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História Rex Meus - A magia dos vínculos


Escrita por: caulaty

Capítulo 6 - A magia dos vínculos


-Por que caralho você fez isso?! – Kyle perguntou em uma voz esganiçada.

Teria sido engraçado se Kenny não estivesse tão absolutamente confuso. Ele podia ver perfeitamente o rubor nas bochechas do rei (tão lindas, aquelas bochechas, agora ele podia ver o quanto), o tremor nas mãos e nas pernas dele, os lábios levemente inchados e úmidos de saliva. O loiro quis beijá-lo de novo, como nunca quis nada na vida. Mas tantas coisas se passavam pela sua cabeça, tantas cenas confusas de possibilidades que aquele beijo trazia. Haveria consequências, naturalmente. Sempre há. Talvez o rei apenas decidisse matá-lo com as próprias mãos e tudo seria mais simples.

Infelizmente, ele não foi tão sortudo assim.

Aterrorizado mentalmente diante da possibilidade de que Cartman descobrisse que ele realmente só sabia pensar com o próprio pau, Kenny se defendeu com a melhor e única arma que dominava na vida: o sarcasmo. Soltou uma gargalhada ácida em resposta à pergunta do rei, passando a mão pela boca para secar os traços de saliva.

-Por favor, princesa. – Mantendo um sorriso maldoso nos lábios. - Não seja hipócrita. Você estava implorando.

-Eu não estava! Seu porco!

Ah, mas estava.

-Você queria.

-Não queria!

Ah, mas queria.

Isso era visível no brilho de luxúria daqueles olhos verdes, no tremor das mãos, nos lábios carnudos sutilmente entreabertos. O coração acelerado que batia tão forte em seu peito que Kyle chegou a pensar que sairia pela boca, porque não conseguia se controlar. O sangue bombeava tão rápido em suas veias e se concentrava em seu rosto, corando-o de forma incontrolável.

E aquele rei, que todos tratavam como soberano e intocável, sentindo vergonha – um dos sentimentos mais inferiores – bem à frente de Kenny, era delicioso demais para o loiro. Ele não podia conter o sorriso largo na cara. Deitou o rosto para o lado de leve, observando como Kyle se encolhia em defesa, irritado.

-Então por que você ta parecendo um tomatinho? – o loiro perguntou com mais doçura na voz do que pretendia, cruzando os braços.

-Você quer sair vivo daqui, Kenneth? Porque não parece.

O elfo já se direcionava à porta da cela, pisando forte no chão ao se afastar do prisioneiro, ajeitando o manto de seda como se tentasse recuperar o pouco de dignidade que lhe sobrara. Isso não serviu para tirar o sorriso vitorioso dos lábios de Kenny, embora o loiro estivesse muito ciente de que não deveria estar achando graça. Ele poderia se encrencar tanto por aquele sorriso, mas era inevitável demais. Ele havia feito o rei perder a postura, havia feito aquelas perninhas tremerem pelo beijo dele. Kyle poderia bater à vontade e virar a cara o quanto quisesse, mas isso não mudaria os fatos. Nada, nem ninguém, podia tirar isso de Kenny.

* * *

O cemitério do reino dos elfos era localizado nas proximidades do maior lago do arvoredo. Não era cercado por grades e não possuía lápide alguma, apenas placas de pedra com os nomes da realeza gravados em cada túmulo cercado por flores muito bem cuidadas diariamente. Olhando em volta, via-se um jardim, não um cemitério. Embora fosse ali que a família real descansasse em paz. Gerald e Sheila Broflovski haviam sido enterrados lado a lado, Sheila muitos anos antes que Gerald, sob a sombra de uma árvore centenária. Apesar de toda a dor que as visitas ao túmulo de seus pais trazia, aquele continuava sendo um dos lugares preferidos de Kyle em todo o reino. Ele se sentava sobre um banco de pedra próximo aos túmulos, unia as duas mãos entre as coxas e chorava quando necessário. Desde criança, ele nunca foi de chorar. Não foi ensinado a isso. Sempre foi esperado muito dele, suas emoções precisavam ficar em segundo plano.

