O funeral de Nicky não aconteceu no dia mais chuvoso do ano e nem no mais bonito. Era uma tarde ensolarada com nuvens escuras e uma leve brisa que vez ou outra se manifestava. Havia um máximo de cinquenta pessoas distribuídas em cadeiras brancas de plástico no gramado baixo do cemitério. A maioria havia se vestido de preto segundo os costumes, mas os membros do grupo de Simon Petersburg usavam suas cores distintas. Dawson estava com um vestido social azul; Richard usava cinza como em todos os dias; Simon usava um terno rosa bebê; Paul trajava uma camiseta social roxa e um jeans rasgado; Katherine usava um vestido justo vermelho com um decote bem menor que o habitual; Abigail estava com uma camiseta verde do Ben 10 que pertenceu a Nicky e Dickinson, apesar de ser um grande adepto da cor preta, acabou decidindo ir com uma blusa e uma calça branca.
Richard aguardava a sua vez de falar na primeira fileira. O papel que havia decorado estava guardado por precaução no bolso de sua camisa, mas nem mesmo aquilo o confortava. Quando a mãe de Nicky enfiou a cara em uma remessa de lenços de papel e saiu tropeçando no gramado, ele se levantou com pesar, subiu no palanque de madeira, pegou o microfone e respirou fundo.
— Nicholas Campbell era o melhor amigo que um desajustado social como eu poderia ter — Richard tinha a voz trêmula quando começou o discurso. — Há alguns meses, Nicky sofreu um acidente e... — ele fez uma pausa e seus olhos se encontraram com os de Simon por um milésimo de segundo antes que o líder do grupo passasse a encarar o próprio braço engessado com o semblante impassível. — E-eu...
Dawn tomou o microfone das mãos do namorado e o arremessou para o irmão que acompanhou seus movimentos por instinto. Meio sem jeito, o caçula dos Moore passou uma das mãos pelos cabelos que iam até os ombros e aproximou os lábios do microfone.
— Boa tarde — anunciou Dicky com um sorriso triste enquanto se endireitava no palanque. Ele olhou para Richard encolhido em sua cadeira de plástico nos braços de sua gêmea, engoliu em seco e tentou encontrar palavras confortáveis dentro de um coração endurecido pela tristeza. — Uma pessoa me disse certa vez que nós não sentimos muito quando os outros morrem — Abigail deu um breve sorriso à menção de uma de suas frases do RPG. O melhor amigo da ruivinha assentiu ao encontrá-la sentada em um dos últimos lugares e prosseguiu. — Acredito que não seja uma frase completamente certa ou errada. Nenhum de nós teve ou tem uma vida fácil — Dicky tornou a olhar para o público e a encontrar seus amigos separados em fileiras distintas. Exceto por sua irmã e o namorado, cada um havia se sentado em um ponto aleatório longe dos demais. A separação doeu em seu peito quando ele retomou o seu discurso improvisado. — Por mais rico, bonito, inteligente, sortudo ou talentoso que você seja, ainda assim vai ter problemas. É claro que, estando de fora, nós achamos que uma pessoa que está sempre sorrindo tem uma vida incrível.
“Nicky vivia sorrindo. Mesmo quando o pai abandonou a sua família ele continuou sorrindo. Levaram anos para que um problema deixasse-o abatido a ponto de se fechar para o mundo. Foi preciso que um acidente lhe arrancasse o movimento das pernas para que ele se rebelasse contra alguma coisa. Tudo isso só prova que nós precisamos nos esquecer um pouco de nós e concentrarmo-nos em outras pessoas. E também sei que precisarei de décadas pra me esquecer completamente de Nicholas Campbell. No dia de hoje, eu realmente sinto muito. Sinto muito por não ter saído com Nicky todas as vezes que combinamos e sinto muito por ter deixado um trajeto de quarenta e três minutos de metrô e uns quinze a pé nos distanciar. Também sei que vocês sentem muito e espero que aproveitem melhor a companhia das pessoas de quem gostam.”
Ele sorriu ao ver seus amigos se levantarem e o aplaudirem em cima da grama sintética e aguardou até que as pessoas fizessem silêncio de novo para retomar.
— Eu sou Alexander Dickinson Moore e me orgulho de sentir muito por alguém.
*
— Toda vez que esse garoto abre a boca eu sinto vontade de dar pra ele — Simon estava espremido no canto esquerdo do carro ao lado de Abigail. Dickinson ia sentado no colo da menina e o líder aproveitou a deixa para apertar a bochecha do outro com a mão que não estava engessada. — Aquele discurso foi incrível. Você daria um excelente advogado.
