Ten acordou no meio de uma confusão de lençóis. Sentou-se no colchão. Estava puramente nu, com um fino lençol a cobrir as suas partes íntimas. Pegou no maço de tabaco na mesa-de-cabeceira e acendeu um. O fumo revoluteou ao seu redor e o cheiro intoxicou o ar do quarto. Com o cigarro na mão esquerda, usou a outra para gentilmente acariciar os fios castanhos do rapaz adormecido ao seu lado. Sem parar com as suas ministrações, Ten admirava o seu parceiro com uma fascinação incomum, analisando cada detalhe do seu rosto. O seu olhar parou então nos hematomas hediondos no seu pescoço e ombros que se tingiam já de uma coloração roxa e azul e que detinham ainda vislumbres de sangue.
Terminou o seu primeiro cigarro e rapidamente acendeu outro.
Cenas variadas repetiam-se na sua mente, como uma gravação infinita a que era obrigado a assistir. Cenas que desejava poder esquecer e apagar.
Pressionou as palmas das mãos contra a cabeça e sacolejou-a como se se quisesse desfazer das vozes que o atormentavam. Apercebeu-se que chorava e riu amargamente. Um riso desprovido de qualquer som e sabor. O cigarro que outrora estava entre os seus dedos jazia algures no chão, apagado e esquecido. Será que algum dia a sua dor teria fim?
As molas do colchão estalaram assim que o corpo inerte de Yuta se moveu. Ele grunhiu e abriu os olhos numa extrema lentidão. A mortalha que o cobria escorregou e revelou um torso mutilado, com marcas horrendas cravadas em cada pedaço de derme. Quando o seu olhar colidiu com o de Ten, a atmosfera tornou-se densa e compacta, silenciosa e fria. Como que em tom jocoso, a chuva derramava-se violentamente do lado de fora. Os orbes castanhos de Yuta dilataram-se. Ten encarava Yuta com amor e consolo no olhar. Queria esticar o braço e mimosear aqueles fios pardos e sedosos, afagar as bochechas pálidas e feridas, talvez beijar aqueles lábios pintados de sangue ressequido, mas foi incapaz de conter os ímpetos das garras invisíveis que estrangulavam o seu âmago. A sua mente fecha-se, como que coberta por um véu espesso que tudo esconde e nada deixa à vista. De súbito, Ten já não era Ten.
Yuta tenta falar mas dedos fortes circundam a sua garganta, sufocando-o, prevenindo-o de proferir qualquer palavra. Contudo, o seu olhar manteve-se preso a Ten, nunca o deixando apesar da frieza presente no olhar alheio. Yuta tomou as mãos no seu pescoço entre as suas e conseguiu, de alguma forma, emitir um sorriso quebrado. Ten fitou-o em descrença. Os seus dedos selados tentaram aplicar mais pressão naquela zona mas o seu domínio só se suavizou. Duas lágrimas solitárias desaguaram no rosto de Yuta.
- Porquê?
Yuta trouxe-o para perto de si. Envolveu-o nos seus braços assim que conseguiu sentar-se, a cabeça do parceiro repousava agora contra o seu peito, que em lágrimas já se desmoronava.
- Porque quer sejas Ten ou Thomas… amo-te independente de tudo.
Yuta reassegurou-o conforme sussurrava aquelas suas palavras entre maviosas blandícias sobre as costas de Ten, que se manteve silencioso durante todo o trajeto.
- Porquê… Porque não me deixas? Feri-te tantas vezes mas apesar disso continuas comigo.
- Sempre me disseram que nem sempre logras escolher a quem amar. Tens que abarcá-lo e foi o que fiz. Amo-te tanto como amo a Thomas porque sei que mesmo quando tens os teus dedos cercados em redor do meu pescoço e os teus olhos se tornam frígidos, ainda existe amor por detrás desses atos com significados ocultos. – Yuta murmurou, alto o suficiente para Ten o ouvir, embora a sua voz soe rouca.
- Eu não te mereço.
Ten desembaraçou-se do calor de Yuta e sentou-se na ponta da cama, ombros descaídos em derrota, face marcada por lágrimas mirradas.
Mas Yuta voltou a recebe-lo, contornou-lhe os ombros. Pele contra pele. Estigmas purpúreos e azuis contra vermelhos. A voz de Ten resplendia-se de remorso enquanto murmurejava incansáveis pedidos de desculpa. Yuta perpassou o seu dorso em levez toques com os seus dedos.
Após uma cadeia sem fim de apologias, adormeceram, eventualmente.
Talvez, ambos pensaram, talvez o dia seguinte lhes trouxesse normalidade – mesmo se o corpo de Yuta permanecesse cromatizado em tonalidades de roxo e azul; mesmo se o sangue de Yuta se conservasse tatuado nas mãos de Ten; mesmo se quando acordassem tudo o que mais desejassem se convertesse em cinzas e mentiras.
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