ver que alguns dos elfos ainda estavam acordados. Ele estava acostumado a ser silencioso e a fazer o possível para passar despercebido, então demorou um momento para decidir se deveria ou não emergir das árvores e se revelar. Kyle se mexeu um pouco e gemeu preguiçosamente, roçando sua bochecha contra as costas do homem, começando a acordar como se pudesse sentir a proximidade da sua espécie.

Jimmy, o bardo, conversava com Christophe enquanto eles compartilhavam um copo de metal cheio de rum. Eles se sentaram na grama. Jimmy tinha uma atrofia nas pernas, mas sempre acompanhava o exército para entreter os homens nas noites duras de frio. Ele podia não ser tão eficiente quanto as mulheres - e homens – para manter companhia e oferecer conforto aos guerreiros, Jimmy estava consciente disso, mas ele gostava de fazer as pessoas sorrirem em tempos sombrios da guerra. Tanto ele quanto o francês não dormiam bem durante a noite, então estavam habituados a fazer companhia um ao outro. Christophe conversava com Jimmy de uma forma que não costumava conversar com a maioria das pessoas, simplesmente porque o bardo não era como todos os outros. Ele era genuinamente bondoso, interessado em ouvir, sem querer nada em troca.

Eles discutiam um episódio que tinha acontecido mais cedo naquela noite envolvendo Stan, Terrance, água fervente e um porco selvagem. Foi um milagre que ninguém se machucou.

Ao contrário de Christophe, Jimmy sempre foi descontraído e não costumava estar alerta em tempo integral. Portanto, não entendeu de imediato quando o outro homem ficou em pé.

-Onde você vai?

Ele começou a se afastar em meio à escuridão.

-Toupeira! O que aconteceu? - Jimmy chamou, tateando no chão para encontrar suas muletas de madeira, mas o rum o deixou tonto.

Assim que o cavalo saiu do bosque, revelando a figura trêmula Baahir, o francês não pôde ver, não pôde ouvir, sentir ou até mesmo cheirar nada do mundo ao seu redor. Era como se tudo estivesse desmoronando sob seus pés e ele nem se importava. Christophe conhecia aquele rosto, sim, conhecia-o muito bem. Não precisou de luz para reconhecê-lo, seus olhos estavam perfeitamente acostumados com a escuridão. Após uma fração de segundo, o Toupeira estava correndo.

Gregory também estava por perto quando tudo ocorreu. Ele aquecia as mãos perto do fogo, tentando mantê-lo vivo e queimando a noite inteira. O homem loiro ainda tinha muitos pesadelos com a voz de Bradley Biggle engasgada com sangue e vômito. Tinha pesadelos, em especial, com a sensação úmida de sua espada rasgando o que restava da carne do menino. Como um general, Gregory já tinha colocado outros meninos para descansar e nunca tinha lhe dado pesadelos antes. As outras mortes pareciam mais limpas, como se aqueles garotos estivessem destinados a morrer da forma que morreram, como se tal coisa existisse. Explorar aqueles pensamentos mórbidos não lhe ofereceria qualquer sono. Passava suas noites, em sua maioria, brigando com Christophe e elaborando estratégias com apenas um par de horas de sono pesado depois que o sol nascesse.

Naquela noite, no entanto, Gregory não faria nada disso.

Ele ouviu a voz grossa gritando em sotaque francês:

-Você, seu filho da puta! Eu vou te arrebentar!

De longe, Gregory viu o homem sobre um cavalo levantar as mãos enquanto Christophe corria na direção dele. Mas o cavalo se assustou e virou-se de lado, relinchando, obrigando Baahir a pegar a rédea mais uma vez para não cair. Gregory franziu a testa por um segundo, percebendo a estranha figura por trás de Baahir. O loiro estava perto o suficiente para correr em direção a Christophe antes que ele chegasse ao intruso, quase derrubando-o no chão quando impediu o Toupeira de seguir em frente. Seus corpos colidiram de forma barulhenta, levantando poeira sob seus pés.

-Espere! Espere, espere, espere... - Gregory sussurrou-lhe ao ouvido, como se estivesse falando com uma criança zangada. Christophe estava prestes a socá-lo, gritando barbaridades em francês antes de se virar para o homem loiro como um touro, gritando, mesmo que ele estivesse a poucos centímetros do seu rosto.

-Esse calhorda do inferno levou o Kyle!

-Eu sei. - Gregory respondeu tão calmo quanto podia, enquanto olhava para Baahir na penumbra, acariciando a nuca de Christophe. Ele não tinha como saber daquilo, é claro, mas isso não importava. Manter Christophe sob controle era a única coisa importante no momento. - Olhe. Só olhe.

Para seu alívio, Wendy veio correndo para fora de sua tenda com um arco nas mãos, armando sua flecha e apontando-na para todos os presentes, até encontrar o alvo certo. Ela estava descalça, usando seu vestido de seda para dormir, com o cabelo em um coque alto e seus olhos pegando fogo.

-Que merda está acontecendo aqui?!