Aos doze anos, ele podia se lembrar perfeitamente, Ike ficou muito doente e ele sentiu muito medo de perder seu irmãozinho. O reino inteiro temia a possibilidade da morte do príncipe. Kyle começou a chorar quando entrou no quarto e viu seu irmão na cama. Então sua mãe o segurou pelos braços e deu um tapa em cheio em seu rosto, pouco antes de abraçá-lo com força e sussurrar em seu ouvido que eles eram pessoas fortes que não choravam sobre seus problemas, mas os consertavam. Mas não pense mal de Sheila Broflovski. Kyle não trocaria a mãe que teve por nenhuma outra, nem em um milhão de anos. Ela fora uma mulher maravilhosa e ele devia muito do que havia se tornado a ela.

Mas quando estava seguro sob a sombra da árvore, em meio àquele cenário tão pacífico, observando túmulos que contavam a história das pessoas cujo sangue azul ele levava nas veias, o rei se permitia sentir alguma coisa. Quando aquela porta era aberta, as lágrimas sempre escorriam pela sua face inconscientemente. Ele só percebia que estava chorando quando precisava se recompor para retornar ao castelo. Porque ele era um rei e não podia ser fraco. Portanto, ninguém nunca o via naquele estado.

Isto é: quase ninguém.

A mão carinhosa de Stanley tocou seu ombro em um gesto de apoio, apenas para que ele soubesse que não estava sozinho. Kyle se virou um tanto assustado, secando a bochecha úmida com as costas da mão, fungando, encarando Stan com os olhos brilhando pelas lágrimas ainda não derramadas.

-Eu sabia que te encontraria aqui.

Kyle se moveu para o lado no banco, dando espaço ao guerreiro para que se sentasse perto dele, o que Stan fez sem hesitar. A face do rei estava corada e seus olhos pareciam inchados, o que doía em Stan quase tanto quanto uma facada (e ele sabia como era levar uma facada, tinha uma cicatriz na barriga para provar), especialmente diante da impotência. Um silêncio confortável tomou lugar entre os dois, enquanto a mão de Stan subia pela nuca de Kyle e acariciava gentilmente os cabelos ruivos, um sorriso triste pronto nos lábios caso o rei decidisse olhar para ele. Mas isso não aconteceu.

-Estou com medo, Stanley. – ele murmurou, olhando para o chão.

Stan não afastou a mão dele e não respondeu de imediato, observando o perfil do rosto de Kyle naquela posição de fragilidade, algo tão incomum que ele até se esquecia como o rei ficava belo quando chorava.

-Não tem nada de errado nisso, Majestade. – respondeu como quem sabia de tudo.

-Sabe, às vezes eu venho aqui e continuo com uma pontinha de esperança... – Ele sacudiu a cabeça, fechando os olhos, fazendo com que as lágrimas deslizassem rapidamente pelas maçãs de seu rosto. – De que ele apareça e me diga o que fazer.

Aqueles olhos verdes pareciam mais vivos do que nunca quando se viraram para encarar a expressão reconfortante do guerreiro, parecendo tão perdidos quanto os de uma criança. Stan quis abraçá-lo, mas não se atreveu. Os lábios de Kyle estavam trêmulos como se ele segurasse toda dor do mundo dentro de si para que não escapasse através das palavras. Por fim, o rei continuou, olhando fixamente para Stan:

-Eu não sei o que fazer. Eu sinto tanta falta dele.

Stan sabia que ele se referia ao seu pai. E era muito compreensível. Todo o peso da guerra e a responsabilidade pelo povo decaíram sobre os ombros de Kyle antes que ele estivesse preparado para o trono, embora não houvesse um osso no corpo de Stan que duvidasse da capacidade de liderança e da sabedoria de Kyle, como se ele tivesse nascido preparado para governar. Sabia, em seu coração, que eles venceriam a guerra graças a ele.

-Eu sei. Mas... Ele morreu defendendo todos nós. Morreu onde queria, no campo de batalha, onde eu também quero morrer.

-Não diga isso.

-É verdade. E ele descansa em paz, que Deus o tenha, porque sabe que nosso povo estaria protegido sob a sua guarda. Seu pai, por mais maravilhoso que fosse como nosso rei, tinha um coração de guerreiro. Você é diferente. Você é um governante, Kyle.

