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História Rex Meus - Sangue de lobo


Escrita por: caulaty

Capítulo 24 - Sangue de lobo


Stanley Marsh havia se esquecido de fazer a barba. O tempo parecia escorrer entre os seus dedos; ele tinha dificuldade de reconhecer onde estava ou o que deveria estar fazendo toda vez que bebia um pouco demais. É claro, isso é natural a todos os embriagados. Mas agora estava sóbrio, lentamente acordando, com o corpo deitado de costas sobre a grama úmida, olhando para cima. As árvores o protegeram ao longo da noite gelada, visto que a chuva demorou muito para cessar. Mesmo agora que houve uma pausa, a tempestade anunciava um grande retorno com trovoadas avassaladoras. Stan se perguntava como seria simplesmente se entregar e ser levado pela chuva. Ele podia se lembrar de um velho conto cristão sobre Deus enviando uma terrível tempestadde que durou quarenta dias e quarenta noites. Sempre julgou tal coisa como extremamente tola, mas talvez estivesse errado sua vida inteira. Talvez tudo pudesse terminar em água. Seria um lindo final, um final misericordioso. Talvez toda a dor fosse lavada dele.

Não se sentia mais como o Stan que uma vez conheceu. Era um tanto irônico que Kenny tivesse sido, ao decorrer da história, aquele atirado ao chão e surrado como um vira-lata, enquanto Stan era o guerreiro destemido e poderoso, alto e imponente, com seu arco e flecha e sua imensa espada imaculada. Agora ali estava ele, um farrado de quem construiu, a vida inteira, para se tornar. Stan não havia nascido no berço de ouro que todos pensariam ao olhar para ele. Conhecia a sujeira e o sangue tão bem quanto conhecia a glória. Tudo aquilo parecia muito distante.

-Por todos os deuses, olhe só pra você.

Stan nunca confundiria aquela voz, pois ela ecoara dentro de seu crânio por dias e dias a fio. Era uma voz que havia feito parte de sua vida, em timbres diferentes, desde que podia se lembrar. Uma sombra decaiu sobre ele. A dor de cabeça cortante dificultava que Stan abrisse seus olhos. Levou algum tempo até que ele tivesse forças para separar suas pálpebras e focar na criatura que pairava sobre ele, aquela estranha figura lentamente tomando uma forma diante de suas pupilas. Era a silhueta mais familiar.

-Kyle. - Stanley sussurrou, erguendo uma mão em frente ao próprio rosto para cobrir o tímido raio de sol que atravessava as folhas. Sua garganta estava dolorida, latejando, fazendo com que sua voz saísse rouca. Era um sinal da noite infernal que tivera. - Estou morto?

Não teve medo da resposta que a sombra lhe ofereceria. Stanley tinha aproveitado bem sua vida, feito as pazes com as próprias escolhas e com todos os momentos feios que o atormentaram durante anos. Fez as pazes com o desaparecimento e a morte repentina de sua irmã, com o fato de que não chorara no dia do funeral dela e que passou anos anestesiado, questionando se chegara a desejar que Shelly desaparecesse daquela forma. Também fez as pazes com a depressão de sua mãe, com sua desistência, com a bebedeira de seu pai. Com o fato de que se tornou órfão cedo demais. Estava em paz com os amores que não viveu e com os homens que matou.

Alguém tomaria conta de Sparky para ele, não havia dúvida. Era sua única preocupação, o único ser que realmente dependia dele, que ele podia proteger. Porque Kyle havia sido arrancado dele, e talvez fosse melhor ir embora logo; talvez fosse melhor encontrá-lo o mais cedo possível.

Stan de repente sentiu uma língua; uma língua enorme e molhada contra sua bochecha. Não tinha se dado conta de que havia fechado o olhos novamente, mas aquela sensação inegavelmente real o acordou novamente para o mundo físico ao seu redor. Todos os seus sentidos despertaram num piscar de olhos. Seu coração estava disparado, sua respiração estava descontrolada, as pupilas dilatadas e suas narinas bem abertas, captando o inconfundível bafo terrível de Sparky.