Os superiores dormiam longe dos soldados. As outras tendas estavam longe demais para que os homens adormecidos pudessem ouvir a comoção. Stan ainda não estava na sua tenda naquela noite. Não se sabia dele. Wendy deveria ter ficado no reino com Token, mas ela insistiu em ajudar com os feridos na guerra e agora Gregory – que fez objeção à sua vinda - estava muito grato por isso. Baahir ergueu as mãos mais uma vez, embora o cavalo ainda estivesse agitado, movendo-se em pequenos círculos.

-Agora, todos vocês façam a porra do favor de se acalmar! - O humano enfim disse, lentamente se posicionando para descer do animal, mas Wendy puxou a flecha até o limite no arco, ameaçando-o com a expressão. Ele ficou imóvel.

-Não se atreva. - Ela disse pausadamente. - Quem diabos é você?!

-Olhe. - Gregory tentou chamar a atenção deles para contar-lhes o que tinha visto, mas ainda era difícil de acreditar. Ele mesmo não confiava em seus olhos.

Baahir não se arriscou. Continuou parado, lambendo os lábios e olhando para a mulher, considerando que ele não tinha chegado tão longe para morrer com uma flecha no peito. Se ele estava traindo seu próprio povo, não seria uma maldita elfa que o mataria. Ele cuidadosamente virou-se para o lado, mantendo as mãos à vista a todo momento, sussurrando:

-Você consegue descer sozinho?

A voz veio fraca, com certo atraso, porque Kyle ainda não estava completamente consciente.

-Acho que sim.

Quando a pessoa atrás do homem que conduzia o cavalo começou a descer, Wendy chegou mais perto, franzindo a testa em precipitação.

-Não se mova, eu vou colocar um buraco na sua cara!

-Não... - Gregory disse a ela, repleto de satisfação. Mal percebeu que estava sorrindo. - Por todos os deuses, você não vê?

Nem ele próprio tinha certeza do que estava vendo, mas sabia que aquela silhueta pequena e trêmula lhe parecia terrivelmente familiar. Baahir teve que segurar a criatura pelo braço, olhando preocupado, como se ele fosse quebrar a qualquer momento. Quando os pés descalços do elfo tocaram a grama molhada, ele virou-se lentamente para revelar o rosto sob seu cabelo bagunçado, a pele frágil cheio de cicatrizes, o corpo magro e convulso que, agora, era somente um resquício da figura vigorosa da qual todos eles se lembravam. Kyle manteve uma das mãos sobre o animal para suportar o próprio peso, olhando para baixo com vergonha. Mas isso durou apenas um segundo. Logo, ele estava levantando o queixo, engolindo seco, encarando de frente a flecha de Wendy. Seus olhos estavam mais verdes do que nunca.

-Talvez você queira abaixar isso agora.

Mas ela não o fez, pelo menos não nos primeiros segundos. Sua boca estava aberta e os olhos não acreditavam no que estavam vendo. Era o sentimento geral, uma mistura de admiração e horror. Nos olhos de Wendy, Kyle podia ver como ele realmente estava irreconhecível.

Jimmy foi quem quebrou o silêncio com um riso maravilhoso, cobrindo a boca logo em seguida, como uma criança que ri no momento inadequado. Seu largo sorriso ainda estava lá. Ele quebrou o transe, o que trouxe um leve sorriso para iluminar o rosto de Kyle. Ele olhou em volta. Seus olhos brilhantes encontraram os de Christophe.

A expressão do rei derreteu em tristeza e alívio, principalmente porque ele não tinha mais condição alguma de lidar com aqueles sentimentos. Sentia-se como sua pele tivesse sido arrancada da sua carne desde que encontrou Kenny cara a cara na antiga casa. O instinto de Kyle o levou a caminhar em direção a Christophe como um homem embriagado, mal suportando o seu próprio corpo, mas ganhando força em cada passo.

-Você... Você está aqui. Você está vivo. - Kyle murmurou, abrindo os braços, mesmo antes de chegar ao homem, atirando-se para o corpo maior que o segurou um segundo antes que ele caísse. - Você está vivo. - Ele repetiu.

Christophe não disse uma palavra. Ele recebeu Kyle no abraço apertado, piscando os olhos lentamente como se estivesse drogado, encarando o chão com o queixo deitado contra o ombro ossudo daquele corpo machucado, que estava gelado. Seu coração estava batendo intensamente contra o peito de Christophe.

-Eu tive tanto medo. - Kyle murmurou com os olhos marejados. - Eu pensei que eles tivessem... Que tivessem te matado. Por todos os deuses, eu nunca vou te soltar.

A mão grande do Toupeira cobria a parte de trás da cabeça de Kyle, sentindo os buracos entre os tufos de cabelo, os cortes abertos em seu couro cabeludo. Ele estava tão magro, tão quebrado, mas ao contrário de Wendy e Gregory e Jimmy, Christophe não demorou mais de meio segundo para absorver que ele era real. Não ficou chocado. Ele não estava assustado pela deformidade. Tudo o que ele podia ver era que Kyle estava lá. Ele estava vivo. E Christophe conseguia respirar novamente.



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