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História Rex Meus - Terra dos livres


Escrita por: caulaty

Capítulo 25 - Terra dos livres


Havia cinco indivíduos na tenda do rei. Quatro deles se mantinham em completo silêncio. O som dominante era aquele que já fazia parte deles, que embalava sua estadia no acampamento desde o dia em que chegaram. O cheiro de terra molhada e o barulho da chuva caindo sobre as folhas e as tendas já lhes era comum, parte do ambiente. Sob o atordoante som da tempestade, havia um choro fino como o de uma criança, audível a todos os presentes.

Não era uma criança que chorava.

Phillip estava semi-nu, apenas seu sexo coberto por uma túnica azul rasgada, suja de lama, assim como seu corpo alvo e encolhido no canto, quase debaixo da mesma de estratégias. Ele cobria a cabeça que estava entre os joelhos, as mãos mais ensanguentadas do que o resto do corpo, os cabelos encharcados, tremendo como um filhote de cachorro. O cetro, envolto no cobertor – mas parcialmente exposto – descansava sobre suas coxas magras.

-Vossa graça. - Stan murmurou timidamente, alternando o olhar entre a parte de trás da cabeça de Kyle e o homem que estava ao chão, trêmulo. - Ouviu o que ele disse?

Ainda havia pontos da cabeça do rei em que o couro cabeludo era exposto, pela queda de cabelo ou pelos tufos que lhe foram arrancados em seu tempo de cativeiro. Stan tinha dificuldade de encarar esses pontos, essas marcas que ele carregava no corpo de tudo o que havia sido feito com ele. Kyle já vestia peças semi-dignas da sua posição na realeza – ninguém ousou mexer no guarda-roupa do rei enquanto ele esteve sob a posse de Cartman, pois ninguém realmente contava com seu retorno tão cedo. Ele vestia uma túnica azul-esverdeada com estampa de desenhos barrocos em dourado, que pertencia a Wendy, e abraçava muito bem seu contorno assustadoramente magro. Por cima, um casaco de pele de urso para se proteger do frio. Após um banho e um longo período de cuidado com os ferimentos, ele já se parecia mais consigo mesmo. Mas em seus olhos opacos, Stan praticamente não podia reconhecê-lo. Era doloroso enxergar nele uma sombra, as feridas ainda abertas que começavam a cicatrizar por toda a sua pele, as olheiras de quem não dormia há meses, o aspecto doente. Seu rosto não tinha mais rubor.

Por mais difícil que fosse, Stan se recusava a tirar os olhos dele. Sentia como se, em um piscar de olhos, ele sumiria novamente. A mera ideia de perdê-lo novamente fazia o coração do guerreiro disparar.

Os dedos finos do rei, novamente com seus anéis prateados, abriram-se e buscaram apoio na cadeira que estava ao seu lado. Encarava a chuva pela tenda semi-aberta, apático. Estremeceu ao tentar respirar fundo, erguendo o queixo vagarosamente. Suas pupilas diminuíram. Gregory, Christophe e Stan o observavam com expectativa, apenas Phillip não parecia reconhecer que havia outras pessoas ao seu redor.

-Eles têm Ike. - Gregory repetiu sobriamente, de forma quase fria.

-Eu entendi. - O rei retrucou imediatamente, interrompendo-o de forma grosseira, cansada. Não era comum ouvi-lo falar naquele tom, mas também não era de foto desconhecido para Stan e Christophe. Abaixou a cabeça lentamente, o olhar caindo ao chão, como o de um homem morto. Ele praticamente não piscava. Seus cabelos ruivos pareciam muito mais escuros do que eram realmente, na ausência de luz dentro da tenda. Apenas velas fracas iluminavam as figuras ali presentes. O elfo fechou os olhos e engoliu seco, apertando o encosto da cadeira entre seus dedos com uma força comedida, o braço tremendo pelo esforço. Um gemido baixo escapou dos seus lábios. - Eu disse a ele... Desde que nosso pai foi assassinado por aquele monstro, eu disse a ele para não vagar sozinho por aí. - Kyle levou as duas mãos para cobrir o rosto, a voz vacilante, assustada, como se falar sobre isso em voz alta fizesse com que ele absorvesse a realidade da situação. Ao erguer novamente a cabeça, seus olhos, até então sem vidas, estavam repletos de ódio. Voltou-se diretamente a Christophe para proferir as palavras seguintes. - Você me disse que tomaria conta dele.

Sua voz era mais aterrorizada do que propriamente acusatória. Havia um choro querendo transbordar, mas Kyle não se permitiu deixar uma lágrima sequer escorrer de seus olhos úmidos. A acusação, de qualquer forma, pegou o Toupeira de surpresa. Como de costume, ele se mantinha isolado em um canto, praticamente fora do alcance da luz das velas, as mãos nas costas. Sua expressão suavizou ao encarar o rei de volta, quase esboçando dor.

-Eu não sabia que ele...

-É claro, nenhum de vocês sabia. Ele provavelmente sai de fininho desde que eu fui sequestrado e nenhum de vocês se preocupou em manter os olhos nele.

-Vossa Graça, nenhum de nós desejou isso. - Gregory interrompeu, farejando a perturbação de Christophe, que não olhava o rei diretamente, mas também não olhava para o chão. O loiro deu alguns passos à frente, excruciantemente calmo diante da energia densa que tomava conta da tenda. - Com tudo o que houve, a guerra manteve todos nós alienados. Ninguém teve tempo de fazer as vezes de babá para o príncipe.

-Cale a boca, Gregory. - Stanley devolveu de imediato, cuspindo as palavras com gosto, aproximando-se de Kyle, que se mantinha de costas para ele. - Céus, você é...

Por uma vez na vida, Gregory obedeceu. Uniu os pés e pigarreou, abaixando um pouco a cabeça que estava sempre arrogantemente levantada.

Kyle desprendeu a atenção dos três homens, desviando o olhar para nada em particular, como se tivesse se desligado do que se passava ao seu redor. Havia algo quase enlouquecido em seu olhar distante, a boca levemente entreaberta, as pupilas dilatadas no escuro, a cabeça esquentando rapidamente com a velocidade do pensamento. Levou a mão devagar até o peito e engoliu o acúmulo de saliva. Voltou-se quase que violentamente para Phillip, que agora estava por completo embaixo da mesa, agarrado ao pé dela, como um animal ferido. Seu rosto estava inchado de tanto chorar e as lágrimas rolavam ininterruptamente enquanto soluçava, sem ar. Era um choro mais baixo, abafado.

Não era para Phillip que o rei elfo olhava, mas sim para o objeto em seu colo.

-Eu nunca quis que chegasse a esse ponto... - Kyle murmurou, fitando vagamente o cetro. - Sempre pensei que nós pudéssemos vencer a guerra sem precisar desafiar o oculto. Realmente acreditei nisso.

Houve um momento longo de silêncio, em que o som da chuva foi reconfortante o suficiente para que Kyle fechasse os olhos por um momento e se lembrasse de sua infância, do perfume de sua mãe e do dia em que Ike foi encontrado dentro de um cesto nas pedras da beira do riacho, quando ainda era um bebê. Foram Kyle e Stan que o encontraram, enquanto brincavam com suas espadas de madeira. A rainha os supervisionava de longe. Foi um dos poucos momentos em que viu sua mãe chorar, diante do abandono de um recém-nascido que estava destinado a morrer de tantas formas terríveis se não tivesse sido encontrado a tempo.

-O que isso significa, Majestade? - Gregory perguntou, quebrando-o de seu transe.

-Temos que usar o cetro.

-Absolutamente não.

Kyle franziu a testa e voltou o olhar a Gregory como um felino raivoso que encontra sua presa. Não se moveu. Encarou-o por tempo o suficiente para que o general percebesse o que havia saído de sua boca.

-Entendo que você tenha tomado as rédeas das coisas no reino durante a minha ausência, Gregory. Será que fiquei fora por tempo suficiente para que você se esquecesse de quem é seu rei?

Ouvir a voz de Kyle tão firme, tão familiar ao que era antes, foi um alívio para os ouvidos de Stan. Gregory não se atreveu a responder. Também era de seu feitio não se desculpar, algo que Kyle por vezes achava estúpido e por outras, admirava.

O rei voltou sua atenção novamente a Phillip, aproximando-se de seu corpo semi-nu e sujo de sangue, ajoelhando-se ao seu lado e descansando a palma sobre o ombro ossudo da criatura; havia compaixão no toque. Os dois, afinal, compartilhavam uma conexão muito profunda, muito íntima. Ambos tiveram seus irmãos arrancados pela mesma circunstância, ainda que de formas diferentes. Foi como se, ao se aproximar de Phillip, o choro do loiro o contagiasse e ele pudesse deixar escorrer suas próprias lágrimas sem sentir.

-Phillip. - Falou próximo ao ouvido dele, observando como a criatura encolhia o ombro e virava o rosto para o lado oposto, tremendo e se encolhendo, como se o toque do elfo lhe ardesse a pele. Kyle prosseguiu o mais calmamente que pôde. - Sei que acabou de perder seu irmão. Mas eu não quero perder o meu. Por favor, você precisa fazer o que foi designado. Precisa usar o cetro.

