Jim declarou aquele domingo como “o dia mais longo de todos”. Ele havia acordado duas da manhã com um trote feito por Dickinson Moore; trote que não era mais do que um dos desafios propostos pelo jogo de Simon Petersburg, que estava inconsciente na cama do hospital e tinha encontrado um corpo no porão de sua casa. Segundo Abigail Prescott, eles costumavam se reunir por lá porque era o único cômodo à prova de som e que, assim, não incomodariam os vizinhos. O garoto do salto alto, Nicky, deu a entender que Simon Says era uma brincadeira de gosto duvidoso. Não que não fosse uma coisa óbvia depois que viu Petersburg xingar Abigail de “porca imunda”, mas havia algo a mais naquilo tudo e o delegado sabia que todas aquelas interrupções estavam atrasando a sua investigação.
Hopper abriu um dos chicletes baratos que comprou na máquina de doces do hospital e o triturou com os dentes enquanto esperava notícias de Simon. Edward Black parecia aéreo naquele dia. Ele continuava exibindo seus sorrisos habituais, mas Jim tinha a impressão de que algo incomodava o médico.
— Hoje é o sétimo aniversário da morte de Charlie — informou uma voz feminina.
Ele se virou e deu de cara com Isabella, esposa de Edward. Ela trajava um vestido preto chique que batia acima dos joelhos e tinha cheiro de spray de cabelo e hortelã. Jim sempre achou que ela era uma das mulheres mais bonitas da cidade até o filho caçula morrer e Isabella entrar em uma guerra contra o álcool. Edward a trancou em uma clínica durante vários meses e acabou enviando o primogênito, Richard, para morar com a avó até que a mãe melhorasse. Hopper sabia que Richard também estava doente e se sentiu culpado por deixar o garoto mofando na delegacia.
Meio sem jeito, levantou-se do assento apertado e deu um abraço de condolências na mulher.
— Libere o Richard do interrogatório — Isabella sussurrou quando Jim a abraçou.
O delegado recuou alguns passos e a encarou com expressão fechada.
— Por favor — pediu com os olhos pidões. Ela se inclinou e o primeiro botão de seu vestido se soltou, revelando o seu decote. — Por favor.
— Você sabe que isso vai contra a minha política, Isabel. E arrume o seu vestido, por favor. Você é uma mulher casada.
— Não seja assim, Jimmie — ela agora passava as unhas pelo antebraço de Jim. — Nós tivemos tantas noites...
Hopper segurou o braço dela com força e a mulher fez um biquinho infantil antes de sorrir.
— Quem foi que partiu seu coração pra você se tornar tão insensível?
— Eu vou embora, Isabel — disse antes de soltá-la.
— É a única coisa que você sabe fazer, não é? Fugir.
Ele deu um meio sorriso e a encarou novamente.
— Nós dois temos maneiras diferentes de enfrentar as situações difíceis — a mulher fechou a cara com a observação. — Tenha uma boa vida, Isabella — acrescentou antes de sair do hospital.
*
Katherine estava debruçada em cima da mesa de um dos policiais quando Paul saiu do banheiro. Os dois conversavam em voz alta e a garota vez ou outra enrolava uma mecha castanha no dedo indicador. Discretamente, o garoto se esgueirou atrás de um vaso de plantas para bisbilhotá-los.
— Você não tá falando sério.
— Mas é verdade! — a menina riu sem graça. — Eu sou a maior fã do gênero terror que você vai conhecer.
— Alguma preferência?
— Eu vou ter que te matar se te contar.
— Acho que o risco vale a pena — o policial avançou para pegar o queixo de Kate, mas a garota se desvencilhou e deu uma risada.
— Sinto muito, mas eu tenho namorado — comentou.
— Que pena.
— E um amante — acrescentou com malícia.
Paul riu baixinho com a observação de Kit-Kat até o policial empurrar Katherine e prensá-la contra a parede.
— Então pode ter dois.
Ele derrubou o vaso de plantas de um metro e meio no chão e correu de volta para o banheiro quando o policial pegou um revólver de seu coldre e atirou contra os restos da planta por puro instinto. Kate aproveitou a distração para surrupiar a impressão que o fax estava recebendo durante a conversa e dobrou o papel até que ele coubesse dentro de seu sutiã. Depois, pediu desculpas pelo transtorno e caminhou apressada até o banheiro onde viu McNamara se esconder.
Pawel ainda respirava com dificuldades quando a garota fez um “psiu!” para que ele destrancasse a porta.
— Sou eu — sussurrou. — Eu peguei uma pista.
O rapaz destrancou a porta e Katherine se jogou em seus braços e começou a soluçar.
— Shhhh. Tá tudo bem — ele a envolveu em um abraço depois de trancá-los no cubículo apertado e aguardou pacientemente enquanto a menina chorava. — Você é muito forte, sabia?