-Bem, eu não estou. - Kyle disse a ele, com a voz e o sorriso mais suaves que pôde, agora ajoelhando-se ao lado do seu guerreiro.

Stan olhou para ele durante um longo período de tempo.

O rei vestia as roupas mais simplistas que Stan já vira ele usar. Uma longa túnica marrom-claro que os enfermeiros vestiam durante a guerra, sua pele reluzindo sob todos os hematomas e cicatrizes de cortes distribuídos por todo o seu corpo. Seu rosto e cabelos pareciam limpos, seus olhos estavam profundamente abertos e brilhantes, porém tristes, mesmo que houvesse um sorriso em seu rosto.

Sparky pulava animadamente de um lado ao outro, latindo e balançando o rabo. Kyle havia confiado ao canino a missão de encontrar seu dono, e Sparky, por sua vez, não o decepcionara.

Stan escorregou a mão lentamente até seu peito e deixou escapar um gemido trêmulo, apertando os olhos enquanto um choro doloroso emergia lá do fundo, as lágrimas contidas escorrendo pelas suas bochechas. Stan cobriu os olhos com a outra mão, como se tivesse vergonha, contorcendo-se no chão quase em posição fetal, soluçando enquanto Kyle se inclinava para frente e pressionava sua testa contra a dele, segurando o pulso de Stan, apertando com força.

-Shh, está tudo bem. Está tudo bem, Stan. Eu estou aqui.

* * *

Baahir estava em silêncio. A capela, afinal de contas, era um lugar para o silêncio. Craig Tucker estava de joelhos fazendo uma pequena oração para os céus, algo que não fazia há pelo menos dez anos. Baahir nunca o tinha imaginado como um homem de Deus, independente de qual Deus fosse. Aproximou-se um pouco e ergueu o queixo para a estátua de porcelana da Virgem Maria, uma imagem santa que apenas os humanos cultuavam. A igreja católica estava praticamente extinta. O próprio Baahir não tinha qualquer intimidade com a crença cristã. Aguardou pacientemente até que Craig finalizasse seu momento, da forma mais respeitosa que pôde, mas imediatamente ao que Craig levantou a cabeça, o outro questionou:

-Pelo que está rezando?

Craig considerou apenas ignorar aquela pergunta, pois soava invasiva e íntima demais. Decidiu não fazê-lo.

-Pelo Clyde. - Uma pausa. Baahir ergueu as sobrancelhas curiosamente. - De qualquer forma... Eu não acredito que vão deixar aquele puto entrar no reino dos céus, se é que essa merda existe. Mas ei. Você quer alguma coisa?

-Ah. - Baahir coçou atrás da cabeça, como se tivesse sido pego de surpresa. - Sim, eu ouvi que pegaram o McCormick. Você sabe algo sobre isso?

-Sim, cara, já faz alguns dias. - Craig se levantou do chão e usou um dos bancos para apoiar seu pé, inclinando-se para amarrar os cadarços da bota que estavam frouxos. - Por onde caralhos você andou, afinal? Não te vejo faz uma cara.

Sob a luz oscilante das pequenas velas, colocadas em vasilinhas de cristal e dispersas pelo altar, a expressão de Baahir parecia perturbada. Não era escancarado; apenas um incômodo sutil causado pela azia ou qualquer coisa que o valha. Não foi o suficiente para que o ladrão notasse, afinal, Craig não estava realmente procurando por nada fora do comum. Se estivesse, farejaria o medo de Baahir como um cão. A pergunta foi ignorada.

-O rei deve estar bem puto. Pretende enforcá-lo ou algo assim?