O som que Phillip emitia era úmido, em fungadas profundas, como se mal pudesse respirar. Virou somente a cabeça para enxergar o elfo, lentamente, com os lábios abertos, os olhos inchados, o rosto vermelho e molhado, e encarou Kyle como se só então percebesse sua presença. A única coisa que escapou de seus lábios foi um gemido baixo, fino e fraco. Ele acolheu mais o cetro contra seu peito, deslizando pouco a pouco para o chão, desviando o olhar na mesma velocidade vagarosa e embrigada. Seus olhos estavam arregalados em terror, como se ele não soubesse exatamente onde estava. Deitou-se em posição fetal, murmurando coisas tão baixas que somente Kyle pôde ouvir:

-Eu não... Não, eu não... Eu nunca... Não... Não, eu... Nunca mais.

Era como um mantra.

Kyle virou-se na direção de Gregory em busca de compreensão. Stan estava logo atrás do rei, como um cão de guarda, silencioso e atento. Gregory esfregou as têmporas e bufou, parecendo impaciente, mas era mais uma expressão exausta e confusa. Foram poucos os momentos de sua vida em que absolutamente não soube o que fazer. Não estava acostumado a não ter controle sobre as coisas, e ultimamente isso se tornara cotidiano.

-Amputaram meu braço. - Phillip disse em uma voz mais sã, erguendo a cabeça e agarrando o braço de Kyle com uma desconfortável força desesperada. - Amputaram... E amputaram minha perna, deuses, amputaram... - Sua voz morreu de repente, mesmo que ele continuasse a mover os lábios, sussurrando sem ar.

-Vossa Graça. - Gregory chamou respeitosamente, unindo as mãos em frente ao corpo e umedecendo os lábios. - Sem Terrance... Não acredito que ele possa executar magia. Não acredito que ele vá sequer funcionar como antes. Para os gêmeos Due... Eles estavam ligados telecineticamente, você sabe.

Os olhos úmidos do rei se voltaram para o general, carregados de ódio, como se Gregory estivesse dizendo tais coisas propositalmente para convencê-lo de que usar o cetro não era uma opção viável, como se estivesse mentindo ou fosse culpado de algo. Kyle sabia que não era o caso; de todos os defeitos passíveis de se apontar em Gregory, ainda sim, continuava sendo um servo extremamente leal. Mas o olhar ferido continuava estampado em seu rosto, dominante. Quando quebrou o contato visual – que Gregory segurou bravamente, de forma mais gentil do que o esperado -, Kyle virou o rosto de lado e umedeceu os lábios, sua mão delicada alisando os cabelos quase brancos de Phillip, que continuava a chorar enquanto se agarrava ao tecido rico da túnica que o rei vestia, sem qualquer pudor ou vergonha.

-Saiam daqui. - Murmurou, olhando para o nada, cobrindo a testa quente de Phillip com sua palma.

Christophe foi o primeiro a se mover para deixar a tenda sem dizer uma palavra, com o andar agressivo de um animal abatido. Gregory levou dois segundos a mais para dar um passo, assentindo com a cabeça em compreensão. Então o seguiu, muito mais calmo, resignado. Stan caminhou logo atrás de Gregory, mas a voz do rei o interrompeu.

-Você não.

O guerreiro virou para encará-lo por cima do ombro, o pé para frente, esperando para dar o próximo passo. Gregory também fez uma pausa, virando-se para enxergar os dois, parado na entrada da tenda com certa melancolia no olhar. Logo, deixou-os a sós.

Bem, não completamente. Phillip continuava presente, mas não de todo, arrastando o corpo para o colo do rei elfo , encolhido em posição fetal, abraçado ao cetro – que, agora, estava praticamente todo exposto, sem o cobertor que, até então, oferecia uma falsa sensação de que o objeto estava protegido. Estranhamente, Kyle o acolheu em seus braços com o afeto de um irmão. Isso era incomum, não somente por sua condição de realeza, mas também porque o afeto gratuito com desconhecidos não fazia parte da natureza de Kyle. Stan compreendeu de imediato que havia algo extraordinário ocorrendo diante de seus olhos, e tinha a ver com o poder emanado pelo cetro mesmo quando ele não estava em uso. Stan sentia-se mal simplesmente por estar fechado no mesmo ambiente que aquela coisa maldita; sentia sempre um formigamento terrível da cabeça aos pés, uma tontura extasiante, como se não fosse dono de si mesmo. Em contraponto, acreditava que o cetro apenas potencializasse o que cada um carregava dentro de si. No caso de Kyle e Phillip, era a necessidade desesperadora de ter seus irmãos de volta. Isso os unia de forma inexplicável bem diante dos olhos do guerreiro.

No caso de Stan, assim como de todos que atravessavam períodos de guerra, estar próximo à energia do cetro era perturbador, pois só havia escuridão dentro dele.

Kyle embalava Phillip em silêncio, apenas sussurrando “shhh” próximo ao ouvido dele até que aquietasse seu choro. Após poucos minutos, Phillip parecia adormecido. Stan esperou pacientemente, em posição de guarda, até que Kyle lhe voltasse sua atenção. Diante do silêncio do rei, murmurou timidamente:

-Vossa Graça...

-Por que ainda me chama assim quando não há mais ninguém por perto? - Kyle perguntou, distante, alisando a bochecha gelada da criatura em seus braços, com os olhos fixos nele.

-Não deixa de ser meu rei quando não há plateia. - O guerreiro respondeu com voz contida, segurando o cabo da espada na bainha por hábito. Era-lhe estranho ver Kyle sentado ao chão, na grama úmida do solo, e ter que olhar para baixo ao falar com ele. - Diga-me, por favor, como eu posso ajudá-lo.

Kyle encolheu o ombro como se ouvir aquilo o incomodasse. Fez uma longa e cruel pausa, e Stan esperou ser mandado embora também.

-Sonhei com minha mãe. - O rei disse repentinamente, umedecendo os lábios, olhando para Phillip, que quase parecia adormecido. - Mas não consigo me lembrar do que ela disse. Acho que ela estava tentando me avisar.

Havia algo sombrio em sua voz que congelou a espinha de Stan, algo que o guerreiro logo identificou como culpa. Quis, mais do que qualquer coisa, tomá-lo em seus braços e aliviar qualquer sentimento ruim, como se houvesse alguma forma de absorver a dor dele para si. Mas não ousou invadir o momento que seu rei compartilhava com Phillip. O loiro não estava exatamente dormindo, era algo mais semelhante a um transe, uma meditação, algum encantamento entre o toque de Kyle e o cetro.

-Você não podia fazer nada.

-Eu sei. Parece que o Deus vaidoso dos humanos age de forma mais direta do que nossos ancestrais. Kenny me contou sobre Ele.

-Não acredito nisso, Majestade. O que fizeram ao príncipe... Foi ação dos homens. As divindades não fazem guerras, Vossa Graça.

-É. Nós fazemos.

Houve um longo período de silêncio entre as vozes, em que até mesmo as chamas ardendo nas velas pareciam ter um som. Stan pressionou os lábios, hesitante, dando um passo à frente e apoiando sua mão sobre a mesa.

-Você disse que Kenny o libertou. Kenny e sua irmã, não é isso?

Stan era o único para o qual Kyle havia contado exatamente tudo o que viveu em Kupa Keep, até mesmo a parte que o fazia duvidar de sua própria sanidade; disse, da forma mais sóbria que pôde, como viu um guarda abrindo a garganta de Kenny diante de seus olhos e depois ele apareceu na casa de infância de sua família, são e salvo. Kyle teve vergonha pela forma com que Stan o olhou, com compaixão, preocupado. Mas sabia que Stan não questionaria sua história. Ele era uma das poucas forças nesse mundo que mantinham Kyle com os pés no chão.

-Sim, eu disse.

-Talvez Ike esteja bem. Se o que diz é verdade... Se temos amigos entre os humanos. Talvez ele esteja bem. - Repetiu ao final, como que para se convencer do que dizia.

Foi a primeira vez naquela noite em que Kyle ofereceu um sorriso genuíno.

-Céus, Stan. Não sei o que fiz para merecê-lo. - Enfim, o rei ergueu a cabeça, seus olhos enormes como os de uma criança, cheios d'água. Ergueu a mão que antes alisava o rosto de Phillip, para que o guerreiro a tomasse. - Sabe que eu te amo, não é? Mais do que tudo nesse mundo.

Stanley apertou sua mão com angústia, ansioso pelo toque, afirmando com a cabeça.


 

* * *


 

Não era a primeira guerra que Kyle enfrentava. Certamente, não seria a última. Mas havia algo de diferente em cobrir seu corpo com o manto que seu pai usava toda vez que enfrentaria seus inimigos, alegando que lhe dava sorte. Gerald era um homem extremamente supersticioso, traço que Kyle não herdou. Olhava-se no reflexo do espelho sujo como um narciso, erguendo o queixo lentamente para a própria imagem. Podia ver Christophe refletido logo atrás dele, colocando as luvas de forma automática, encarando a parte de trás da cabeça do ruivo. A coroa estava dentro de uma caixa de veludo azul escuro, onde havia sido cuidadosamente guardada durante a ausência do rei.

