1. Spirit Fanfics >
  2. Sinner Like You >
  3. A Família Pierce

História Sinner Like You - A Família Pierce


Escrita por: NattalySoares

Capítulo 13 - A Família Pierce


Steven Engel

Eu não podia dizer simplesmente: “Eu prefiro passar quase uma dentro de um táxi qualquer fedendo à charutos do que enfrentar mais cinco minutos de vergonha ao seu lado mesmo que estejamos indo para a mesma droga de lugar” sem parecer ainda mais idiota diante de Mike - a simples ideia em pensamento já era capaz de fazer com que eu quisesse me estapear, então era exatamente por isso que o quaterback e eu caminhávamos lado a lado em direção ao estacionamento, afundados em um silêncio sufocante que estalava nos meus ouvidos.

Eu precisava fazer alguma coisa… Dizer alguma coisa… Não importava muito o que seria, eu só sentia a necessidade de parecer menos estúpido.

Eu não era homofóbico. Ou, pelo menos, eu me esforçava para não ser; mas a família Engel era conhecida por sua intolerância. Vindo de onde viemos, com nossa árvore genealógica sendo plantada na América graças à um coronel nazista fugitivo que não perdeu tempo antes de se associar à grupos de supremacistas brancos, não era difícil imaginar como o preconceito, em todas as suas esferas, se conectava diretamente ao meu sangue e ao meu nome.

Mas eu estava tentando fugir disso.

Depois de anos de cegueira, foram justamente os meus pais, tão religiosos e elitistas, que fizeram minha fé, a fé no que era certo ou errado, ser abalada. E só uma pessoa se pôs ao meu lado na tentativa de ajudar… O menino judeu que eu havia ignorado por tanto tempo, o garoto que estudava comigo à anos e eu não fizera questão de, ao menos, saber o nome…

Viver na Alemanha foi o melhor modo que encontrei para me reinventar, para tentar ver o mundo com os meus próprios olhos e descobrir sobre o que mais eu estava enganado. Conhecer a origem do meu sangue, e também a história do povo daquele garoto assustado que me estendeu a mão quando eu mais precisava, foi só o começo da jornada, o primeiro passo em direção à mudança que eu me dispusera a fazer.

E eu estava trilhando o meu novo caminho, transformando o meu destino à partir da primeira vez que me sentei ao lado de Blink, a menina negra com dreadlocks roxos e cor de rosa, na aula de história alemã, a mesma Blink que me arrastou por Berlim durante horas em nome de uma marcha pelos direitos das mulheres e que havia me apresentado Yousef, o bailarino muçulmano capaz de emocionar toda a escola durante um debate sobre os legados do holocausto.

Eles haviam explodido a minha mente de tal forma que se tornara impossível voltar ao que eu era antes - não que eu quisesse, é claro. Mas a diferença estava tão nítida no novo eu que eu podia ver os olhares tortos dos meus pais sempre que eu expunha uma opinião própria contrária às deles.

E eu estava disposto à me manter nessa jornada de aprendizagem mas não era simples como podia parecer. Não existia um botão capaz de desligar todo o preconceito que me foi imposto por anos como via de regra e, como se tudo isso já não fosse o suficiente, ainda havia todas essas sensações novas e assustadoras que Mike provocava em mim com um simples olhar.

Eu queria dizer tudo isso à ele, desesperadamente. Dizer que eu estava em um lento e - por que não? - doloroso processo de evolução, já que por algum motivo que escapava da minha compreensão, a opinião de Mike importava para mim. Mas nada disso sairia da minha boca, por mais que eu quisesse, então me concentrei em algo mais simples por hora: 

- É uma choper? - Perguntei timidamente assim que paramos ao lado do automóvel. O metal preto rebaixado contrastava lindamente com o prateado do guidão comprido e eu achei ter me lembrado do nome do modelo.

- Como? - Mike me encarou com confusão evidente.

- A sua moto… - Indiquei com a cabeça me perguntando se não havia falado besteira - É como chamam as desse tipo, certo? Choper…

Ele olhou para o veículo por algum tempo, abrindo o bagageiro sob o banco para tirar o próprio capacete pontudo lá de dentro.