-Não, isso não... - Craig interrompeu sua frase pela metade, estreitando os olhos. Puxou com força o cadarço e endireitou o tronco, apoiando o cotovelo na própria coxa. - Ele tem feito Kenny passar por coisa muito pior do que a forca. E aquela aberração da irmã dele é quem o estava escondendo. Ninguém a viu desde que Kenny voltou. - Não pôde evitar um riso curto e sádico, acrescentando com certo orgulho. - “Voltou” não seria a palavra. Desde que Kevin o arrastou de volta.

Baahir permaneceu em silêncio. Seus olhos negros estavam focados na luz dançante das centenas de velas, a única iluminação da capela escura. A forma com que o brilho alaranjado tocava seu rosto fazia com que ele parecesse mais velho, mais feio, revelando o quão exausto realmente estava. Se havia algo que Baahir aprendeu durante os dois anos que passara ao lado de Butters era como guardar um segredo. A situação toda era incontrolável e ele soube disso desde o primeiro momento. Não poderia tentar proteger Marjorine de nada sem tornar todo o esforço deles absolutamente inútil. “Confie em mim”, ela sempre lhe dizia, e só lhe restava obedecer.

Não havia nada mais importante para Marjorine do que sua família e seu povo. Essas duas coisas sempre viriam antes de Baahir, mas isso não o magoava de maneira alguma. Pelo contrário, fazia com que ele a desejasse e amasse ainda mais. Por outro lado, Baahir não possuía uma família ou um reino para colocar antes de Marjorine, então as prioridades dela eram também as dele. E a prioridade de Marjorine nunca foi ela mesma.

Ele calmamente repetia em seu cérebro que ela ficaria bem. Teve que respirar fundo, não se convencendo imediatamente disso.

-Isso é compreensível. Ele é irmão dela. É natural que tente protegê-lo.

-É, tanto faz. A única coisa que importa é vencer essa merda dessa guerra. Não sei em que buraco você andou, mas já deve saber que o rei deu um jeito de perder nossa isca. O elfo sumiu, Cartman está convencido de que a princesa teve algo a ver com isso.

-E teve?

Craig encolheu os ombros. Seu aspecto não era saudável; havia uma sombra tão triste sobre seu semblante, Baahir percebeu. Tudo o que pôde pensar era que a maldita guerra estava comendo todos eles vivos, mesmo as criaturas mais frias como Craig Tucker não sairiam imunes. Era um homem tomado por luto, coisa que Baahir compreendia muito bem.

-Quem é que sabe? Eu não acho que ela seria tão imbecil, mas talvez o rei devesse gastar mais tempo se concentrando em derrotar o verdadeiro inimigo, em vez de culpar um dos nossos.

-Mas... Eu não entendo. Se o rei elfo era a moeda de troca pelo cetro, qual é o plano agora? Nós não temos mais nada.

-Cartman quer partir em viagem antes do previsto. Ele tem um plano. - Craig deu-lhe dois tapinhas no ombro, depois apertou o braço do homem com alguma força. - Tente descansar, você está um lixo. Nós temos um dia longo amanhã.


 

* * *

Eric Cartman era um homem resiliente. Certamente não se parecia com um. Num primeiro olhar, muitos o considerariam um homem raivoso, impaciente e teimoso que socaria quem fosse preciso para conseguir o que desejava, movido pela vaidade e pelo orgulho. Como um rei, ele tinha o poder de não somente socar a cara de quem o satisfizesse, mas de assassinar qualquer pobre alma que decidisse cruzar seu caminho. E sequer seria necessário sujar suas mãos durante o processo. Sua tirania faria com que muitos acreditassem que Eric Cartman era como uma criança inconsequente, mas não. Seu desejo de machucar alguém, por mais profundo que fosse, nunca superaria o que ele poderia ganhar com a vida daquele indivíduo. Ele precisaria manter isso em mente mais do que de costume nos próximos dois dias.