-Está pronto? Eu vou buscar o Gregory. - Christophe disse em uma voz rouca e baixa, quase como um grunhido animalesco.

Kyle virou somente a cabeça em sua direção, o semblante limpo de qualquer expressão facial. Passava os polegares pelas pontas dos dedos indicadores e médios sem perceber. Por fim, chegou a erguer os cantos dos lábios em um sorriso tão sutil que foi quase inexistente. Christophe rangeu os dentes diante daquele rosta figura que, mesmo parecendo tão frágil, também transparecia uma força inacreditável. As marcas que levava em sua face eram prova disso.

-Ele virá. - O rei disse, por fim, virando o corpo inteiro para ele. - Sente-se com sorte?

Como era esperado, Christophe bufou e encolheu os ombros, pois não era o tipo de pergunta a ser respondida seriamente. Kyle assentiu com a cabeça, pois era contaminado pelo mesmo sentimento. Houve silêncio entre os dois. O elfo suspirou profundamente, desviando o olhar para a mesa de estratégias, que agora tinha um mapa enrolado, uma vela que queimou a noite inteira, com a cera endurecida pelo ar, e o arco do rei. A única coisa que faltava era o saco que continha as flechas esculpidas em carvalho, com o brasão do seu clã na ponta traseira.

Enquanto Kyle ajeitava o saco nas costas e alisava o corpo do arco, sem tomá-lo em suas mãos, umedecendo os lábios, murmurou sem fazer contato visual com o homem:

-Eu não o culpo, Christophe. Por nada do que aconteceu. Sabe disso, não sabe?

Ele ficou em silêncio, com os olhos estreitos, algo que Kyle pôde sentir sem sequer precisar olhar para ele. A expressão delatava sua desconfiança.

-Tudo o que você fez desde que o libertei foi proteger meu povo e minha família, como pôde. - A firmeza na voz do elfo era angustiada, mas inabalável. Ele voltou seu olhar ao humano e o observou com ternura nos olhos verdes, a respiração levemente alterada. - Eu sou muito grato por isso. Preciso que saiba disso.

-Eu sei.

Kyle sorriu.

-Confia em mim? Ninguém mais parece confiar. Acham que eu enlouqueci, não acham? Por ser torturado, por terem levado Ike... - Ao mencionar o nome do irmão mais novo, sua voz afinou em um choro contido. Seus olhos tornaram-se vermelhos e úmidos, mas nenhuma lágrima chegou a escorrer. - Mas eu ainda sei o que tenho que fazer.

-Eu nunca tive dúvida disso, Kyle.

O rei lentamente assentiu com a cabeça e soltou o arco, levando a mão para cobrir a boca por um momento, recompondo-se diante dos olhos do outro. Fungou baixinho, segurando a beirada da mesa com força, e Christophe desejou mais do que tudo dar alguns passos à frente e abraçá-lo, mas não o fez.

-Que bom. Isso é muito importante para mim.

Gregory apareceu na entrada da tenda poucos momentos depois, o rosto mais sério do que de costume, parecendo quase dez anos mais velho do que realmente era. Também parecia que não pegava no sono há uma semana. Estava molhado pela chuva, o que tornava sua figura muito mais desleixada do que Kyle já tinha visto. Era um homem que raramente se via com um fio de cabelo fora do lugar. Já estava armado dos pés à cabeça, pronto para o ataque.

Olhou para um, depois para o outro, desperdiçando alguns segundos em silêncio como se para perceber se interrompera alguma coisa importante. Mas Kyle esfregou o rosto e tomou o arco nas mãos, mostrando-se imediatamente preparado para o que viria em seguida.

-Stanley está com os homens, dando as últimas instruções. Mas ele já vem acompanhá-lo. Tudo de acordo com o plano, Majestade?

Kyle apenas afirmou com a cabeça, indisposto a falar.

O plano era simples, na realidade. Evitar o derramamento de sangue enquanto fosse possível. Provavelmente não seria durante muito tempo. Kyle não acreditava que Cartman estivesse blefando, mas tentava manter em mente – como Gregory apontou diversas vezes na discussão da noite anterior – que eles também tinham algo muito precioso e um exército que se mostrara mais forte, mais preparado. Gregory parecia nervoso diante da ideia de liderar os homens sem Stanley, que era o verdadeiro espírito que despertava a coragem e a entrega absoluta dos elfos. Mas ficou acordado que seria melhor para todos que Stan acompanhasse o rei até o local em que Cartman propôs que a troca fosse feita. O rei humano se referiu a isso como uma “negociação” em suas cartas, que estaria disposto a não ferir ninguém, contanto que os elfos colaborassem.

O local combinado não era muito distante do campo de batalha, apenas o suficiente para dar-lhes privacidade. Cartman certamente não iria sozinho também, mas foi uma de suas exigências que não levassem mais de uma pessoa por questões de segurança. Kyle odiava-se por estar dançando em torno do que Cartman propunha, mas era a escolha mais sensata.

Foram de carruagem até o monte da Gárgula, a 5km de onde os exércitos aguardariam a ordem de seus comandantes, caso fosse necessário o confronto de batalha que definiria o fim da guerra. Ambos exércitos não tinham mais o vigor de quando tudo aquilo começou, anos antes, quando Gerald Broflovski ainda era vivo: ansiavam pelo retorno a suas vidas, suas famílias, e pensavam constantemente nos companheiros que perderam, nos que ainda perderiam. Essa é a crueldade da guerra.

Kyle rezava pelos deuses que não perdesse mais homens até o fim daquele dia. Mas acreditava, também, que os deuses não ofereciam nada sem tomar algo em troca. Se o preço fosse a vida de seu irmão, ele não estava disposto a pagar.

Dentro da carruagem, Phillip mantinha-se escondido com um manto sobre a cabeça, encolhido no canto com o cetro em seus braços, da mesma maneira que o carregava o tempo todo. Depois da morte de Terrance, ele parou de falar. Era quase como se tivesse se esquecido do uso das palavras. Houve, ainda, uma especulação sobre se ele deveria realmente ser levado até o local onde, supostamente, haveria a troca. Gregory não cogitou, em momento algum, que essa troca realmente fosse ser realizada. Mas precisavam levar o cetro, de uma forma ou de outra, porque sua energia pulsante seria percebida de longe, especialmente por um mago experiente como Cartman. Por fim, foi de comum acordo que seria melhor ter alguém dentro da carruagem com o cetro do que simplesmente deixá-lo lá dentro à mercê – sabe-se lá o que Cartman havia planejado -, e considerando todos os pontos, Phillip havia deixado seu próprio irmão para morrer porque sabia que devia proteger o cetro acima de todas as coisas. Kyle confiava cegamente que ele seria capaz de arrancar a carne de um homem com os dentes, caso este tentasse tomar o objeto de seus braços. Não era mais capaz de usar magia, mas encontraria recursos muito mais primitivos para cumprir com sua função. Tirar o cetro de Phillip seria como arrancar o bebê dos braços de uma mãe, e Kyle não teria coragem para fazê-lo quando cogitaram incumbir outra pessoa de sua guarda.

Cartman já estava presente, é claro, com sua volumosa figura sobre a extravagante carruagem vermelha e dourada, dois cavalos e um cocheiro. A estrutura da carruagem era aberta, diferente daquelas usadas no reino, para o lazer. Essa era específica para a guerra, velha e gasta, mas ainda extraordinária. Era grande o bastante para acomodar uma estrutura fechada para o transporte de objetos. Armas, em especial.

-Olhe só. - Cartman disse com orgulho, projetando a voz para ecoar pelos ares, as mãos na cintura. Stan e Kyle se aproximavam a pé, a carruagem a alguns metros atrás deles. - Você fica mais bonito assim, duende, depois do estrago que eu fiz na sua cara.

De pé, logo atrás de Cartman, Kyle pôde reconhecer a face pálida de Kevin McCormick com um sorriso doentio nos lábios, corcunda e abatido. Era difícil enxergar e ouvir plenamente sob uma chuva tão grossa, beirando uma tempestade. Os trovões eram estrondosos e o vento era violento, congelante. Cartman não parecia nada incomodado com a chuva, quase como se estivesse se unindo a ela, como se comandasse o estouro dos raios. Parecia tão imponente lá em cima, mesmo que a elevação da carruagem não fosse tão alta assim. Kyle, em resposta, não se mostrava intimidado. Aproximou-se ainda mais dele, os pés afundados na lama, seus sapatos nobres arruinados, a barra da calça e do manto também. Stan andou logo atrás dele, a flecha preparada no arco abaixado, em prontidão.

Estavam na costa sul de Zaron, próximos aos pedregulhos e ao mar; o som agressivo das ondas quebrando nas pedras era eminente, quase superava o som da água que caía do céu. Em outra ocasião, as colinas do sul seriam um cenário deslumbrante, mesmo sob o céu negro pelas nuvens da tempestade.

Kyle parou a poucos metros de Cartman, os punhos cerrados, o arco em uma das mãos, expressão rígida no rosto. Ele também não parecia mais tão jovem quanto era. Essa era uma consequência da guerra; pouco a pouco, tomava anos da juventude de cada um deles.

