Feito uma estrela cadente, despenquei no oceano, um vaga-lume desvairado,um meteoro brilhante no breu noturno.
O impacto da água sobre meu corpo foi o mais doloroso, depois veio a sufocante sensação de afundar na imensidão escura, sem ar, sem chão,tocando somente o pânico absoluto de não saber sequer o próprio nome.
O instinto de sobrevivência me salvou, descobri em mim um fôlego quase eterno, ao subir em direção ao teto daquele mar,dando toda a força em cada braçada. Sem pensar em nada,sentindo em mim,vibrante e terrena,a urgência de respirar.
Emergi nua, ofegante, encharcada de sal e humanidade. Sentindo a falta de algo, feito um caolho recente.
A guarda costeira me encontrou de costas relaxadas, flutuando na água e fitando o céu descolorido numa respiração calma, quase sem sentir o frio absurdo cristalizando minhas entranhas.
_Qual seu nome?_ fora a primeira pergunta que me fizeram depois de uma sequência carinhosa de vários cobertores, medidas, termômetros e máscaras de oxigênio. Aparentemente eu estava bem. Para alguém que passara horas a deriva na madrugada marítima.
_ Não sei_ a voz ressoando de minha boca parecia estrangeira, tão distante quanto um farol.
Descobri a resposta algumas semanas depois, quando a memória soletrou letra por letra.
Stephanie.
Segundo meus dados médicos uma jovem mulher de aproximadamente 20 anos,saúde impecável exceto alguns resquícios de hipotermia e uma amnésia intensa. Sem registos no sistema governamental. Anônima, indigente.
Calada como o criado mudo ao lado da cama.
Em minha mente só vinham duas palavras: Perdoe-me, Deus.
A humanidade era ácida e corroia minha alma a cada segundo que passava entre os mortais: nos toques ligeiros dos médicos eu podia sentir suas dores mais profundas, seus medos incabíveis e desejos profanos; no olhar pela janela eu tinha um vislumbre sombrio da dolorosa finitude de suas vidas, cada fome,cada abandono.
O pouco que ainda me restava de antes da queda era essa sensibilidade crua, e a sensação de perpetuo deslocamento. Ali não era meu lugar. Havia algo externamente errado...
Duas batidas na porta foram e meu devaneio se rompeu. Vestida ainda com o traje hospitalar e deitada na cama, parei de encarar,apática, a parede, para torna-me e fitar a madeira vibrando.
Ela entrou feito uma mariposa naquela sala límpida e branca, destacando-se às minhas retinas sensíveis, vestida de preto dos pés a cabeça. As roupas justas delineavam uma silhueta sinuosa e as botas altíssimas, ressaltavam a presença que a mulher intencionava:ameaça.
_ Stephanie,há quanto tempo...
A voz vinda daquela boca pálida, encaixada em um rosto ainda mais pálido, soava como o crepitar de uma fogueira,familiar mas cortante.
Tentei reconhece-la,com um pouco mais de esforço do que de costume. O nariz delicado,os olhos pétreos feito pérolas negras não me despertavam qualquer coisa além do que sua voz já sugeria.
_ Eu já disse que não conheço nenhum de vocês_ murmurei entediada por perguntas e melancólica pelo ambiente.
_Eu me chamo Yuri.
E ela disse aquilo com gosto,abrindo um sorriso de hiena,com caninos pontiagudos e uma língua vermelha. Exibindo-se para mim sem que eu entende-se porque.
_Estou aqui para ajudar..._ e Yuri se aproximava da cama,sua presença,agora mais próxima,emanava certa periculosidade. Senti meu rosto estupidamente corar quando ela tocou os dedos no metam frio da cama, aproximando o rosto do meu para interrogar-me.
_Me diga, se lembra de onde veio?
Desde que eu chegara ali, aquela estranha fora a única a fazer a pergunta certa.
_Do céu.
E então eu lembrara.
Da voz indescritivelmente poderosa,empurrando-me,chutando-me de minha casa,berrando solenetemente minha sentença final, a luz cegante antes da queda.
E finalmente dei-me falta das asas. Minhas asas.
A terra em chamas, flamejando a própria ganância e loucura na epítome do estado mais vil da humanidade. A matança,o rio de sangue, a suprema perdição caindo sobre a terra. O último aviso.
_ Eu não sou daqui._ disse, de repente, espantada com a certeza fragante em minhas palavras.
_ não!_ Yuri disse, gargalhando selvagemente_ e é isto que a faz tão preciosa!
Foi então que notei algo desagradável no ar. Um cheiro metálico,familiar e ao mesmo tempo trépido: sangue.
Levantei-me apenas rápido o suficiente para sentir o ar cortado pelas mãos de yuri raspar em meu corpo. A porta estava fechada e não havia janelas. Tudo o que eu sabia era que o que quer que yuri fosse, não viera ali para fazer um piquenique comigo.
Agora com as presas arreganhadas e faminta, a mulher de pálida pele acobreada lançou-se contra mim,chutando a cama para longe com um dos pés. Numa rapidez incompreensível até a mim,consegui desviar do móvel pesado e correr até a porta. Ainda pouco acostumada ao andar,fui parada pela mão forte de Yuri sufocando-me,ao mesmo tempo que seus olhos vermelhos me encaravam,ameaçadores.
Eu esperneei no ar e arranhei seus braços em desespero, ela me assustava tanto! mas meus esforços mal faziam-na piscar.
_ Quem diria... Achei uma rebelde_ ela murmurou, sorrindo com o canto da boca_ fraca e rebelde.
Incapaz de falar, apenas me debati,sentindo a vista escurecer e meu corpo pesar.
Ela jogou-me contra o chão ladrilhado_ a dor fora terrível_ e caminhou até mim numa postura felina. Quem era aquilo? O que era aquilo?
O pânico me tomou por completo. Gritei o máximo que meus pulmões permitiam.
Nada que eu vira depois daquele momento jamais se comparou ao espanto de Yuri quando o quarto começou a tremer ao som de minha voz. Uma luz ofuscante surgiu atrás de mim,tão clara que eu parei de enxergar qualquer coisa além de um branco intenso.
A ultima coisa que me lembro antes de abrir os olhos foi a voz de Yuri sussurrar em medo: ela tem asas.
Quando finalmente pude ver, Yuri não estava mais lá. O quarto era tão vazio quanto anteriormente e o silêncio era sepulcral. A porta, todavia, estava diferente,estava entreaberta.
Levantei do chão trêmula, e andei para fora, finalmente, pela primeira vez desde que acordara no mar faz quanto tempo mesmo?
Ela rangeu ao abrir, e o que vi atrás dela deixou-me em choque.
Havia sangue nas paredes cinzentas, derramando-se pela extensão do corredor. Vários corpos de jaleco branco e cabeças decepadas jaziam ao longo dos ladrilhos, cada um com sua própria poça vermelha.
E o silêncio.
Finalmente percebi que eu fora a única que Yuri deixara viva naquele lugar.
Tudo que fiz foi correr e correr e correr,cair e molhar me de sangue e correr mais. Como num pesadelo interminável os corredores e escadas nunca tinham fim. Eu estava perdida naquele inferno de cadáveres desconhecidos e silêncio infindável. Gritei inúmeras vezes mas a luz branca não veio novamente.
Quando finalmente saí, enlouquecida e molhada de sangue,vi a noite de NeoSeoul.
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