O céu estava escuro e a chuva caia ainda fraca do lado de fora do helicóptero. O polegar do papai acariciava as costas da minha mão em pequenos círculos enquanto eu olhava pela janela. Austin estava brilhante um pouco mais a diante. Eu odiava ter que voltar para Houston depois de um feriado de 4 de julho tão bom em Lakeway, mas eu não era mais uma criança e mesmo estando nas férias de verão de nossas pós-graduações, Brian e eu ainda tínhamos que ir trabalhar.
—Ali Hannah – papai apontou para fora da janela, seus olhos escuros e pele negra, tão diferente da minha, destacava seu sorriso branco e contagiante.
—A pista de Motocross de Austin, nem me lembro da última vez que tivemos aqui – eu disse animada – E o senhor perdeu para mim da última vez.
A risada de Christopher era a mais gostosa que já ouvi. Sua mão percorreu meu rosto num gesto gentil de dizer “minha garota” e desceu até o presente de formatura que ele havia me dado algum tempo atrás, um colar com corrente de ouro e pingente de coração com uma pequena foto minha, dele e da mamãe juntos.
—Eu vou te trazer aqui para corrermos quando você tirar alguns dias de folga. Quero uma revanche, moça.
—Eu vou cobrar.
O sorriso da minha mãe sempre se alargava no rosto quando nos via interagindo. Apenas mexendo os lábios ela sussurrou “eu te amo” para ele.
—Também querida.
Numa forma de deixá-los no momento íntimo, me voltei para Brian que estava sentado de frente para mim, ao lado do seu pai. Seus cabelos estavam bagunçados e ele narrava a partida do Yankees que havíamos assistido pela televisão ainda naquela tarde, o motivo de Martin não nos levar para Houston de carro mais cedo. Parecia tudo muito comum, tudo corriqueiro e normal...
Um barulho, um estouro me fez sobressaltar no banco de uma hora para outra quando estava tudo bem.
—Pai, o que é isso?
—Não é nada querida...
Outro barulho, uma explosão dessa vez, fez meu coração acelerar. Uma fumaça começou a sair do painel do helicóptero e senti meu corpo sacolejar, mas não era só eu.
—Chris... O helicóptero.
—Meu Deus.
—Brian! – Escutei a voz doce de Susan saindo mais aguda.
—Mãe! Pai! O que está acontecendo?
Mais um estouro do lado esquerdo, fez o EC 135 desnivelar fazendo Brian e eu nos chocarmos contra a lataria mesmo usando o cinto. Um filete de sangue escorreu pelo meu rosto e o toquei com as pontas dos dedos, estava dolorido, meu ouvido zumbia com os gritos que eu não estava entendendo, apenas os reconhecendo por serem da minha família.
Pisquei os olhos devagar à procura de Brian na minha frente e meu coração se comprimiu no peito ao vê-lo desacordado.
—Brian!
As mãos fortes do meu pai arrancaram o cinto de mim. Tudo parecia acontecer rápido demais e eu senti meu corpo contra a gravidade... Caindo, girando e caindo... Agarrei-me a ele escutando a oração que fazia perto do meu ouvido e o acompanhei mesmo me sentindo tonta, apenas pedindo para Deus, naqueles poucos segundos, que ficássemos bem.
Senti o baque no chão e fechei os olhos com força, novamente meu corpo foi contra a lataria, mas os braços do meu pai me envolveram num abraço de urso que nem o cinto de segurança conseguiria. Abri os olhos tonta, havia chamas de alguns lados enquanto eu piscava assustada tentando entender como tínhamos pousado. Percebi que estávamos tombados de lado.
Meu pai me soltou e com um canivete, cortou seu cinto já se virando para ajudar a mamãe, mas ela se negou.
—Tire a Hannah daqui amor...
Meu Deus! Susan! Adam! Mamãe! O piloto! Todos cobertos de sangue.
Lágrimas grossas escorreram pelo meu rosto e me projetei para frente. Eu não ia sair dali sozinha. Enquanto meu pai tentava abrir uma saída, me estiquei para ajudar Adam, que estava mais consciente. Eu precisava de ajuda, apenas meu pai e eu não íamos conseguir.
