Jim ficou dentro de sua viatura esperando a chuva passar. Ele ainda não conseguia esquecer as palavras de Isabella mesmo que tivesse tentado parecer o mais frio possível. Os dois viveram juntos o suficiente pra que ela soubesse interpretar as suas fraquezas.
A verdade é que Hopper nunca chegou a se casar, mas se envolvia com mais mulheres que era capaz de contar nos dedos. Ele não podia negar que sentiu uma onda de proteção paterna durante o interrogatório de Abigail e sabia que as chances de ser o pai da garota eram grandes. Relutante, acabou ligando para a mãe da garota e ambos concordaram que ele faria um teste de DNA para sanar quaisquer dúvidas.
Quando o exame ficou pronto semanas depois, Jim Hopper pegou uns dias de licença e foi parar em uma cidadezinha de duzentos habitantes perto de Rock Springs. Isabel estava certa.
Ele sempre fugia da realidade.
*
— Você tem certeza de que ele está bem? Recusou até o sanduíche que eu trouxe mais cedo...
— Ele? — o outro policial soltou uma gargalhada com a insinuação. — Tenho certeza de que “ele” é uma garota. Nenhum garoto ficaria tão bem em um vestido. Eu até tentaria beliscar essas coxas branquinhas apetitosas, mas preciso achar o documento que me enviaram pelo fax. Perdi a análise de campo e a garota gostosa no mesmo dia. Que porra.
— Você é horrível, Patrick. Não sei como o Jim não te fichou por abuso sexual ainda.
— Blá-blá-blá. Ninguém mais aguenta os seus sermões, Mark. Se a menina quiser comer, ela vai pedir uma rosquinha, um refrigerante ou o caralho a quatro. Só se ela não souber falar, mas aí é outro caso — Patrick riu ao imaginar Jim Hopper tentando interrogar uma garota muda. — Deve ser uma beleza gemendo. E tão apertada, nossa.
— Puta que pariu — Mark se levantou da sua mesa de trabalho e segurou bem firme a gola da camisa do outro policial. — Volte a procurar o documento e guarde sua perversão só pra você, senão eu mesmo resolvo isso.
Patrick recuou alguns passos e tornou a dar uma conferida em Dickinson antes de sair da sala.
Dicky tentou se concentrar novamente em seu livro, mas até mesmo Animais Fantásticos e Onde Habitam parecia ser incapaz de chamar a sua atenção depois daquele diálogo.
Por que é que os homens eram tão cruéis?
Ele observou o policial de quase dois metros apontar alguns lápis e decidiu chamá-lo.
— Senhor…? E-eu…
O homem interrompeu a sua tarefa e encarou o garoto.
— Quer algo pra comer? — Dicky assentiu timidamente e arrancou um sorriso de Mark — Alguma preferência?
— Acho que aquele sanduíche que o senhor me ofereceu cairia bem.
— Então vou fazer outro. Aquele teve um fim trágico — o policial deu umas palmadas por cima da própria barriga e arrancou uma risada do rapaz. — Sinto muito pelo Patrick. Ele passou o dia louco por causa daquela garota…
— Kit-Kat?
— Esse é o nome dela?
— Foi assim que Simon resolveu chamá-la — ele deixou o livro de lado e passou a encarar o distintivo que brilhava no peito do policial. — Ele deu um apelido pra todos nós, mas a Abigail e a Katherine foram as que mais se sentiram incomodadas. Não tenho problemas em ser chamado de Dicky¹, mesmo que a pronúncia seja que nem… O senhor sabe.
— E qual é o seu nome?
— Dickinson — ele fez uma careta ao pronunciar. — Odeio o meu nome.
— É um nome forte — comentou. — Significa “valente”.
— Como é que o senhor sabe disso?
O policial tornou a sorrir e acrescentou antes de seguir rumo à cozinha:
— Tenho um palpite.
Dickinson não acreditava em palpites. Foi até a mesa do homem e encontrou um arquivo com os seus dados e uma foto 3x4 de quando ele tinha doze anos. Apressou-se em dobrar o papel e guardá-lo dentro do livro quando ouviu passos se aproximando. Ele ficou surpreso ao ver Katherine e Paul de mãos dadas e se surpreendeu ainda mais quando a menina o envolveu em um abraço apertado.
— A D-Dawson morreu — sussurrou antes de tornar a chorar. — Eu sinto muito. Muito mesmo.
Dickinson se sentou antes de ler o documento com o nome da irmã e sentiu o seu coração despedaçar aos poucos. Aceitou outro abraço de Katherine e percebeu que, pela primeira vez em anos, ele era incapaz de derramar lágrimas.