-Não era isso que ele queria. Não é isso que você quer também. O que ele queria era vencer. Proteger não somente o nosso povo, mas todos os reinos, porque se o cetro for usado para magia negra, Deus sabe quantas almas vão pagar. Cartman desestruturou todo o nosso reino matando nosso líder, sabia o quanto nos enfraqueceria.

-Nós temos um líder. Você. Isso aconteceu há anos e ele ainda não chegou mais perto de ter o cetro por isso.

Kyle desviou o olhar, sacudindo a cabeça sem saber o que dizer. Estava agitado. A mão de Stan, que descansava na nuca dele, desceu cautelosamente até o joelho do rei para não perder o contato, demonstrando todo apoio possível nos pequenos gestos. Por mais que não dissesse isso com frequência, a verdade era que Kyle não fazia ideia do que faria se não tivesse Stan ao seu lado.

-Eu não agüento vê-lo desse jeito. – o guerreiro sussurrou quase timidamente, engolindo seco antes de prosseguir. – Me diga o que eu posso fazer.

Por um momento, o rei não reagiu. Continuou olhando para baixo, pressionando seus lábios juntos, sentindo o rubor do choro passar. Sentia-se melhor. Voltou a encarar Stanley com a mesma serenidade de costume, como se nada tivesse acontecido (um costume, ou habilidade, que adquiriu de sua mãe) e ergueu a mão para acariciar o rosto de seu guerreiro, que fechou os olhos ao toque e separou os lábios instintivamente. O toque de Kyle sempre o deixava em transe.

-Eu gostaria de companhia essa noite. Quando fico sozinho muito tempo, minha mente vai a lugares obscuros. – Ele deixou que seu polegar acariciasse a bochecha de Stan por alguns segundos, antes de afastar sua mão e levantar do banco. – Volte para os homens. Ainda é cedo, eles têm um longo dia de treinamento pela frente e precisam de você. Eu não quero perder nenhum homem na próxima batalha, Stanley. Cartman está ficando frustrado e isso só serve para deixá-lo mais sanguinário.

Stanley apenas assentiu com a cabeça em compreensão.

-Sim, vossa Graça.

-Vá ao meu quarto essa noite depois do jantar, sim?

E com isso, Kyle se virou para retomar o caminho de cerâmica que contornava o imenso lago, mas a voz de Stan o impediu de continuar andando.

-Vossa Graça. – ele chamou, cheio de insegurança. Kyle hesitou um momento antes de voltar a encará-lo. Mas Stan não disse mais nada, apenas sacudiu a cabeça, perdendo a coragem de prosseguir.

O rei compreendeu isso e seguiu seu caminho.

* * *

O rapaz loiro saía da banheira de porcelana, pisando no chão com a delicadeza de uma bailarina. Cheirava a rosa champanhe, e o delicioso aroma se espalhava por toda a suíte conforme ele caminhava, secando-se em uma toalha macia como sua pele. Passou em frente ao espelho da penteadeira do quarto, parando um instante para admirar seu corpo de lado. Seus longos cabelos dourados estavam amarrados em um coque para que ele não os molhasse, então seus ombros elegantes estavam expostos, coisa que raramente acontecia. Seu corpo era esguio e elegante, com poucas curvas. Ele não gostava muito disso, mas aprendeu a se admirar dessa forma.

Após secar sua pele, alisando os próprios braços para curtir a sensação gostosa que o banho proporcionava, o garoto se dirigiu ao enorme closet, escolhendo quais roupas íntimas vestiria. Vestiu primeiramente a calçola de rendas, depois voltou ao quarto para jogar as roupas escolhidas sobre sua imensa cama, apoiando uma perna de cada vez sobre o colchão enquanto vestia a cinta-liga, admirando-se no espelho mais uma vez. Depois vestiu o corselete bem apertado, tentando dar alguma cintura à sua forma, e por último vestiu as saias que iriam por baixo do vestido que escolhesse.

Sentou-se na banqueta em frente à penteadeira branca, virando seu rosto sem maquiagem de um lado ao outro, tocando as pontas dos dedos pelo maxilar. Uma camada muito fina, quase invisível, de pelos começava a aparecer na superfície de sua pele. Ele não possuía muitos pelos corporais, o que era um alívio.