Seu exercícito ainda acampava muito distante do exército élfico, mas ele já podia enxergar a fogueira deles ardendo ao longe, preservando a vida e o calor de seus inimigos. A noite estava fria e a chuva tornava-se novamente furiosa. Sua própria fogueira era grande o suficiente para manter a realeza aquecida, coberta por uma enorme tenda que protegia o rei enquanto ele se sentava em seu poderoso trono para observar o banquete de seus homens. Em sua mão, havia um enorme cálice dourado que produzia um som metálico toda vez que colidia com os anéis de Cartman. Ele esperava. Precisava esperar.

Tweek o servia timidamente de mais vinho tinto. O pelo do fauno estava encharcado de ir e voltar de uma tenda a outra carregando barris de bebida e comida sob a chuva forte.

Kevin estava de pé a alguns metros do trono, silencioso e abatido, embora houvesse uma estranha ansiedade em sua respiração. O pulso mutilado estava muito bem escondido sob seu casaco grosso e vermelho, sua coluna estava curvada para frente como se o peso do mundo decaísse sobre seus ombros. A mão que ele ainda possuía permanecia em sua boca para que ele pudesse roer as unhas ao ponto de sangrarem.

-Você fez muito bem em trazê-lo para mim, McCormick. - O rei disse de repente, rompendo sua própria concentração. - Pare de se torturar.

Kevin lentamente afastou a mão da boca, como se tivesse sido pego fazendo algo indevido.

-Não estou.

-Ótimo. Porque amanhã não será bonito. - O rei demonstrou um sorriso malicioso antes de beber do cálice de vinho. O gosto era terrível, mas ele não se importava. Tudo parecia ter gosto de glória naquela noite. - Ele nos será útil.

-Mas você matou Kenny diante dos olhos daquele viadinho, como diabos vai ameaçá-lo com a vida dele? Quem você acha que libertou o elfo? Ele sabe que Kenny pode voltar, não há propósito em dizer que vai matá-lo novamente.

Como foi dito anteriormente, Eric Cartman era um homem resiliente em qualquer situação. Se as coisas não funcionassem como esperado, ele não precisava de mais do que algumas horas para se recuperar. Durante um momento em seu trajeto, as coisas começaram a dar bastante errado para ele, é verdade. Mas não mais.

-Coisa. - O rei disse ao seu servo. Tweek apertou os dedos em torno da asa da jarra de vinho e arregalou os olhos, erguendo um pouco mais o queixo para ouví-lo com atenção. - Deixe-nos a sós. Vá alimentar a criatura. Não queremos que ele morra antes da hora.

O fauno assentiu entusiasticamente com a cabeça e descansou a jarra sobre a mesinha de madeira, ao lado de um globo de neve que a mãe do rei lhe dera de presente, muito antes daquele rapazinho gordo sequer sonhar em tornar-se o que era hoje. Tweek cobriu a cabeça com o manto roxo e correu para a noite escura, sem temor. Estava habituado com aquele caminho. Deixou para trás os dois humanos que converariam sobre coisas que não eram do seu interesse. Os casos do fauno faziam barulho ao pisar na lama. A chuva causava um desconfortável formigamento, mas seu couro era grosso o bastante para suportar e os pelos lhe davam isolamento térmico. Ouvia o banquete dos homens ao longe, os talheres batendo e as porradas na mesa de madeira, os copos de bebida postos sobre a superfície e o líquido derramado, a fartura da guerra. Pobres homens, Tweek pensava. Seriam feitos de carne moída no dia seguinte. Muitos deles, pelo menos.

Deu a volta na tenda para se dirigir a um dos baús cheios de sal, tirando de dentro dele dois pedaços de carne crua de carneiro. Era frio e pingava sangue contra o dedos compridos de Tweek, suas unhas longas e sujas ficariam manchadas por baixo. Aquilo já era uma espécie de rito. Geralmente, a ordem seria dar somente um pedaço de carne crua ao prisioneiro, mas Tweek sempre dava um jeito de encontrar um pedaço menor para acrescentar à única refeição diária daquele homem.