—Eu não, Hannah. Eu não. – ele pediu desesperado, batendo suas mãos contra as minhas – Ajude Brian, cuida do meu filho para mim, cuide dele por mim e Susan.
—Não! Não. – Neguei. Que conversa era essa?
—Chris – Adam gritou me empurrando – Coloque os dois para fora daqui. Ande Chris, os dois primeiro.
Olhei desesperada para meu pai. As chamas aumentaram na calda do helicóptero e algumas cobriam a frente.
—Brian, Hannah, concentre-se apenas em Brian – Exigiu papai.
Brian? Procurei por ele e senti meu corpo bater onde ele estava pendurado pelo cinto, minhas pernas e costas doíam, mas ver meu amigo assim era pior, era uma dor além da física. Meu pai arrancou o cinto de Brian, que caiu sobre ele.
O segurei e meu pai, numa força quase sobrenatural, conseguiu abrir uma das portas com uma alavanca improvisada. Não sei como consegui sair, tudo ficou tempestuoso, a chuva caia sobre nós me deixando desnorteada e perdida. Cai no chão e o baque do corpo de Brian me fez levantar para ajudá-lo também.
—Arraste ele, Hannah. Se afastem daqui – Gritou meu pai.
—E o senhor?
A mamãe? Susan, Adam, o piloto...
— Você é minha princesa Hannah, eu te amo tanto. Tenho tanto orgulho de você – falou papai em meio à fumaça – Você é uma mulher incrível, minha garota.
—Papai!
Aquilo soava estranho. Ele não podia falar isso! Não era uma despedida! Não era uma despedida!
—Você é meu presente de Deus, querida. Eu vou estar com você, falei que não ia te deixar sozinha, não falei? Leve Brian. Vou logo atrás de vocês, vamos todos logo atrás de vocês, eu vou ajudá-los agora.
As lágrimas cobriram meu rosto, quando eu afirmei. Passei o braço de Brian pelo meu pescoço e o arrastei de lado, mantê-lo bem era a minha prioridade. O rosto do meu melhor amigo estava sangrando e vê-lo desacordado acabava comigo... Brian.
Não escutei os passos do papai, não escutei mais nenhum barulho que não fosse os estalos.
—Papai! – Chamei.
Ele não respondeu, tinha voltado para o helicóptero. Meu Deus! A mamãe, ele podia ter tirado a mamãe antes de mim.
O cheiro de gasolina fez meu estômago revirar, de costas para onde eu ia, sem conseguir desviar os olhos do helicóptero, apoiei mais o corpo pesado do meu melhor amigo, meu irmão, e o arrastei esperando e rezando para que a qualquer momento alguém saísse de lá... Só que ninguém saia... Eu andava, mas ninguém saia.
—Pap...
Não consegui terminar de chamar. Mais uma explosão. Mais alta. Mais forte. Um estrondo.
Meu corpo perdeu o controle e me senti sendo arremessada junto com Brian para trás, meus olhos não se fecharam enquanto eu voava, eu via as labaredas de fogo e a pressão nos arremessando. Minhas costas bateram em algum lugar duro assim como a minha cabeça e em menos de um segundo o corpo de Brian se chocou contra o meu fazendo algumas partes do meu corpo estralar e meus olhos se fecharem, mas eu não consegui sentir dor.
Torpor. Apenas vários segundos de torpor.
Abri os olhos lentamente ouvindo sirenes bem longe, sem saber quanto tempo havia se passado. Minha cabeça girava, o barulho, o cheiro de pólvora e gasolina, queimado e... Sangue? Minhas mãos estavam sujas do meu próprio sangue. Virei com dificuldade tocando o peito de Brian e sentindo seu coração bater bem devagar.
Mais sirenes. Mais perto.
Andem logo, por favor. Implorei sem conseguir falar. Minha família está lá dentro.
Ergui a cabeça, e me perdi. Não havia mais helicóptero, tudo tinha ido pelos ares assim como nós. Restavam só as labaredas de fogo sobre o que restou das ferragens.
Não pode ser. Pai. Mãe. Susan. Adam! Eu já não tinha mais voz.
Eu não podia mais ver nada, apenas o escuro. O conforto do escuro.
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