Antes que ele pudesse prosseguir com sua rotina matinal, houve uma batida na porta. O rapaz franziu a testa, estranhando uma visita àquela hora da manhã.

-Entre. – disse hesitante. Não gostava de ser visto antes de estar pronto.

Uma das serventes de Cartman, Patty, colocou a cabeça timidamente para dentro da porta. Deu uma olhada hesitante na princesa, que ainda vestia apenas as roupas debaixo, e limpou a garganta em constrangimento, olhando fixamente para o chão. Suas faces estavam levemente coradas.

Pobrezinha, pensou o rapaz.

-Me perdoe, princesa. O rei me enviou com um comunicado. O palácio recebeu notícias sobre seu irmão. O rei requisita sua presença imediata na sala dele.

-Os elfos enviaram notícias sobre Kenny?! – Ele questionou com uma voz aguda e empolgada, unindo as duas mãos.

Mais do que depressa, o rapaz estava de pé, alcançando um hobby de seda coral que estava pendurado no cabide ao lado da penteadeira, vestindo-o com pressa e se dirigindo até a porta. Ele estava descalço, de cara limpa, com o cabelo preso, mas tudo isso perdeu a importância diante da notícia. Patty lhe deu espaço para que passasse pela porta, e o garoto se virou para ela com um sorriso gentil.

-Obrigado por me avisar, Patty.

A moça de cabelos pretos fez uma pequena reverência.

-É meu dever, Princesa McCormick.

Com uma mão delicada, a princesa tocou o braço da servente e aproximou o rosto do dela, mantendo o sorriso caloroso nos lábios.

-Você trabalha conosco há tanto tempo. Quantas vezes preciso dizer para me chamar de Marjorine?

* * *

A princesa dramaticamente adentrou ao salão do rei, empurrando as portas duplas e correndo sem fôlego até a mesa de Cartman. O rei estava confortavelmente sentado em uma imensa cadeira dourada com estofado vermelho, cores que decoravam o palácio de Kupa Keep. Cores de guerra, segundo ele. Assim que colocou os olhos na princesa, Cartman soltou uma gargalhada roncada e alta, ecoando pelo salão.

-Cara, eu esqueci como você é feio desarrumado.

Ele poderia rir o quanto quisesse. Não importava. Os olhos azuis da princesa estavam repletos de esperança e alegria. Ela apoiou as duas mãos na enorme mesa, que fora importava de algum lugar da Europa e cujos pés eram talhados à mão em um desenho extravagante, e encarou o rei com impaciência.

-O que disseram sobre meu irmão?

A carta descansava sobre a superfície da mesa, à frente de Cartman. Era um papel de pergaminho escrito com uma caligrafia elegante, como todas as mensagens que os elfos enviavam, mas ele não mostrou a carta a ela imediatamente. Afastou-a para o lado com os dedos, depois fez um gesto para que a princesa se sentasse à sua frente. Ela não o fez.

-Bom, os elfos realmente o capturaram. Querem saber, por se tratar de um McCormick, se estamos dispostos a algum tipo de negociação para tê-lo de volta.

A princesa não disse nada a princípio. Passou alguns segundos de pé, ainda apoiada na mesa, mas também sem olhar diretamente para o rei. Pensava olhando para o nada, considerando cuidadosamente as palavras que acabara de ouvir. Por fim, acabou obedecendo ao rei, sentando-se na cadeira do seu lado da mesa.

-O que fizeram com ele?

-Nada. São elfos, princesa, não vão fazer nada com o Kinny. Eu conheço o Kyle. Ele se acha algum tipo de deusa misericordiosa, não vai torturá-lo.

-Como sabe disso?

-Nós temos história. – dessa vez foi Cartman quem quebrou o contato visual, de forma mais brusca, resmungando para si mesmo. O rei levou o punho à boca, reclinado na cadeira, pensando com o olhar fixo no papel sobre a mesa.

A princesa nunca entendia exatamente o que ele queria dizer com isso, mas também não questionava. Aprendera sobre os limites do rei da forma mais difícil, não forçava mais a própria sorte com determinados assuntos do seu passado.

Após uma longa pausa, Marjorine começou a ajeitar os fios rebeldes de cabelo que escapavam do coque no topo de sua cabeça, observando a carta sobre a mesa que Eric guardava com a mão protetoramente. Ela franziu a testa e voltou seu olhar ao rei, que parecia contente apesar de tudo.