A jaula ficava mais para dentro da floresta, isolada entre as árvores, exposta a outros animais selvagens. Tweek se aproximava sempre com cautela, embora já não tivesse mais medo, pois o homem nunca reagia à sua presença. O fauno nem mesmo chegava a abrir a pequena portinha da jaula; apenas passava o pedaço de carne mole entre as barras enferrujadas. As árvores protegiam um pouco a gaiola da chuva, mas nada muito significativo. Kenny McCormick estava sempre sentado no mesmo canto, com a cabeça deitada sobre o ombro, apoiada em uma das barras rígidas de ferro, o olhar morto. Se não fosse pelo subir e descer suave do seu peito, qualquer um diria que ele não estava mais vivo. Havia uma coleira apertada em volta do seu pescoço, como a dos cachorros selvagens do exército, assim como a tira de couro que unia seus pulsos. O objetivo era contê-lo, mas não se sabia do quê, pois ele nunca se mexia. Seus cabelos loiros, uma vez tão vivos e sadios, agora haviam sido raspados e expunham o topo da cabeça ferida por diversas cicatrizes. Seu rosto era marcado por cortes abertos e hematomas. A barba ainda crescia, cobrindo um pouco da pele ferida. A boca rachada e os dentes amarelos ainda eram bem visíveis, o sangue seco tentando formar uma casca de proteção nas feridas dos lábios denunciando seu aspecto doente. Talvez fossem feridas de febre.

A jaula era grande o suficiente para manter uma caça de porte médio, talvez. Um canino, provavelmente. Era isso que Kenny McCormick havia se tornado: um cão. Carne crua lhe era servida e a água que podia beber era somente da chuva, contendo-a na mesma vasilha em que fazia suas necessidades. Tweek se abaixava para oferecer-lhe um olhar carregado de compaixão todas as vezes que lhe trazia comida, o que era insuportável; o olhar pequeno daquele fauno entre as grades, aquele escravo em liberdade, criatura selvagem de vida medíocre que o encarava com fascinação, como se o animal fosse Kenny. Ele nunca fazia contato visual com Tweek e nunca respondia a nada que o fauno lhe dissesse.

Estava sentado torto naquela posição há tanto tempo – dias, até mesmo – que uma dor aguda tomava conta de qualquer músculo que tentasse mexer. O som úmido da carne atingindo o solo da jaula lhe provocou mal estar. Já vomitara demais. Cartman, pouco a pouco, arrancava-lhe a vida.

-O rei disse... - Tweek sussurrou em segredo. Olhou em volta, apavorado que alguém pudesse ouví-lo, mas estavam todos longe demais e ninguém se importava o bastante para ouvir quando ele falava. - Que vão usar o senhor amanhã. Isso tudo está acabando.

Como era de costume, Kenny permaneceu imóvel encarando o nada. Tweek envolveu a mão em uma das barras de ferro da jaula, aproximando o rosto.

-Seja forte. Coisas terríveis estão para acontecer.

A única resposta do loiro foi um sorriso de escárnio.


 

* * *


 

Então nascia o dia do julgamento enquanto o sol se reerguia entre as sinuosas montanhas de Zaron, banhando as terras verdes com sua infinita luz laranja.

Visto que tudo teve início em uma floresta, nada mais justo que uma floresta também anuncie o início do fim. O céu, que uma vez havia sido do mais profundo azul, agora era branco e quase que inteiramente coberto por nuvens que longo esconderiam o sol. A manhã fatídica estranhamente se parecia com um final de tarde, o que combinava com a atmosfera dominante no acampamento de batalha.

Terrance deixou sua tenda assim que os pássaros iniciaram seu canto, espreguiçando-se. Seu cabelo estava bagunçado, seus olhos estava escuros como os de um tubarão que sente a presença de sua presa. As narinas de Terrance se enlargaram enquanto ele farejava o ar. Sentiu o cheiro de sangue. Houve um aperto em seu coração.