-Onde está meu irmão, Cartman? - Perguntou na voz mais severa que Stan já ouvira sair da boca dele.

-Por que essa pressa? Vossa Graça tem algo mais importante para fazer?

-Depende. Se você não vai me devolver meu irmão, eu tenho o seu exército inteiro para massacrar.

O rosto molhado de Cartman se contorceu em uma careta tão cínica que Kyle levou a mão à barriga e prendeu a respiração durante alguns instantes, sem perceber.

-Kyle... Por favor. Não finja que o seu frágil coraçãozinho tira alguma satisfação do sangue derramado. É patético. - Cartman falava com todo o seu poder de persuasão, gesticulando como um verdadeiro governante que tenta tapear seu povo com falácias. - Eu sei que você não quer fazer isso, então só me dê o cetro. Ninguém precisa morrer. Vamos resolver isso como cavalheiros, que tal?

Kyle lançou um olhar breve a Stanley, cujo peito subia e descia em fúria. O olhar do guerreiro cruzou com o dele como se pedisse permissão para atirar uma flecha bem no centro vital de Cartman, mesmo que a chuva prejudicasse muito suas chances de acertar. Não podia enxergar direito, a pressão da chuva provavelmente alteraria sua mira e um confronto teria início, o que colocaria em risco mais vidas do que Stan podia lidar. Então, observou Kevin. Era curioso que Cartman tivesse escolhido trazer consigo um homem de uma única mão, que não poderia lutar por ele caso fosse necessário. Não era possível que essa possibilidade não tivesse cruzado a mente dele. Deveria haver alguma intenção maliciosa nisso. Quando Stan voltou a atenção ao seu rei, deu-se conta de que a presença do irmão de Kenny tornava a mente de Kyle nebulosa, tomada por pensamentos obscuros. Podia ver em seus olhos de esmeralda o quanto ele estava perturbado.

-Céus, Cartman. Eu deveria ter te deixado lá sangrando até a morte quando você era só um menino gordo e rejeitado. Eu tive tanta pena de você. Se os deuses tivessem sido bondosos o suficiente para me dar um pequeno, um mínimo vislumbre do monstro que você se tornaria... - Kyle falava com um ódio tão reprimido, acumulado durante anos, de forma a quase assustar o guerreiro ao seu lado. Stan quis colocar uma mão no ombro dele, mas não o fez.

Era inegável que as palavras de Kyle tocaram alguma ferida aberta no fundo de Eric. Foram pequenos sinais; as pupilas escurecidas, a saliva que se formou em sua boca, uma sutil variação na forma de respirar. Mas ao ponto em que o elfo terminou de falar, ele já podia contar novamente com a sua carapaça de sarcasmo.

-Vejo que você ainda precisa de uma ajudinha para se convencer. É compreensível. - Disse com uma risadinha forçada, estalando os dedos para Kevin, que parecia inquieto. - Ajude-me.

Prontamente, Kevin e o rei se dirigiram à parte fechada da carruagem – o movimento dos dois fez com que Stan erguesse o arco quase que instantaneamente -, um pequeno espaço escuro do qual puxaram violentamente Ike Broflovski de dentro. Foi Cartman quem o tirou dali, mas logo atirou sua forma pequena contra Kevin, que sacou a adaga do cinto e a levou ao pescoço do rapaz, segurando-o com o braço da mão amputada até que ele se pusesse de pé sozinho. Os joelhos de Kyle fraquejaram. Ele sugou o ar pela boca em um gemido doloroso, abafado pelo som da chuva. Levou um punho fechado em frente à boca, demonstrando fragilidade por não mais que cinco segundos. Seus olhos, entretanto, continuaram cheios de lágrimas não derramadas. Stan voltou a abaixar o arco lentamente, passando a língua pelos lábios devagar, sentindo o gosto da chuva.

Ike não usava nada para cobrir o tronco. Sua calça marrom estava rasgada nos joelhos. O único ferimento aparente era na testa, mas o sangue já estava seco, feio e marrom traçando uma linha até a sobrancelha. Era resultado do golpe que levou na cabeça quando foi sequestrado.

Sob a chuva, era difícil dizer se ele chorava ou não. Mas tremia – e muito – de frio e de pavor. Era tão difícil assistir àquele menino que ambos ainda tinham como uma criança que precisava de proteção, tão exposto e aterrorizado, sob a posse de uma força medonha como Cartman. Ike tinha as duas mãos atadas nas costas e não usava nada nos pés. Aágua lavava um pouco da sujeira, mas seu aspecto ainda era imundo. O que importava, ao coração de Kyle, era que ele estava inteiro.

-Ike... - Kyle murmurou amedrontado, dando um passo para frente, seu pé afundando mais ainda na lama.

-Espere, duende! - Cartman exclamou, terrivelmente empolgado. O mero tom de sua voz foi como uma faca atravessando o peito de Kyle. Ele não podia respirar. - Eu tenho uma surpresinha para você.

Nem bem Kyle pôde se recuperar da adagada no pescoço alvo de seu irmão mais novo, a quem deveria proteger de todas as coisas, e então veio uma imagem inimaginável: Kenny foi puxado pelo braço da mesma portinha da qual Ike saíra, sem demonstrar resistência, caindo de joelhos, semi-nu, de barba e cabelos raspados, o corpo coberto por cicatrizes e hematomas, olhos vermelhos. Sua cabeça continuou baixa até que Cartman o puxasse para colocá-lo de pé, impaciente.

-Levante, seu verme. - Ordenou, sacando sua espada da bainha.

Stan já estava mais do que arrependido por não ter enterrado sua flecha no coração de Cartman, ou pelo menos tentado. Agora, ele usava o corpo de Kenny como uma espécie de escudo.

Kyle deixou seu arco cair no solo, como se não tivesse mais forças para segurá-lo. Inclinou o tronco para frente e cobriu o rosto com as duas mãos, a chuva banhando suas costas violentamente. Cartman gargalhou de forma histérica, como uma criança triunfante pelo sucesso do seu plano. Stan alternava o olhar entre os reis, sua flecha voltada para o chão. Encarou o rosto de Kenny, que movimentava os lábios enquanto o fitava de volta, dizendo “atire” sem usar som. Stan secou os olhos com as costas da mão que segurava a flecha, duvidando do que tinha visto.

-Pode abaixar seu brinquedinho também, Marsh. Se fizer algo contra mim, o pescocinho do príncipe já era. - Cartman disse, mais sério, apontando com a cabeça na direção de Ike. Depois, voltando-se ao rei elfo, prosseguiu. - Dê-me o cetro, Kyle. Você veio até aqui sabendo que eu tinha o seu irmãozinho. Isso tudo é uma mera... - Ele gesticulava com a espada na mão, pesando, limitando o movimento. - Uma formalidade. Você já sabe que essa aberração aqui vai voltar. - Com a mão livre, Cartman agarrou o cabelo ralo de Kenny que começava a crescer de novo. Doeu, mas não o suficiente para que Kenny lhe desse a satisfação de um grito. - Eu não quero que ele morra. Não quero perdê-lo novamente, quero meu brinquedinho bem vivo pra eu poder testar os limites do corpo miserável dele. É isso que você quer? Que ele seja torturado diariamente porque você não quis me dar o que é do meu povo por direito?

-Você tem muita coragem pra falar do seu povo enquanto ele morre de fome, Cartman. - Kenny disse finalmente, expondo os dentes sujos de sangue pelas suas refeições de carne crua, o único alimento que ganhou enquanto foi prisioneiro.

Isso lhe rendeu uma porrada na cabeça com o cabo da espada. Ele não caiu para frente porque Cartman ainda segurava seu braço de forma grosseira.

-Cale a boca, infeliz. Eu estou negociando.

Kyle parecia genuinamente assustado agora. As lágrimas secaram em seus olhos arregalados, a boca entreaberta o tempo inteiro. Isso fez Cartman crescer em confiança, o peito estufado, satisfeito com a reação que obteve. Kenny demorou para recuperar os sentidos, chacoalhando a cabeça como um cachorro molhado para afastar o acúmulo de água dos cílios. Quando ergueu um pouco o rosto, fitou Kyle demoradamente, a expressão carregada de vergonha. Como o olhar que lhe ofereceu na noite em que contou que foi enviado por Cartman ao reino dos elfos.

-Vamos, Kyle. Você não precisa ser responsável pela morte do seu irmãozinho. Tudo o que você ama está aqui na minha mão, e eu sou tão generoso que estou disposto a te dar os dois por uma coisa só.

-Kyle, não! - Ike gritou, impulsionando o corpo para frente de tal forma que Kevin teve dificuldade de segurá-lo. A lâmina pressionou mais fundo contra sua pele, fazendo com que ele recuasse. Definitivamente, Ike estava chorando agora. - Não dê nada a esse filho da puta!

-Mas vocês estão metidos hoje, o que é isso?! Vocês esqueceram o lugar de vocês? São moedas de troca, calem a porra da boca.

Tudo o que aconteceu em seguida foi muito rápido, muito mais rápido do que pode ser contado em palavras.