-E agora? – ela perguntou.

O rei tirou a mão do pergaminho e uniu os dedos em frente ao rosto, de forma que o tornava parecido com algum vilão de quadrinhos, aumentando o sorriso satisfeito na boca.

-Tudo está indo de acordo com o esperado. Precisamos manter a história que seu irmão contou aos elfos. Vou dizer que mal me lembro do rosto dele, que ele renegou seu reino e, se for mandado de volta, cortaremos sua cabeça por traição. Se Kyle pensar em Kenny como um pobre renegado sem lugar no mundo, estaremos em vantagem.

-Mas eles não terão utilidade alguma para ele. Por que o manteriam vivo?

-Meu Deus, sua traveca, preste atenção no que eu digo!

Ela estreitou os olhos com a ofensa, levando a mão ao peito flácido, seu rosto demonstrando um sentimento de ofensa. Mas Cartman não deu atenção a isso e prosseguiu:

-Eles são bonzinhos. Trouxas. Não vão matar gratuitamente um homem que não apresentou nenhum perigo. Especialmente um que não tenha nada a ver com a guerra. Quanto mais eles acreditarem nisso, mais rápido você terá seu precioso irmãozinho de volta.

Cartman não podia compreender a ligação entre Marjorine e Kenny, primeiramente porque era filho único. Mas sempre achou muito estranha a forma como os dois se encontraram no mundo. Os dois irmãos sequer sabiam da existência um do outro até os oito anos de idade. Eram filhos do mesmo pai, mas de mães diferentes. A família de Kenny era muito pobre, enquanto a mãe de Marjorine era uma viúva da alta sociedade com quem o pai de Kenny teve um caso durante anos. O romance resultou em um garotinho magrelo chamado Leopold, que era igualzinho ao seu pai fisicamente – assim como Kenny -, porém muito afeminado. Todos o chamavam de Butters. Ele freqüentava um mundo diferente do de Kenny e Cartman, pois sua mãe era rica, mas passou a ser marginalizada quando descobriram que o filho era de um homem casado, e ela foi considerada uma meretriz. Morreu apedrejada em praça pública.

O pai de Kenny recolheu Butters para que ele não fosse parar em um orfanato. Dadas as circunstâncias, o que se esperava era que os irmãos McCormick (Kevin, Kenny e Karen) odiariam aquela criança bastarda intrusa. Eles mal tinham o que comer e agora havia outra boca para alimentar. Mas de alguma forma, não foi o que aconteceu. Kenny e Kevin tinham uma relação delicada e violenta (nada abusivo, mas muito semelhante a filhotes de leão que se machucam brigando como um treinamento para o mundo selvagem que precisarão enfrentar), então a chegada de um garoto da mesma idade foi como um sonho realizado para Kenny.

Eles se tornaram irmãos de verdade. Kenny era tão protetor com Butters quanto era com Karen, especialmente depois que o garotinho começou a se vestir como mulher e não aceitar mais ser chamado de “Butters”. Bom, exceto por Kenny.

Kenny até hoje o chamava de Butters, e Marjorine não parecia se importar.

-Tudo bem, Cartman. – Ela respondeu, levantando-se da cadeira. – Mas se isso não der certo, chega. Faz anos que você tenta tomar o cetro dos elfos. Se esse seu plano não der certo, e especialmente se eu perder meu irmão por causa do seu planinho, essa guerra acaba. Já morreu gente demais. Você tem que me prometer que vai desistir do cetro se isso não funcionar.

-Vai funcionar.

A princesa prendeu a respiração por alguns segundos, notando o brilho nos olhos do rei. E era feio. Era cruel. Ela limpou a garganta e apertou o nó do seu hobby em torno da cintura, deixou escapar o ar dos pulmões em um suspiro de derrota. Temia por seu irmão e pelo seu reino, mas não havia nada que ela pudesse fazer. Especialmente parecendo um homem daquela forma. Então ela se virou e deixou o recinto.

Cartman não prestava mais atenção nela. Estava ocupado demais se deliciando na própria vitória ao saber que os elfos tinham levado Kenny para dentro do castelo deles. Estava mais próximo do cetro do que nunca, Eric podia sentir. E daria certo. Tinha que dar certo.