Phillip acordou sozinho na tenda, como soube que aconteceria, com ambos braços envoltos no cetro da verdade. Ele emergiu de sua barraca semi-nu, como se o frio não pudesse alcançar sua pele, seus cabelos loiros completamente bagunçados como os de seu irmão há poucas horas, quando ele saíra daquela mesma tenda. Os pés descalços de Phillip tocaram a grama molhada e suja de lama, enquanto ele ainda segurava o cetro contra seu peito exposto. O objeto ainda estava enrolado em um velho e imundo cobertor que o protegia dos olhos maliciosos do mundo, mas sua força pulsante ainda podia ser sentida de qualquer canto do campo, por qualquer um. Isto é, qualquer um que estivesse acordado na alvorada do dia do julgamento.

De muitas maneiras diferentes, Phillip se assemelhava a uma mãe louca que perambulava por uma cidade em chamas, segurando seu bebê de forma protetora. Ele faria qualquer coisa pelo cetro delicado em seus braços, como se realmente tivessem uma conexão de mãe e filho.

Não precisou caminhar muito até encontrar Terrance. Seu irmão permanecia no mesmo lugar, parado em meio ao campo que havia sido incendiado anos antes. Os soldados estariam caindo como moscas exatamente naquele campo onde estavam, algumas horas mais tarde daquele mesmo dia. Terrance estava de costas para Phillip, mas sabia que o loiro estava ali. Na verdade, já soube desde o preciso momento em que seu irmão abriu os olhos para acordar.

-Você viu? - Terrance perguntou a ele, sem se virar. - Você viu...?

-Eles estão vindo para pegá-lo, Terrance. Eles... Nós devemos pará-los. Vão matá-lo, vão sim, eu sonhei com isso! Vão cortar a cabeça dele e picá-lo em mil pedacinhos. - O loiro levou o punho fechado ao peito e apertou, como se houvesse tecido para agarrar, soltando um gemido dramático de uma atriz de Shakespeare. - Oh, céus, vão jogar a cabeça dele aos pés do rei elfo!

Terrance continuou em silêncio. Veja bem, tal fato não ocorria com muita frequência, mas de vez em quando, havia uma disconexão entre os gêmeos e eles tinham visões distintas. Isso só poderia se dar diante de um fato muito, muito importante. Sempre acontecia por uma razão. Terrance então sorriu. Não foi um sorriso feliz. Ele estava apenas aliviado que seu querido Phillip não teve a mesma visão que ele durante aquela madrugada longa e terrível. Cobriu a boca por um momento, trêmulo, sentindo os olhos arderem em lágrimas que jamais seriam derramadas. Um tremor soluçado escapou-lhe da boca. Phillip estava distraído demais com sua missão, a ser manipulado pelo que o destino lhes reservaria. Terrance soltou um suspiro de resignação.

Se esse era o desejo dos deuses, ele os serviria de bom grado. Contanto que Phillip continuasse bem e o cetro continuasse protegido.


 

* * *

Os olhos joviais de Ike Broflovski miravam na pequena maçã verde que ele pôs sobre o tronco cortado de uma árvore. Seus pés eram revestidos pelo par de botas cor de ocre com franjas que se moviam contra o vento e esmagavam as folhas e o capim úmido conforme ele caminhava para longe do tronco, alcançando uma das flechas guardadas no saco em suas costas, com dedos longos e elegantes. Ike posicionou a flecha no arco e mirou com seus olhos de gavião, que mais pareciam duas jabuticabas de tão negros. Umedeceu os lábios, sentindo todo o respirar da floresta ao seu redor, os pássaros que piavam do topo das árvores, as toupeiras escondidas no solo, as pequenas borboletas amarelas que buscavam flores ao longe. O vento era suave o bastante para não atrapalhar sua mira. Quase podia ouvir a voz doce de Stan Marsh, seu mentor, sussurrando ao seu ouvido para que ele sentisse o caminho que a flecha faria, que se tornasse uma extensão do seu braço. “Não mire com os olhos”, Stan sempre lhe dizia, “os olhos são passíveis de erro”. Os elfos eram ensinados a mirar com a alma. Ike abriu um sorriso cínico ao soltar a flecha que rompeu o ar, veloz e certeira, raspando na lateral da maçã de forma que lhe arrancasse um pedaço.