— E você daria pra um excelente advogado — revidou Katherine do banco do carona.
O carro se encheu de risadas enquanto Simon resmungava baixinho sobre como todos estavam em uma conspiração contra ele.
— Quem diria que você diria seu primeiro nome em público — comentou Sarah para o gêmeo — PORRA — xingou quando o carro passou por cima de um buraco e a fez bater a cabeça no teto.
— Acho que eu vou ser só Alexander no próximo ano — e antes que alguém lhe perguntasse o motivo, prosseguiu: — Dickinson é íntimo demais. Dicky é pessoal demais. Alexander me faz parecer velho o suficiente pra pegar todas as garotas de Yale.
— E todos os garotos também — acrescentou Richard.
— Olha aqui, moleque. Você já come a minha irmã, então sem gracinhas.
— Mas comer ela já faz parte do pacote...
Sarah pisou no pé do namorado com força.
— AI!
— Não é porque eu tô no seu colo que é pra falar que a gente se pega forte.
Paul continuou dirigindo com um sorriso nos lábios enquanto os membros do grupo de Simon Petersburg trocavam ofensas entre si. Apenas Abigail permaneceu quieta durante todo o trajeto. A ruivinha estava com o fone plugado no celular e usava as costas de Dickinson para apoiar o celular enquanto via as gravações de dois dias atrás. Ela acabou colocando em uma playlist do Woodkid depois de um tempo e se deixou levar pelas lembranças.
— Eu não sabia que as pessoas podiam se unir pela arte — comentou Nicholas com ela na primeira vez em que o grupo teve uma reunião.
— Acho que costura não está totalmente ligada à arte, mas não posso negar que o que a Katherine faz é um atentado contra as passarelas de Milão. Eu posso te contar uma coisa?
— Claro.
— Comecei a fazer regime pra ver se entro em uma das roupas dela.
— Aposto que ela faria qualquer peça que você pedisse — disse para a menina.
Abigail deu risada com o comentário.
— Nós duas somos bem diferentes. Sei lá.
Nicholas segurou nos braços da garota e a fez olhar diretamente nos olhos. Ele tinha uma leve heterocromia ocular que os óculos de lentes embaçadas escondiam, mas ela percebeu a diferença entre um olho e outro e se perguntou como não tinha notado aquilo antes.
— Vocês duas tentam capturar o melhor ângulo das pessoas — ele apontou para a câmera presa por um cordão no pescoço da garota e ela abriu um meio sorriso. — Eu espero conseguir fazer algo incrível assim algum dia.
— Faça-me o favor... Você vai ser um escritor incrível.
— Você acha? — os olhos do menino brilharam e a sua heterocromia ficou ainda mais nítida. Nicholas tinha usava roupas de criança e a barba rala no queixo fazia-no parecer uma criança com um rosto de adulto. Mesmo assim, Abigail nunca achou uma pessoa tão intensa quanto o amigo naquele momento.
— Eu tenho certeza.
A playlist mudou para Iron e seus pensamentos foram da água para o vinho. Abigail se lembrou da noite do acidente. Simon havia ficado de dar uma carona para Nicky e acabou bebendo demais. O garoto se recusou a entrar no carro e Simon, em um momento de fúria, acabou acelerando com tudo para cima do menino e fraturando a sua coluna. Ela sabia o quanto ele se sentia arrependido e perdeu a conta de quantas vezes ele lhe mandou mensagens de texto gigantes falando coisas horríveis sobre si mesmo. Lágrimas escorreram pelas bochechas da menina e ela se remexeu no banco, atraindo a atenção de Dicky.
— Tá tudo bem?
Ela negou com a cabeça.
— Vai ficar — sussurrou.
O carro ficou em um silêncio desconfortável e a menina decidiu compartilhar outro segredo.
— Vocês sabiam que foi Nicky quem escreveu as regras do jogo?
Dickinson caiu na gargalhada quando Simon resmungou sobre “aquele filho da puta ter feito ele de vilão.”
— Eu realmente vou sentir falta dele — falou Paul. — Espero que as pessoas tenham aproveitado o discurso do nosso querido Alexander.
O moreno encarou o reflexo sardento no espelho retrovisor e puxou uma mecha de cabelo comprida e irregular.
— Se isso fizesse o Nicky voltar, eu me vestiria de mulher todos os dias.
Katherine abriu um sorriso malicioso em seu canto do carro.
— Será que podemos voltar para o cemitério? Nós precisamos ter certeza de que ele está morto. Por favor, Paul!
Richard suspirou com a cabeça tombada nas costas de Dawson e lamentou pelo futuro que Nicky não teria.
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