* * *

Kyle estava parado em frente à janela, com as duas mãos sobre o parapeito, olhando fixamente para algo lá embaixo. Nem percebeu quando Stanley chegou por trás dele – Stan sempre se movia tão silenciosamente, era parte do que o tornava incrível em um campo de batalha -, apenas quando o queixo do guerreiro descansou em seu ombro e os braços dele envolveram sua cintura. Como os de Kenny, só que mais lento, mais sutil. Kyle apertou os olhos e se esqueceu de respirar durante alguns instantes.

O toque do peito de Stan em suas costas quase sempre era reconfortante.

-Em que está pensando, vossa Graça?

A respiração do rei foi profunda e intensa, como se finalmente se lembrasse de como encher os pulmões de ar. Apertou o parapeito da janela em suas mãos, com o olhar fixo na torre ao longe, para onde os prisioneiros eram levados. Depois, coçou a testa, desviando o olhar para o gramado da colina lá embaixo. As mãos de Stan percorriam a sua barriga por cima do casaco grosso que o rei usava, já que tinha acabado de vir lá de fora e o frio da noite estava especialmente cortante. O vento que entrava pela janela deixava seu rosto gelado, mas ele não se importava, porque logo estaria fechado a janela e se aquecendo em uma cama imensa, com calor humano, cobertores de pena e tudo o que lhe era de direito.

Não podia deixar de pensar em Kenny congelando no chão da cela, no topo daquela torre.

As mãos de Stan estavam quentes, ele pode sentir quando uma delas acariciou sua nuca como se tentasse aliviar a tensão.

-Vai adoecer se continuar aí. – ele disse com um riso baixo, envolvendo o tronco de Kyle em seu braço e pressionando-o contra o seu corpo de forma tão carinhosa que o rei se virou de lado dentre o abraço dele, deitando o rosto contra o peito do seu guerreiro, fechando os olhos. Tão vulnerável. Estranhamente vulnerável.

A mão de Stanley, que passeava pela nuca do ruivo, subiu para envolver a bochecha gélida dele, em uma carícia demorada para transmitir o calor do seu corpo, protegendo-o. Não sabia ao certo de quê deveria protegê-lo, mas não se importava com isso. Nunca se importou. Não começaria a questionar agora. Seus dedos subiram para a orelha fria do rei em meio aos tufos de cabelo, aquecendo-a enquanto alisava os cabelos dele.

Os dois se conheciam desde pequenos e Stanley estava lá para cada tombo, cada joelho ralado, cada brinquedo perdido, cada pequeno detalhe que fez Kyle chorar. Mesmo naquela época, ele não era de chorar muito. Stan sempre foi maior, mais forte, mais protetor, mas desmanchava em lágrimas muito mais fácil do que Kyle. Por causas nobres, é claro, não era nenhum fracote. Sorria ao se lembrar dos momentos em que Kyle, tão pequeno, falava de forma tão eloqüente sobre como cães vão para o céu quando o primeiro cachorro de Stan morreu. Kyle o acompanhou todos os dias durante um mês inteiro para visitar o túmulo de Sparky primeiro na floresta, onde seu pai o enterrou. Sparky terceiro dormia confortavelmente próximo à lareira daquele mesmo quarto.

Stan esteve lá para todas as causas, grandes ou pequenas. Porque o amava. Stan o amava da forma mais pura e altruísta que se pode amar alguém. Foi o que levou a perguntar:

-Você realmente se importa com ele, não é?

Em um segundo, os olhos verdes enormes o encontraram com aquela típica agressividade. Sim, os olhos de Kyle eram agressivos, independente de qual fosse a expressão em seu rosto. Dessa vez, eram acusatórios também, defensivos, irritados com a pergunta. Mas o rei não chegou a se afastar do abraço, apenas encarou o guerreiro – que retribuía com um olhar calmo - durante um longo tempo.

-Do que está falando?

-Você sabe. – ele respondeu em uma voz calorosa, sem afastar a mão do rosto macio do rei. Ofereceu um sorriso triste de segurança, que foi o que evitou que Kyle se afastasse dele. Os dois continuaram entrelaçados, o rei com os lábios um tanto abertos em dúvida, sem saber o que responder. Então Stan prosseguiu. – Eu conheço você.