-Merda. - Ike resmungou, abaixando o arco.

Estava sozinho e encharcado pela chuva torrencial, mas a folhagem grossa das árvores o protegia o suficiente para que a chuva não atrapalhasse sua pontaria. Correu a palma pelo topo da cabeça, alisando os cabelos finos para trás, suspirando profundamente. O sol mal havia nascido, mas Ike estivera acordado desde o auge da madrugada. Comeu dois pêssegos e já escapou sorrateiramente para a parte densa da floresta, como fazia todos os dias desde que chegaram ao acampamento. Kyle não gostava, mas estava ocupado demais resolvendo problemas com os quais Ike nada tinha a ver. Agora que seu irmão estava de volta, são e salvo – embora tivesse perdido quinze quilos e continuasse cheio de cicatrizes – o jovem elfo podia se concentrar novamente no seu treinamento. Stan também estava ocupado demais com as estratégias de batalha, mas Ike já tinha habilidade de treinar sozinho com a espada nas árvores e aperfeiçoando a mira com o arco e a flecha. Caso chegasse o momento, ele queria poder ajudar.

Seus ouvidos aguçados captaram um movimento entre as árvores. Ike se virou imediatamente para encontrar os familiares rostos dos gêmeos que caminhavam sempre em sintonia, com a mesma expressão facial, que agora parecia nervosa e inquieta. Ike julgava aquilo natural. Teve tempo o bastante com os gêmeos para compreender a sensibilidade deles. Um dia como aquele, em que sangue seria derramado no solo, deveria ser mais perturbador para Terrance e Phillip do que para o resto das pessoas.

-Pequeno príncipe, o que você faz aqui? - Phillip perguntou, apertando o cetro envolto pelo manto contra o seu peito. Ele estava com o tronco nu, vestia somente a calça cuja barra terminava nos joelhos, expondo as canelas finas e a pelagem loira. Não parecia sentir frio.

-Treinando.

Ike franziu a testa para a postura agitada dos gêmeos, um agarrado ao braço do outro, olhando em volta como se procurrassem por algo terrível como um leão da montanha. Ainda sim, havia uma energia diferente em cada um deles. Phillip parecia mais inseguro, batendo o pé descalço no capim e se encolhendo para frente, apertando os dedos na carne de seu irmão com pavor da expectativa. Terrance, por outro lado, apenas parecia ansioso para que algo acontecesse logo.

-Você precisa dair daqui, Ike. - Terrance disse num tom mais sóbrio do que Ike jamais ouviu dele.

-Eu... Por quê? O que estão vendo?

-Precisa sumir! Precisa sim! - Phillip ignorou, concordando com seu irmão, assentindo com a cabeça.

-Phillip, você não pode ficar andando com o cetro por aí.

O gêmeo loiro soltou uma arfada de terror como se não tivesse parado pra cogitar o perigo de estar ali, exposto com o objeto que jurou proteger. Apertou-o próximo ao rosto como se quisesse protegê-lo com seus braços de alguma ameaça imaginária, que logo se revelaria concreta. O cetro já parecia ser uma extensão dele mesmo, como a flecha era uma extensão de Ike, algo tão intrínseco a ele que mal podia perceber que ainda o estava carregando.