Kit-Kat se afastou e deu um sorriso sem dentes. Paul sempre a confortava em momentos como aquele e ela era extremamente grata por ele parecer estar sempre disposto a ouvi-la e a ajudá-la.
— Eu consegui uma pista — tornou a repetir. — Feche os olhos que eu guardei no meu sutiã.
— Mas eu já vi o que você guarda no seu sutiã.
A garota deu um soco no ombro dele.
— Idiota.
Relutante, Paul fechou os olhos e tornou a abri-los quando ouviu o barulho de papel sendo desamassado. Ele leu por cima do ombro o conteúdo do papel.
Análise de campo
Impressões digitais e DNA da vítima confirmados
Vítima: Sarah Dawson Moore
Lesões na parte superior esquerda da cabeça e pescoço quebrado por queda
Causa da morte: Ferimento na artéria braquial
Arma do crime: não localizada
Impressões digitais na área do crime condizem com os suspeitos
Impressões digitais mais frequentes no ambiente: Paul McNamara
— Pobre Dawson — disse Katherine antes de começar a soluçar e a chorar compulsivamente.
Paul se sentou na tampa da privada e puxou Kit-Kat para o seu colo. Ele limpou as poucas lágrimas que se permitiu derramar enquanto os dois ficaram ouvindo o choro ininterrupto da menina. Era inacreditável que a pessoa mais forte do grupo estivesse morta.
Ele se lembrava de quando se mudou para Rock Springs a pedido da avó de Simon. A velha sabia que o garoto tinha grande afeição pelo melhor amigo mesmo que a sua mãe trabalhasse feito condenada em um dos vários shoppings que a velha Petersburg administrava. E soube também que a mãe finalmente ia receber um descanso e eles teriam seus custos bancados pela mulher se ele continuasse sendo amigo do loiro.
Da primeira vez em que se viram, Simon e ele tinham seis anos e a mãe dele, Mary, ainda estava viva. Era uma mulher com olhos azuis e longos cabelos loiros. O próprio Simon ainda tinha madeixas loiras, embora o sol fraco de Wisconsin tivesse escurecido o seu cabelo. A mulher nunca o tratou diferente por ele ser negro que nem a maioria das pessoas. Paul tinha a impressão de que a mulher o tratava até melhor que os outros filhos de funcionários.
— Você é o meu favorito, então merece mais uma rodada de biscoitos — ela costumava brincar.
Mary dizia o tempo todo que admirava a mãe de Paul, Lauren, e que a mulher era o espírito da força de vontade. Eram apenas os dois desde que o pai fora preso por porte de drogas. Paul costumava se sentir bem até Simon dizer uma coisa ruim no dia do enterro de sua mãe.
— Se seu pai fosse branco, ele não estaria preso — eles tinham quase nove anos agora e Mary estava deitada no caixão com os cabelos em tufos e as pálpebras extremamente fechadas.
Simon era uma pessoa com um círculo social muito fechado, mas Paul nunca imaginou que aquele menino de nariz arrebitado e pose esnobe fosse tão filho da puta tendo uma mãe tão bondosa. Ele tentou ignorar os péssimos modos de Simon porque era o velório de Mary, mas o garoto tornou a investir.
— Eu aposto que você vai acabar preso algum dia também.
— Que mentira — disse o rapazinho de cabelo crespo.
— Minha mãe me ensinou a não mentir. Eu só falo a verdade até que eu esteja em apuros. Aí eu direi que foi você que fez a coisa errada e a polícia vai culpá-lo porque é negro. Do jeito que eles fazem nos filmes.
Foi a primeira vez que Paul deu um soco em Simon e mandou o garoto ser menos burro. Simon limpou o sangue que escorria do nariz com a manga do terno chique que usava e sorriu.
— Ninguém nunca disse que eu era burro.
— Deveriam dizer. Vai acabar se ferrando algum dia porque é branco, rico e burro.
Simon contou a Paul no dia que o garoto se mudou para Rock Springs sobre o “incidente de Halloween”. Contou sobre o garoto que se vestia de garota e que parecia muito com a sua mãe. Ele tinha a impressão de que era a única pessoa em quem o garoto confiava e se sentiu extremamente culpado por trair a sua confiança ficando com Katherine.
— Eu gosto dela — disse para Simon certo dia quando viajaram novamente para Los Angeles. Eles passaram a tarde no shopping da avó de Simon comendo e bebendo por conta da casa — A gente já ficou algumas vezes.
Ele pensou que o amigo iria batê-lo por isso, mas se impressionou quando o garoto soltou uma risadinha e tornou a beber sua vitamina.
— Não liga pra isso. Eu sou branco, rico e burro.
Agora, olhando novamente para a análise das impressões digitais, ele se questionou se Simon realmente era tão burro quanto ele pensava.
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