Primeiro, uma trovoada rompeu os ares e iluminou o escuro daquela tarde chuvosa, enquanto Cartman prosseguia com algum discurso irônico, distraído, deleitando-se na vitória momentânea de encurralar Kyle contra a parede. Stan franziu as sobrancelhas, sendo o primeiro a perceber a presença de mais uma pessoa por trás da carruagem desnecessariamente exuberante. Na realidade, Stan demorou a se dar conta de que aquilo se tratava de uma pessoa, de fato. Pelos movimentos cautelosos, mas ainda sim selvagens e orgânicos, teve certeza de que se tratava de um animal selvagem espreitando a cena. A chuva também prejudicava sua visão. Foi somente quando homem estava perto o suficiente, preparando para subir de fato na carruagem, que Stanley reconheceu o rosto do Toupeira, concentrado. Por qualquer razão que fosse, ele estava besuntado de lama pelos braços, rosto e cabelos – que eram as partes do seu corpo visíveis de onde Stan estava. O coração batia disparado em seu peito, cheio de precipitação. Rezou para que Kyle não o visse, para que nada em sua expressão facial pudesse delatar que Christophe se aproximava sorrateiramente com uma adagada por trás deles.

Eventualmente, Kyle o viu também. Mais do que isso; trocaram um breve contato visual enquanto Cartman continuava a usar suas palavras mágicas de chantagem. Stan percebeu que seu receio havia subestimado a ligação entre Kyle e Christophe, pois o rei leu prontamente a mensagem nos olhos animalescos dele: “distraia-o”.

Christophe conseguia ser assustadoramente silencioso, com frequência passando aos outros a impressão de que surgia do nada absoluto.

-Talvez... Você tenha razão, Cartman. Eu... Faço qualquer coisa que você quiser. Mas pelo amor de todos os deuses, não os machuque.

Havia um brilho lascivo nos olhos de Cartman.

-Bom menino. Está tudo bem, Kyle. Apenas me dê o cetro e tudo ficará bem.

-Ele está mentindo! - Ike gritou esganiçado. - O que deu em você?!

Agora, Christophe estava sobre a carruagem, atrás de Cartman, o que o tirava do campo de visão. Seus passos eram tão leves que nem a madeira chegava a ranger, não provocavam qualquer movimento perceptível. A adaga firme em sua mão. A chuva fazia a lama escorrer pelo seu rosto.

-Está tudo bem, Ike. - Kyle disse com a voz quase chorosa.

-O que impede esse gordo imbecil de matar todos nós depois que ele tiver o cetro?! Nosso pai nunca permitiria isso.

Por sorte, Cartman parecia extasiado demais após ouvir que arrancaria dessa confabulação aquilo que mais desejava. Nem mesmo as palavras de Ike foram suficientes para que ele desviasse o foco de Kyle, seu rosto repleto de vitória. Mas Kevin não estava sob efeito desse deleite. Tampouco Kenny. E foi quando o mais novo dos McCormick virou o rosto de lado por instinto, percebendo a presença estranha, que o mais velho notou o movimento sutil da cabeça de seu irmão, tudo mudou de rumo. Quando Kenny se deu conta de que não deveria ter se movido, era tarde demais. Aqueles malditos três centímetros custariam caro.

Ike foi lançado com força para frente, quase caindo da carruagem. Bateu com o queixo no chão por não poder usar as mãos ao aterrizar. Kevin lançou o próprio corpo contra o de Christophe com a fúria de um leão atacando uma zebra, derrubando-o violentamente contra o chão da carruagem. O Toupeira bateu a cabeça com força e não teve tempo de reagir antes de sentir a ponta de uma lâmina contra o seu pescoço, apertando os olhos, esperando pela dor. Mas a dor não veio. Era apenas para mantê-lo imóvel, sem reação. Quando separou as pálpebras, ofegante, sentiu a ardência da chuva que vinha diretamente de cima agora, a água entrando pelas suas narinas, agredindo seu rosto. Kevin estava sentado sobre seu abdômen, e a primeira coisa que o Toupeira viu foi o sorriso demoníaco do homem cuja mão ele havia amputado. Não houve tempo para nada.

-Você deveria ter arrancado a esquerda, filho da puta. - Kevin murmurou, erguendo sua única mão com a adaga. - Eu sou canhoto.

Kenny só teve tempo de gritar “Kevin, não”, mas a frase gutural foi interrompida pela metade quando a lâmina entrou inteira no peito de Christophe, emitindo um som grotesco de carne sendo dilacerada, afundando entre as costelas dele, perfurando o pulmão. Ike gritou, encolhendo-se no canto. A adaga saiu banhada de sangue, pronta para um novo golpe, ainda mais violento, ambos do lado esquerdo do peito dele, como se procurasse pelo coração que ainda batia. Um murmúrio baixo demais escapou os lábios roxos de frio do Toupeira, algum francês de baixo calão, encolhendo o rosto na primeira demonstração de dor, caindo com a cabeça para trás. No terceiro golpe, Christophe gritou. Ainda respirava, mas como um animal abatido. Sua boca se encheu de sangue.

Kyle levou as duas mãos à boca. Foi tomado pelo instinto primitivo de gritar, mas não houve força. Tudo o que saiu foi fino e rompido, até que suas pernas não suportassem mais e o derrubassem na lama de joelhos, encolhido em si mesmo, abaixando a cabeça porque não havia mais como enxergar.

-Merda. - Kenny sussurrou, apertando os olhos, mordendo o interior da boca. - Merda, Kevin.

Cartman endireitou-se, sacudindo as bochechas largas por um momento para fingir que não estava atordoado, apontando com a espada na direção de Kevin. O outro braço prendia bem o pescoço de Kenny, firme a ponto de quase sufocá-lo.

-Muito bem. Mas eu não quero nenhum cadáver sujando a minha carruagem. Livre-se disso.

Kevin ergueu-se lentamente, uma perna de cada vez, e não fez mais do que chutar o corpo ainda vivo de Christophe até que caísse da carruagem direto na lama, que amaciou a queda. Kyle imediatamente rastejou até ele, agora as mãos e todo o corpo chafurdando no solo, agarrando-se a ele de forma desesperada, puxando seu peso para o colo e debruçando-se sobre Christophe para desfazer-se em lágrimas esganiçadas, todo som saindo com dificuldade lá do fundo da garganta. Stan precisou tirar forças do canto mais remoto de sua alma para não avançar sobre aquela carruagem e destruir o rosto de Kevin McCormick com os próprios punhos, depois fazê-lo engolir a lâmina de sua espada. A única coisa que o segurou foi o choque. Não conseguiu fazer suas pernas funcionarem, não conseguiu reagir, nem sequer chorar. Era absolutamente inacreditável que aquele homem que o segurara em seus braços quando Stan estava mergulhado em descontrole, aquele humano tão forte, tão imponente, tão inabalável, não era possível que ele tivesse caído. Ele sobreviveria. Stan apertou os punhos em torno do arco e da flecha, com tanta força que quase a quebrou.

Stan não percebeu no momento, mas estava hiperventilando. Quando se deu conta, achou que a falta de ar fosse matá-lo ali mesmo. Beirava um ataque de pânico.

Kyle só ergueu a cabeça quando sentiu uma mão fraca tocando seu braço, deslizando sobre a parte superior das suas costas. Olhou bem para o rosto dele, seus olhos castanho-esverdeados bem abertos, o sangue escuro que escorria de sua boca e o fazia tossir. O rei passou a mão por baixo da cabeça dele, carinhosamente levantando-a para que ele não se afogasse. Nunca vira o rosto de Christophe bonito daquela forma, a expressão em paz tão diferente daquela agressiva que sempre carregava no semblante. As gotas de chuva pela pele dele, mescladas ao barro, lavando seu rosto como em um ritual. Kyle passou a mão pela bochecha dele, limpando a lama enquanto o acariciava, abaixando o rosto para que sua testa tocasse a dele. O peito transbordava sangue sobre as roupas e a sujeira, era difícil identificar a extensão do ferimento. Kyle não tentou fazê-lo. Apenas esteve ali, sentado com ele, até que suas mãos se encontrassem e os dedos entrelaçassem apertado, no último suspiro de força vital que ele tinha a oferecer.

-Kyle. - Chamou de maneira quase inaudível.

-Shh. - O elfo engoliu a saliva na boca, o rosto tão molhado pelas gotas frias e pelas lágrimas quentes. A mão livre alisava o cabelo castanho dele para trás. - Não fale. Você vai ficar bem.

Christophe sorriu, da forma que fazia quando não queria dizer diretamente que Kyle havia falado uma bobagem, mas ele nunca foi bom com palavras sutis. Aquele sorriso fez com que o rei começasse a soluçar em pranto. Mal podia manter os olhos abertos.

Ele sabia que não podia se desfazer dessa forma. Não podia se desconectar do que acontecia em volta, dos dois exércitos que esperavam para tirar a vida um do outro, do seu irmão mais novo que chorava escandalosamente agarrado à beirada da carruagem, amarrado e ferido, sob a posse do inimigo. Não podia se esquecer de Kenny – e céus, como poderia – naquele estado, magro e violentado, que não teria o alívio da morte tão cedo. Kyle duvidava até aquele momento de que aquilo tudo o que viveu na velha casa dos McCormick tinha sido real. Duvidava que Kenny estivesse ali mesmo. Tudo tinha uma textura surreal demais. O Toupeira arfando por ar, afogando-se no próprio sangue, com os pulmões perfurados, o peito aberto, nada disso parecia real. Kyle se agarrou a ele com ainda mais força, a pouca que tinha.