De repente, Phillip enxergou, claro como água, os dois homens que em breve desceriam de uma das árvores e caíriam com seus corpos pesados de pé no chão, ladrões habilidosos e acostumados com quedas altas, mas havia um bloqueio no restante de sua visão. Phillip temeu por um instante que aquilo significaria sua morte. Ele teria percebido que aquilo era uma grande bobagem se houvesse tido algum tempo para pensar a respeito, mas não teve; Craig Tucker surgiu como se viesse dos céus, aterrissando por trás de Ike com a precisão com a qual o garoto tentou – e falhou – atirar sua flecha. O poncho marrom de lã que ele vestia se encheu de ar com a queda, criando um volume dramático que cessou assim que seus pés atingiram o chão de forma barulhenta. Craig lançou seu corpo contra as costas de Ike e passou o braço pelo pescoço do elfo para puxá-lo violentamente na direção do seu peito, aproximando a outra mão revestida pela luva de couro que segurava um canivete para pressionar a ponta contra o maxilar de Ike.

“Corra, Phillip, por tudo que é mais sagrado nessa vida e nas outras!” Terrance disse ao seu irmão sem mover os lábios. Não houve tempo para mais nada. Phillip se arrependeria amargamente, até o fim de sua vida, pelo instinto de proteção enfeitiçado daquele maldito cetro. Um homem grande e forte demais para ser um ladrão escorregou pela corda amarrada na árvore e quase tremeu a terra ao pousar no chão, e ameças foram gritadas, sobre como destruiríam a garganta do príncipe que se debatia nos braços de Craig. Trent, o loiro alto, que usava somente um colete de couro de algum animal, encurralava Phillip como um urso selvagem, os olhos embebidos de sede pelo canto do cetro.

-Venha cá, sua aberraçãozinha. - Trent dizia, com um sorriso doentio nos lábios. Ele estava tão perto. Tão perto.

A espada de Trent foi sacada em questão de milissegundos, pronta para arrancar a cabeça vazia de Phillip se ele decidisse não colaborar. O canivete ameaçando a carne frágil do pescoço de Ike o paralisou, seus olhos azuis imensamente abertos, repletos de terror, pois toda a visão de seu sonhos repassava novamente em seu cérebro. Mas não era a visão correta. Dentro de poucos instantes, Phillip desejaria que tivesse sido.

Trent golpeou o corpo esguio de Phillip com sua lâmina, mas não foi isso que atingiu. Phillip pôde sentir a lâmina afiada daquela espada dilacerando seu corpo exatamente como se tivesse sido ele a vítima do golpe, mas não, não foi. O horror, as lágrimas, o despero, tudo isso ficaria para mais tarde. Phillip não se virou para ver o corpo sem vida de Terrance cair ao chão, o corpo daquele que era a sua metade, aquele que se pôs entre ele e a espada de Trent Boyett, aquele que veio ao mundo com ele e com quem dividia toda a sua sensibilidade, metade de seu cérebro, sua vida inteira. A espada atravessou o abdômen de Terrance, perfurando seu centro vital, emanando um som terrível e úmido. Trent teve dificuldade para puxar a espada ensanguentada, apoiando o pé no corpo de Terrance para empurrá-lo para trás, deixando que caísse morto sobre a grama com os olhos negros bem abertos, aterrorizados, como se ainda repetissem o mantra: “corra, Phillip, corra”.

E Phillip correu. Agarrou-se ao cetro da verdade, que anestesiava os seus sentidos, como se o vínculo de pulsação sanguínea entre ele e o objeto fosse real, palpável, como se aquela energia branca pudesse suprir o que lhe foi brutalmente arrancado. O cetro lhe deu forças nas pernas para sustentar o corpo e seguir, desviando das árvores, respirando desesperadamente pesado, arfando o ar pela boca, sem olhar para trás. O pequeno príncipe lá ficou, gritando até que os pássaros se assustassem e voassem para longe, diante da visão do corpo amigo agora como um cadáver. 



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