*
Simon quase gritou de frustração quando percebeu que estava em uma cama de hospital. Ele odiava os tubos presos em seu nariz e em seu braço e odiava os bipes que os aparelhos do quarto faziam. Sentiu que hiperventilava e tentou se distrair daquele som estúpido e das lembranças do último dia em que viu a mãe viva.
— Alguém me tira daqui! — gritou. — Eu não quero ficar aqui!
Foi o pai de Richard quem encontrou o garoto encolhido no chão. Simon se perdia meio a uma confusão de fios, pomada pra alergia e lágrimas. A camisola cobria até metade de suas coxas e o médico ficou estático por breves segundos ao se lembrar do dia em que levou o filho caçula nos braços para o necrotério depois que o seu coração parou de bater.
Ele teve a mesma sensação de impotência ao se deparar com aquela cena.
— Simon… — o médico se curvou até o garoto, que recuou alguns centímetros.
— Eu não queria ficar sozinho. E-eu só queria…
— O quê? O que você queria?
Simon passou a mão na área coberta de gazes e encarou o médico. Richard era a pessoa que passava a maior parte do tempo livre com Simon desde que Paul relevou estar saindo com Katherine. Petersburg sabia sobre as crises que Ricky tinha e se aproveitava dele pra conseguir um pouco de maconha medicinal sempre que a sua alergia piorava. Ele sentia tanta vontade de “apagar” que passou a falsificar as receitas do menino depois de uns tempos. A ferida no ombro ainda doía e tudo o que ele queria era esquecer a dor e o assassinato de Dawson.
Simon podia ser mesquinho, mas não entregaria Richard só porque estava se sentindo mal. Apoiou-se no suporte de soro ao lado de sua cama, enxugou as lágrimas e se sentou na cama com um sorriso infantil nos lábios.
— Eu queria um pouco de morfina.
O doutor Edward respirou mais aliviado e começou a rir.
— Acho que eu posso deixar essa passar.
Quando o médico saiu do quarto, Simon estava de olhos arregalados envolvido em sonhos de cores fortes que não doíam. Lembrou-se do hálito de canela de Katherine e do brilho labial de cereja de Dawson quando ela lhe deu um selinho de vingança. Lembrou-se de Richard lhe dando um peixe de estimação em seu aniversário de dezesseis anos; de Nicholas dando uns amassos em Ethan, o esqueleto, no laboratório de Ciências; de Paul fotografando Simon com a mãe em frente ao McDonald’s e da mãe comprando sorvete para os dois. Lembrou-se da textura do cabelo de Dicky em sua fantasia de Mary Poppins, de seus olhos azuis e da quantidade de sardas que o menino tinha no rosto.
Simon também se lembrou da semana em que recrutou os membros para o seu desafio. A escola não tinha tribos definidas e ele se sentiu na obrigação de definir panelinhas melhores que líderes de torcida, atletas, nerds, valentões e “sobras”. Ele também tinha suas segundas intenções, mas sabia que o delegado o obrigaria a confessar tudo no interrogatório.
Katherine concordou em participar do Simon Says depois que Simon encheu o seu armário com bilhetes românticos e rosas. Abigail concordou depois que Simon subornou um professor a deixar a média da garota intacta mesmo que ela tivesse perdido dois décimos em uma questão da prova. Nicholas concordou em participar porque, segundo Paul, tinha um parafuso a menos. Richard ficou interessado em participar quando soube que Sarah talvez entrasse para o desafio. E então Simon foi atrás de Sarah, que descobriu ser a irmã de Dicky. A menina odiava ser chamada pelo nome, então o ignorou até que ele a chamasse de Dawson. Ele sabia que ela só concordou em entrar pro Simon Says quando mentiu sobre Dickinson estar supostamente participando do jogo. O rapaz os observava de longe no corredor. Ele teve dificuldade em encarar Dickinson tão de perto depois da noite de Halloween, mas acabou revelando que a irmã havia concordado em participar do jogo e o menino simplesmente assentiu quando Simon perguntou se ele gostaria de participar e se dirigiu ao refeitório.
O garoto mergulhou o rosto no travesseiro e tentou aproveitar o torpor, mas nem mesmo a morfina fazia Simon não se sentir responsável pelo assassinato da garota.
*
O enterro de Dawson se passou em um dia com muito sol. Jim havia chegado atrasado e se sentou ao lado da tia de Simon e de seu marido. Simon estava em pé ao lado dos pais de Dawson e Dicky.
— Como vão as coisas?
— Eu não sei — respondeu a mulher. — Ele anda muito calado desde que tudo aconteceu. Não quer conversar, não quer comer e a alergia está pior do que antes.
— Ele se sente culpado. Leva certo tempo pra que as coisas voltem ao normal.
— Nenhum garoto que sofre tantas perdas volta ao normal.
Jim não sabia se a mulher se referia ao próprio sobrinho ou a Richard Black.
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