-Ce fut un plaisir de vous servir. - Ouviu Christophe sussurrar ao seu ouvido.

-O quê? - O rei perguntou, aflito, fungando e secando o próprio rosto, tentando mantê-lo focado. - Eu não entendo.

O Toupeira não perdeu tempo em explicar. Ergueu a palma grande e imunda para tocar o rosto do elfo delicadamente, deslizando-a pela pele macia dele, a manchá-la de lama e de sangue. Tudo parecia ter se tornado uma coisa só, àquela altura.

-Olhe só, Kenny. - Cartman disse casualmente, enquanto outro raio estourava no céu, mandando um raio luminoso sobre eles. Sua voz quase fez os ouvidos de Kenny sangrarem. Era tudo o que nenhum deles gostaria de ouvir naquele momento. - Talvez eu tenha escolhido o homem errado para fazer de prisioneiro. Acho que ele não ficou desse jeito quando você morreu, viu só?

-Majestade. - Kevin chamou, antes que seu irmão tivesse a chance de responder qualquer coisa. Estava com os joelhos flexionados, os braços apoiados nas duas coxas, como se houvesse acabado de se recuperar de um transe. Ele suava, mesmo encharcado e com o vento gelado soprando contra eles. Não se preocupou em recolher Ike do chão, parecendo seguro de que ele não iria a lugar nenhum. E de fato, Ike se contorcia em posição fetal, sem forças para se colocar de pé. Kevin esperou retomar o fôlego antes de continuar. Apontou para o horizonte, e quando Cartman olhou naquela direção, havia um de seus cavaleiros se aproximando sobre um cavalo negro, em galopes velozes. - O exército deve estar ficando impaciente.

-Não é para menos. Eu não pensei que isso fosse levar tanto tempo. Estou ficando bastante impaciente. Kyle, recomponha-se, eu não tenho o dia inteiro. Tenho uma guerra a vencer.

Após bruscas tomadas de fôlego, o guerreiro elfo retomou a posição, engolindo toda e qualquer possibilidade de lágrima naquele momento. Christophe ainda respirava, e essa era a parte mais difícil, que não permitia que Kyle soltasse sua mão e se concentrasse em qualquer outra coisa. O choro alto de Ike ressoava pelos ouvidos de Stan, trazendo lembranças vívidas da noite em que Kyle foi sequestrado, do amanhecer em que encontrou Christophe atirado ao chão e teve certeza de que ele não sobreviveria. Era como se vivesse novamente o pavor, mesclado ao cheiro de sangue e os gritos descontrolados de Ike, o tapa que Christophe lhe deu, as ondas devastadoras de desespero quando pensava que havia perdido Kyle para sempre, tudo embolado no mesmo cesto junto com a guerra, com a morte de seus companheiros.

Não havia acabado. Ainda não havia acabado.

O galope do cavalo foi ficando cada vez mais forte. Os outros animais presentes pareciam inquietos com a chuva. O pensamento de Stanley corria tão rápido que não soube se a aproximação daquela figura nova significava perigo, se deveria apontar sua flecha ou sua espada a qualquer um que tentasse interromper o momento que se desenrolava diante de seus olhos, Kyle implorando baixinho para que Christophe não desistisse, para que ele aguentasse, embora ele já estivesse completamente entregue.

O cavaleiro que desceu do alazão usava a armadura completa, dos pés à cabeça, inclusive ocultando seu rosto. O brasão de Kupa Keep era apenas mais um dos símbolos excessivamente ricos e arrogantes que os elfos não podiam compreender, mas o fato era que aquele brasão estava nos uniformes de todos os humanos da guarda real e em seus objetos também. O cavaleiro fez uma reverência ao seu rei, cumprimentando-o como “Alteza”, mas o elmo abafou a palavra tanto quanto o barulho da chuva.

-Trago um recado, meu Senhor.

-Ah, que bom. Pelo menos enviaram alguém que não é completamente inútil. - Respondeu, dirigindo o olhar rapidamente a Kevin. - Alguém que tem duas mãos funcionais e sabe usar uma espada. Aproxime-se. Estou no meio de algo importante aqui.

Cartman bufou sem qualquer paciência. Passou o braço por baixo do de Kenny para puxá-lo com força contra seu próprio peito, levando a mão ao pescoço do loiro – cheio de hematomas roxos e esverdeados nas extremidades – para apertá-lo com força, a ponto de fazer com que Kenny tossisse, sem ar. A chuva, quando caía sobre a armadura de metal do cavaleiro, emitia um barulho ainda mais estrondoso, quase ensurdecedor. Prosseguiu:

-Certo, ouçam. Eu não tenho mais tempo para essas frescuras. Você deu sorte que não foi a garganta do seu precioso irmão, era para você estar chorando sobre o cadáver dele agora. - O rei apontou a arma na direção de Ike, que agora levantava a cabeça e o encarava com olhos arregalados. - Mas eu vou te dar mais uma chance. Espero que você não precise aprender de novo. Eu me pergunto se seria mais insuportável para você perder um membro da família ou o homem que você ama. Dê-me essa merda desse cetro agora, Kyle.

Mas o rei elfo não parecia ouvir uma palavra enquanto Christophe parava de respirar em seus braços. Ele continuava de olhos abertos.

-O nosso exército é mais forte! - Stan gritou sob a chuva, lançando o arco e a flecha ao chão com toda a força, arrancando o próprio elmo da cabeça. Sua garganta latejava. A chuva banhava seus cabelos, escorria vigorosamente pela sua face. - Essa é uma guerra perdida e você sabe, Cartman! Você não vai ganhar porra nenhuma tirando a vida de mais ninguém, nós não vamos te dar nada! Pode dar a ordem pros seus homens. Nós vamos lutar.

-Cale a boca, Marsh! Não é porque você está sempre mamando na realeza dos bichinhos da floresta que você manda em bosta nenhuma. - Cartman falava cuspindo como um homem louco agora, e todos podiam sentir a razão: o poder que o cetro emanava quase podia ser escutado, literalmente escutado, como algo físico e pulsante, uma música alta demais para ser ignorada. Aquilo o estava embebendo, pouco a pouco. Ele chacoalhava o corpo de Kenny enquanto falava, voraz e agressivo, como se ele fosse um boneco de pano. Parecia-se muito com uma criança insatisfeita, pelo menos aos olhos de Stan. - Você está exatamente onde você pertence, Kyle. Na lama. Você não serve nem como rei das moscas. Desista, seu merdinha, você não pode salvar mais ninguém.

Nenhum deles havia percebido, nesse meio tempo, que o cavaleiro subira na carruagem; sua armadura fazia um barulho metálico quando ele andava. Posicionou-se atrás do rei em guarda, mesmo que Cartman agisse como tivesse se esquecido que ele estava presente. Kevin McCormick era o único que prestava alguma atenção no quadro geral, encarando o cotoco enfaixado onde ficava sua mão, quando ele ainda era um homem inteiro. Levantou a cabeça lentamente, a franja emaranhada caída sobre os olhos, protegendo-os um pouco da tempestade. Os trovões pareciam ainda mais frequentes e mais fortes, como se tremessem o solo a cada rompante no céu. Kevin ergueu o queixo lentamente, a boca entreaberta, olhando para cima. O céu acima de suas cabeças era imenso, infinito, tomado por escuridão. Virou o rosto de lado, os olhos com dificuldade de se focar em qualquer coisa. Sabia que havia gritos ao seu redor, Stanley sacando a espada e se aproximando da carruagem, Cartman derrubando o corpo de Kenny no chão de madeira da mesma e chutando-o enquanto gesticulava com a mão, mas Kevin não ouvia nada do que eles diziam.

De repente, seus olhos encontraram os de Kenny, que eram assombrosamente azuis. E sentiu-se envergonhado. Sua respiração era trêmula, irregular. Kenny o encarava com os lábios fechados em uma linha reta, como se sentisse um gosto amargo na boca. Sacudiu a cabeça levemente, sem força para levantá-la por completo.

Ike escondia a cabeça entre as coxas a essa altura, encolhido em uma pequena bolinha no canto, como se rezasse para que aquilo tivesse um fim – qualquer fim – logo.

Cartman segurava o cabo da espada com as duas mãos, como se pronto para golpear o corpo de Kenny aos seus pés. Pro inferno com a imortalidade, pro inferno com negociações. Era como se o cetro exigisse um sacrifício de sangue.

Kyle pôs a mão leve sobre o rosto de Christophe, agora completamente limpo pela chuva, a textura grosseira e gelada da pele dele contrastando com o calor de sua palma, e deslizou os dedos lentamente para fechar os olhos dele devagar. A tempestade decaía com tanta avidez sobre seus corpos que podia engoli-los a qualquer momento, e então os conflitos dos homens não teriam qualquer importância.

