História Savage - Não nos pertencemos

Eu penso em abandonar a mim mesmo todos os dias e sair por aí distribuindo sorrisos engavetados, noites de olhos vidrados e o que me resta de bondade. Todos os dias, eu digo, e Kyungsoo tira um sorriso engavetado, coloca-o na face e ri da minha loucura incompreendida porque é o que ele precisa fazer às vezes pra arrancar uns gemidos meio arrastados.

Eu penso que pertencer a si próprio é mais difícil que pertencer aos outros. Nós nos encontramos momentaneamente entre roçares, vícios disfarçados e pílulas de sobrevivência coletiva. Acabamos nos perdendo em segundos de esbarrões e cuspes e palavras que doem tanto quanto aquela vez em que Kyungsoo levou o resto de bondade que eu pretendia doar para crianças carentes pro fundo do rio. Ele puxou a gaveta da cômoda e derramou todos os seus sorrisos e a minha bondade em milhares de gotas, dividindo e extinguindo e deteriorando a sua e a minha existência.

Eu penso vez ou outra em parar de me prostituir, pois é o que artistas fazem. Nós ficamos nus em frente ao público com os olhos bem fechados e torcemos pra que algumas pessoas sejam gentis quando forem nos foder em críticas. Vez ou nunca dá certo.

Eu penso nas vezes a mais que eu deveria ter me entregado de corpo e alma a Kyungsoo. Umas tantas vezes eu só implorei pra ser admirado de perto, com alguém fazendo carinho nas minhas costas depois do sexo, enquanto eu compunha algo sobre carnificina e poluição e amores platônicos quando eu mesmo tinha ele e ele não me tinha. Mas nós nunca fizemos amor, nem baixaria, nem acabamos em soluços ou poesia. Ele aguardava, eu escrevia. E enquanto Kyungsoo morria eu percebi que, no fundo, tanto do rio quanto da alma, tinha uma porção significante de mim.

Então eu me afoguei em álcool e implorei para que nos encontrássemos novamente.