-Eu não estou entendendo.

-Não há nada que você não possa me contar, vossa Graça.

-Stan...

Ele sacudiu a cabeça, sentindo-se desconfortável. Levou as duas mãos ao peito de Stan para empurrá-lo um pouco para trás, sem espaço para se afastar sem cair da janela. Stan obedeceu prontamente, sem forçar qualquer contato. Deu um passo longo para trás, levando as mãos por trás das costas. Sua boca era uma linha reta, sem expressão.

Kyle buscava explicação para algo que ele não entendia, que estava lutando para manter longe da sua mente o dia inteiro, guardado em um cantinho qualquer do inconsciente. Não havia como fazer com que Stan entendesse, embora o guerreiro não parecesse buscar uma explicação. Não havia um pingo de julgamento em seus olhos. Havia dor. E Kyle não sabia a que essa dor se devia, porque Stan sempre o olhava dessa forma quando o via sofrendo por qualquer motivo.

-Você não pode esconder nada de mim, Majestade. Eu sinto muito. – Stan disse com um risinho baixo, umedecendo os lábios de forma ansiosa. – Eu sei que você está pensando nele.

-Como?

-Eu só... Sei.

As sobrancelhas do rei se ergueram sugestivamente. Esperava por algo melhor, mas no fim das contas, não importava. Ele deveria saber. Stan e ele sempre foram ligados como gêmeos siameses, de alguma forma. Os dois, dentro daquele quarto, sozinhos... Não havia barreira. Simplesmente nunca houve. Kyle deu as costas para ele, sentindo as bochechas ruborizadas enquanto se inclinava sobre o parapeito para fechar a janela de forma barulhenta. Depois caminhou para mais perto da cama e começou a tirar o casaco.

-Eu não quero discutir isso.

-Nunca foi minha intenção discutir, Majestade.

-Se você está sugerindo que qualquer sentimento meu vá interferir no meu bom senso, no meu julgamento de caráter e na minha posição sobre essa guerra, Stanley...

-Jamais. – o guerreiro começou a se aproximar. – Eu jamais diria isso.

-Porque isso que eu... – A voz falhou. Kyle fechou os olhos por um instante, levando uma das mãos à testa, alisando os cabelos para trás. Seu rosto belo ficou bem visível sem os fios de cabelo. – Eu sou mais prudente que isso. É um ser vivo, exatamente como nós, apenas de uma raça diferente. Então é claro que eu me importo.

Em vez de responder com palavras, os braços fortes de Stanley envolveram seu corpo em alerta e o apertaram em um abraço mais forte que o anterior, uma mão protetora cobriu a cabeça do rei para que ele deitasse seu rosto contra o pescoço do guerreiro, de forma um tanto desajeitada, mas persistente. Não deixou que ele se afastasse. Kyle não gostava de ser confrontado.

Não demorou para que ele derretesse nos braços de seu guerreiro, abraçando o tronco largo de Stan em seus braços, sentindo o calor de seu corpo acalentando-o, aninhando-o. Era impressionante como o rei vivia em um constante estado de alerta, como um felino, tão elegante e tão majestoso na maior parte do tempo, mas tão feroz e selvagem quando precisava se defender. Stan jamais se colocaria na posição de alguém contra quem o rei precisaria se defender. Não enquanto ele pudesse evitar.

-Eu sei disso. – sussurrou baixinho contra o cabelo ruivo, sentindo o cheiro dele.

Um silêncio se instalou no quarto. A alguns metros deles, Sparky rolava de barriguinha para cima, uma das orelhas caídas no chão, a língua para fora. Dormia o sono dos justos. Deixou escapar um pequeno grunhido em seu sonho, mas os dois elfos permaneceram em silêncio por sabe-se lá quanto tempo. Apenas não parecia necessário dizer nada. Eles se compreendiam.

Kyle amassou mais o rosto contra o pescoço de Stan, apertando os olhos, relaxando os músculos aos poucos. Ali, se sentia em casa.

Então disse:

-Não consigo parar de pensar nele.

-Eu sei. – Stan respondeu, acariciando os cabelos dele.



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