Até que tudo parou.

O único que realmente pôde ver a origem do acontecimento foi Kevin McCormick. O que todos os outros puderam ouvir foi um gemido gutural, fraco e desesperado, enquanto os olhos do rei humano se enchiam de medo. E uma lâmina reluzente, manchada de vermelho, comprida e afiada, que saía de suas entranhas, bem no meio do estômago. A espada rompera todas as vísceras, dilacerando desde a carne das costas até surgir do outro lado, imunda e melada do sangue grosso que logo seria lavado também pela eterna chuva. Stan largou sua espada ao chão e levantou a cabeça devagar, com os olhos arregalados, fixos no rosto de Eric Cartman. Nunca vira alguém tão aterrorizado em toda a sua vida, todos os anos de contato com a guerra e a morte. Kenny engatinhou com dificuldade para perto de Ike, ainda com as mãos atadas, colando o corpo ao do jovem como se para protegê-lo daquela visão. O cavaleiro que se punha atrás de Cartman teve dificuldade para puxar a espada de volta até retirá-la do corpo dele, usando o pé para impulsioná-lo para frente, de forma que o corpo semi-vivo de Eric caísse da carruagem de bruços, impactando com tanta força contra o chão que chegou a estremecer o solo. Caiu logo ao lado de Christophe, que jazia no colo do rei elfo. Kyle não viu o golpe sendo proferido, não viu a queda, viu apenas o rosto pálido e amedrontado de Cartman se contorcendo, com os olhos cor de mel tão vivos e abertos, implorando por socorro bem ao seu lado. Ele não conseguia dizer uma palavra a esse ponto, mas sua mão gorda torcia os dedos de maneira doentia e usava o último suspiro de força para erguê-la na direção de Kyle, arranhando o solo, sujando a mão na lama, bem como seu corpo inteiro agora estava mergulhado na mistura de grama e barro.

O cavaleiro delicadamente passou os dedos pela lâmina da espada, a limpar o sangue dela de forma superficial, antes de guardá-la na bainha. Cartman grunhia baixo e vomitava o sangue, que saía também do nariz, melando o queixo e o maxilar. O cavaleiro retirou o elmo com as duas mãos, revelando o rosto severo de Marjorine, agora de cabelos curtos, sem qualquer maquiagem no rosto.

-Butters. - Kenny murmurou, incrédulo.

-Quantas vezes eu preciso te dizer, Eric? - Marjorine falou com ares surpreendentemente gentis. - Não mexa com os meus irmãos.

Não foram muitos minutos de agonia até que Cartman fosse levado embora, e não houve ninguém para fechar seus olhos. Kyle o observava como se estivesse em um sonho: como se tivesse morrido ali mesmo, junto com Christophe, e agora entrasse nessa zona turva que projetava uma realidade abandonada. Mas era real. Ele não conseguia se mover. As pontas de seus dedos permaneciam afundadas na carne de Christophe, que enrijecia conforme o calor deixava seu corpo por completo. Os céus, como que por milagre, começavam a reter a chuva. Pouco a pouco, a intensidade das gotas diminuía e não havia mais trovões.

Marjorine sacudiu os cabelos curtos e molhados, que pareciam ainda mais louros agora, e então apressou-se para tomar a adaga no chão – a mesma que roubara a vida de Christophe – para cordar as amarras das mãos de Kenny, que ainda a olhava com perplexidade, custando a compreender que ela estava realmente ali. Era tomado pelo mesmo sentimento de Kyle, o mesmo que Stan e Ike e Kevin também compartilhavam. Foi tudo rápido demais para o cérebro processar. Mas quando sua irmã o puxou vigorosamente para um abraço tão apertado que as costelas lesionadas doíam, Kenny soube que ela estava realmente ali.

-Acabou. - Ela sussurrou ao seu ouvido, abraçando-o ao chão da carroça, beijando logo abaixo da orelha. - Acabou, Kenny.

Stan, enquanto isso, aproximava-se de Kyle quase que engatinhando também, sem força para ficar de pé, com os músculos tremendo pela adrenalina que ainda corria em seu corpo. Encostou o rosto na nuca dele e o abraçou firmemente por trás, o que fez com que o rei transbordasse novamente e começasse a chorar, encolhendo-se em si mesmo, deitando a cabeça sobre o peito de Christophe, sujando o próprio rosto com o sangue dele sem perceber. Stan descansava uma mão sobre a testa do francês, alisando seus cabelos sem perceber, enquanto o outro braço mantinha o corpo de Kyle perto, o quanto fosse fisicamente possível.

Quando partiu o abraço com Kenny, Marjorine correu um polegar pela bochecha ferida dele e ofereceu um sorriso triste. Já não chovia mais. Ela voltou seu olhar a Ike, que não a reconhecera como princesa e a encarava assustado no canto, em uma posição desconfortável. Ela não parecia um homem, mesmo vestida como um. Aproximou-se do príncipe com a adaga da forma mais gentil possível, mas ele se retraiu, escondendo o rosto entre as pernas. Foi Kenny quem tomou a adaga da mão dela para libertar Ike das amarras nas mãos. Acariciou o ombro dele, beijou o topo de sua cabeça e repetiu a mesma palavra que sua irmã havia lhe dito:

-Acabou, Ike. Está tudo bem.

Agora, realmente acreditava nisso.

Ike assentiu com a cabeça, ainda tremendo e sem poder fechar os lábios, mal piscando. O frio era quase insuportável, mas seu corpo estava fervendo por dentro. Voltou o olhar ao seu irmão, que ainda estava no chão, abraçado ao corpo do Toupeira e recolhido nos braços de Stan. Quando se deu conta de que era encarado, Kyle ergueu a cabeça na direção dele, as lágrimas escorrendo de alívio e de luto. Deitou a cabeça pesada de Christophe cuidadosamente no chão, soltando-o de seus braços. Stan se levantou, cobrindo o rosto com as duas mãos. Ike aterrisou no chão, praticamente levando um tombo ao descer da carruagem, lançando-se aos braços de Kyle na lama, apertando-o desesperadamente, com o afinco de quem acreditava que nunca mais poderia fazê-lo.

E ali restava Kevin McCormick, ainda de pé sobre a carruagem, arfando por ar, engolindo seco enquanto voltava os olhos de um lado ao outro. Era difícil ler seu rosto. Não parecia sentir medo, tampouco aliviado. Não parecia feliz ou triste. Não havia um senso de derrota ou de vitória. Quando Marjorine fez menção de dizer algo a ele, Stanley agarrou a própria espada no chão avançou em sua direção como um animal, trotando, agarrando o farrapo da camisa de Kevin para puxá-lo de cima da carruagem, jogando-o ao chão de costas. A queda fez com que ele encolhesse os membros e sugasse o ar pela boca.

-Stan, não! Não, não, não! - Kenny gritou.

-Seu filho da puta! - Stan disse entredentes, com os olhos cheios de lágrima. Não teve tempo sequer de erguer a espada antes que Kenny saltasse por trás dele e o agarrasse, segurando seus braços. Kenny passara uma longa temporada sem comer e sem sair de uma jaula. Mesmo antes disso, foi prisioneiro no reino de Kupa Keep e no reino dos elfos. Seu corpo não era forte o bastante para segurar a fúria de um guerreiro treinado, com músculos tão trabalhados, uma máquina de chacina.

-Stan, por favor. - Marjorine disse em um tom aflito, saltando da carruagem perigosamente próxima ao corpo sem vida de Cartman. - Kyle! Faça algo!

Os olhos verdes de Kyle pareciam tão vazios que o estômago de Marjorine revirou, como se soubesse que não podia contar com qualquer resposta dali. O rosto pequeno do elfo estava inchado e vermelho, o nariz fungando, os olhos molhados de lágrimas quentes em contraste com a pele gelada pela chuva. Lentamente, Kyle se levantou, passando a mão no topo da cabeça de Ike. Kevin cobria o rosto com o braço mutilado, enquanto Kenny lutava arduamente para segurar a mão de Stan que apertava o cabo da espada como se sua vida dependesse disso.

-Stanley. - Kyle disse simplesmente, apático, olhando-o de lado.

Isso foi o suficiente para paralisá-lo, e era visível a insatisfação no rosto do guerreiro ao apertar os olhos e abaixar a espada, golpeando Kenny para trás com o cotovelo afim de se soltar dele. O loiro permitiu, dando um passo embriagado para trás. Era como se as palavras do rei elfo tivessem algum tipo de encantamento sobre ele. Kevin chorava agora, mordendo o próprio pulso, não se sabia se por alívio ou pavor.

-Ele matou o Toupeira. - Stan murmurou, tão magoado e raivoso, esforçando-se para manter a voz sob controle.

-Eu sei disso. - Kyle umedeceu os lábios, lágrimas rolando lentamente pelas bochechas coradas. Sua voz ainda era rouca e chorosa. - Sangue demais já foi derramado. Por favor...

A porta da carruagem dos elfos se abriu, a alguns metros deles. Sem o barulho da chuva, era possível ouvir o rangido. Uma perna, de pé descalço e pele muito branca, apareceu. Depois a outra. Phillip colocou-se de pé da forma mais sóbria que fizera desde que Terrance morreu. Seus pés afundavam na lama, mas seus passos ainda eram leves como os das fadas do Arvoredo. O cetro não era envolto por coisa alguma: descansava nu contra sua pele, pressionado contra o peito, firme nas duas mãos do mago. Assim que ele começou a se aproximar, decaiu um raio de luz por entre as nuvens, banhando-os com o seu calor. Ike levantou a cabeça devagar, a boca entreaberta, assistindo às nuvens se afastando umas das outras devagar. Kevin sentou-se, ainda acuado como um bicho, a respiração pesada. Mas Stan guardou a espada na bainha e engoliu o acúmulo de saliva, compenetrado em Phillip.

O pequeno mago atravessou todos os presentes com seus imensos olhos azuis presos na figura de Marjorine. Ela virou o rosto de lado, sutilmente, umedecendo os lábios volumosos e sugando o ar pela boca em um gemido surpreso quando Phillip se ajoelhou à sua frente, entre os dois corpos sem vida, abaixando a cabeça e erguendo o cetro nas duas mãos para ela.

-O cetro me diz que agora posso devolvê-lo para sua verdadeira mãe. - Phillip disse em uma tímida voz baixa.

Marjorine lançou um olhar questionador na direção do rei elfo, que puxava Ike sob a proteção do seu braço e deitava a cabeça de seu irmão em seu peito, acariciando seus cabelos negros. O elfo afirmou com o olhar, assentindo.

-Kyle. - Stan disse em hesitação, mas não de forma convincente, pois estava tomado por uma energia fleumática que amansava a respiração de todos eles.

Mas Kyle apenas fez uma reverência.

-Vida longa à rainha.


 

* * *


 

Christophe DeLorne foi sepultado no cemitério élfico, sua verdadeira casa. Marjorine tinha conhecimento de que era um humano criado em Kupa Keep, e se ofereceu para procurar a família dele para prestar as cerimônias, talvez enterrá-lo junto aos pais, mas Kyle recusou tudo prontamente. Christophe sempre lhe dissera que sua família eram os elfos, da forma grosseira que sabia falar sobre esse tipo de coisa. Recebeu, portanto, os rituais de sepultamento de seu povo.

O cemitério ficava à beira do lago, que estava particularmente azul naquela manhã e refletindo os raios de sol como um espelho. Stan chorou silenciosamente enquanto Gregory e Wendy cantavam cantigas humanas pelas quais o Toupeira tinha grande apreço (era a única coisa que realmente podia fazê-lo chorar quando bebia). Não foram muitas pessoas que compareceram à cerimônia, mas por motivos diferentes do que se imaginaria; o povo élfico o tratou como um verdadeiro herói. Assassinar um rei era um crime gravíssimo em Zaron, independente de quem você fosse. Todos os presentes concordaram em mudar um pouco a história do que realmente aconteceu para proteger Marjorine; acordou-se que Christophe tirou a vida de Cartman e Kevin o assassinou por isso. Mesmo que o Toupeira fosse extremamente fechado e grunhisse para a maioria das pessoas, era adorado no reino dos elfos e o dia de seu enterro foi um dia de dor. A cerimônia em si, entretanto, foi fechada. Ele não gostava de multidões.

Marjorine esteve presente, de braços dados com Baahir, que a abraçou apertado quando ela chorou. Até mesmo o choro a deixava bela, propriamente vestida, não mais como uma princesa. Seu vestido não era excessivamente volumoso nas saias, com discretos babados de renda no colo e nas mangas, e a parte debaixo parecia uma pintura de diversas flores em vermelho e verde, pequenas e delicadas, mesclando tão bem com o fundo preto do tecido. A coroa extravagante de Kupa Keep, em diamantes, deixava-a ainda mais bonita. Seu povo a recebeu de braços abertos com a notícia da morte do tirano, pois ela sempre foi o elo que mantinha o reino de Kupa Keep de uma rebelião que tomaria a cabeça dos monarcas. Craig, Trent, toda a armada de brutamontes se reverenciaram diante dela. Kupa Keep não chorou a morte de seu rei.

Henrietta também usava preto, um lindo vestido de mangas longas e babados na ponta, mas no colo era branco com botões e um baço em torno do pescoço. O volume de sua barriga era discreto ainda, visto que era uma mulher gorda, mas quem a conhecesse de verdade podia reconhecer o brilho da gravidez a uma boa distância. Ela chorou a cerimônia inteira e também fez chacota da própria hiper-sensibilidade, enquanto usava um lencinho preto para limpar a maquiagem borrada dos olhos. Token pôs a mão em seu ombro em dado momento, enquanto ela fitava a sepultura com o nome de Christophe DeLorne, e ofereceu um sorriso paternal.

-Não sei como vou criar duas crianças sozinha, Token. Não sei como vou criar um elfo grandioso o bastante para fazer jus ao nome desse homem.

-Você não está sozinha. - Ele disse, abraçando-a.

Surpreendentemente, Kyle não chorou durante o enterro. Esteve bastante silencioso, com as mãos unidas em frente ao corpo. Ike permanecia inconsolável, o que fez bem a Stan, que se responsabilizou por tomar conta dele e acabou por se distrair de seu próprio luto. Kyle os observava de longe, isolado próximo ao túmulo de seus pais. Apesar de tudo, havia em seu peito uma parcela de alívio por não acrescentar mais um Broflovski a essas sepulturas. Ainda se perguntava o que teria acontecido se Christophe não fosse tão insuportavelmente teimoso a ponto de segui-los a cavalo contra as ordens de que ele ainda não estava forte o bastante para confrontar ninguém.

Em dado momento, os olhos de Kyle cruzaram com os de Baahir, e o humano lhe ofereceu um sorriso sincero. O peito do rei se encheu de gratidão.

-Você está bem? - Ouviu a voz familiar de Kenny logo atrás dele. Quando virou o rosto, encontrou-o mais perto do que esperava.

Ver aquele rosto marcado derreteu todos os pensamentos e tudo o que havia acumulado no coração de Kyle. Sob a luz do sol, vivo e um pouco mais gordo do que da última vez que se encontraram, ele não podia acreditar que Kenneth McCormick continuava ali, de pé, depois de vê-lo morrer bem à sua frente, depois de segurar seu corpo morto e se sujar do seu sangue exatamente como fizera com Christophe. Os olhos de Kyle se encheram de lágrimas, mas ele disfarçou com um sorriso genuíno, apenas permitindo-se ser abraçado pelo corpo magro e quente de Kenny, escondendo o rosto em seu ombro ossudo, apertando-o nos braços como se ele pudesse sumir a qualquer momento.

-Eu sinto muito. - O loiro sussurrou contra os seus cachos ruivos, subindo uma mão carinhosa pela nuca do elfo.

Sentia-se, de alguma forma, responsável pelo que houve com Christophe. Mesmo que não tivesse sido diretamente Kenny quem arrancou-lhe a vida, sentia-se responsável também pelo monstro que Kevin se tornou. Por tê-lo entregue, por ter feito Christophe amputar a mão dele em vez de protegê-lo, por ter sido infiltrado, por Pip e pelo marido de Henrietta, por tudo. Não havia uma quantidade limitada de vezes que Kenny precisaria morrer para se isentar dessa responsabilidade. No entanto, Kyle permitiu que seu irmão vivesse para que decidissem o que fazer com ele – estava devidamente trancafiado em Kupa Keep, por enquanto – e ainda erguia aqueles imensos olhos verdes para enxergá-lo com algo que se parecia com admiração. Kenny não se sentia merecedor disso, de maneira alguma.

Kyle se colocou nas pontas dos pés, pressionando os lábios contra os do loiro, sentindo a textura ferida e ao mesmo tempo macia, confortável, quente e úmida. Beijou-o sem usar a língua, abraçado ao seu pescoço, os olhos fechados, colocando-se nas pontas dos pés. Boa parte do seu peso recostava-se contra ele.

-Fique aqui comigo. - Kyle murmurou em necessidade, sem interromper o beijo. Não havia nada de lascivo naquele toque. Deslizou a mão pelo peito de Kenny, pressionando as pontas dos dedos na carne dele sob o tecido grosso da vestimenta. - A guerra acabou. Você não tem que voltar.

-Seu povo ainda me vê como um traidor.

O elfo subiu as duas mãos pela parte de trás da cabeça dele, passando os dedos por dentro dos cabelos loiros, roçando o nariz lentamente pelo de Kenny, que abaixou o rosto o bastante para descansar a testa contra a dele.

-Não há nada que o tempo não cure, Kenny.

O humano sorriu, pois finalmente podia ouvir alguma perspectiva de futuro, alguma frase esperançosa, alguma luz após passar tanto tempo vivendo como animal – senão pior – e acreditando que nunca mais sentiria aquele toque macio. Alcançou a mão de Kyle com a sua e entrelaçou os dedos nos dele, tão pequenos, gastando alguns instantes apenas roçando os lábios pelos do elfo, sem desfazer o sorriso. Permitiu-se sentir um pouco de felicidade em meio aos escombros da guerra.

-Eu o sigo aonde você for, meu rei.



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