- Sim - Respondeu com a voz seca que, mais uma vez, me atingiu como um tapa. E então respirou fundo, parecendo relaxar minimamente antes de responder - Eu e meu pai montamos juntos no verão passado…

Senti meus próprios olhos se arregalando em surpresa:

- Montaram, tipo… montaram? - Perguntei maravilhado e recebi em troca apenas um aceno afirmativo de cabeça que fez com que eu me voltasse para a moto com outros olhos - Deve ter sido divertido… E ela é linda!

- Obrigado! - Ele agradeceu com uma expressão sonhadora no rosto que me fez pensar se ele não estaria se lembrando do tempo que gastara ao lado do pai encaixando peça por peça até concluírem a construção daquela máquina linda que combinava perfeitamente com Mike, até na rebeldia silenciosa de um cano de descarga virado para a frente - Deu um trabalho infernal… - O moreno começou, bufando uma risada - Perdemos metade das férias entre cursos de mecânica e a garagem de casa, mas valeu à pena. Eu não trocaria a Freya por nada!

Sorri com essa imagem mental. Minha mão tocando com carinho o banco de couro negro reluzente que eu não havia reparado muito mais cedo graças ao meu nervosismo:

- Você deu um nome à sua moto… - Me encantei com a ideia - Geralmente, as pessoas só batizam automóveis quando são muito importantes para elas, mas parece ser um costume na sua família… - O silêncio se estendeu por algum tempo, o que fez com que eu me voltasse para Mike, apenas para encontrá-lo com um olhar confuso - Argos… - Tentei me explicar - Não é esse o nome do seu motorhome?

Mike fez um som de compreensão:

- Os meus pais são muito ligados à mitologia grega, eu sempre preferi o frio do norte… - Deu de ombros - Achei que a deusa do amor e da guerra seria uma boa companheira…

- Amor e guerra? - Franzi a testa involuntariamente - Me parece uma combinação um tanto estranha…

- Não acho - Ele afirmou. Os olhos, dourados novamente graças ao sol, pregados nos meus - Quantas guerras já foram começadas por amor? Seja o amor de Helena ou o amor à Deus… Pessoas fazem coisas absurdas por ele.

Pensei naquilo por um instante, concluindo que ele tinha razão. Eu mesmo conhecia pessoas capazes de coisas loucas “em nome do amor”.

- É… - Anuí - Acho que você tem razão…

- Infelizmente, eu tenho - O sorriso triste dele me confundiu mas não tive tempo de pensar muito antes que ele me estendesse o capacete extra que, milagrosamente, havia sobrevivido pendurado no guidão durante todas aquelas horas - Vamos?

E todo o meu carinho por Freya caiu por terra instantaneamente ao me lembrar do frio cortante que me atingira na viagem de vinda

- Vamos! - Tentei sorrir com confiança, mas me encolhi involuntariamente, esfregando os braços por antecipação e Mike apenas revirou os olhos, apoiando os equipamentos de proteção sobre o banco e retirando a jaqueta de couro para me entregar.

- Não adianta recusar dessa vez!

--------

Não adiantara mesmo recusar. Então, mais de uma hora depois, quando finalmente entramos na propriedade onde ocorrera a festa da noite anterior, eu me sentia quente e aconchegado envolto no forro de moletom da jaqueta com o aroma cítrico de Mike. Um pouco justa demais nos ombros, eu era obrigado a admitir, mas ainda assim incrivelmente confortável.

Michael estacionou em frente à casa e nós descemos rapidamente, o rugido do motor ainda ecoando nos meus ouvidos quando uma voz chamou minha atenção para a varanda ampla:

- Pensei que criaria raízes aqui… - Um homem extremamente parecido com Mike se aproximou com um sorriso simpático.

- Pensei que a "drama queen" da família fosse a Brittany… - Michael resmungou enquanto tirava o capacete, mas sua voz soava divertida e eu apenas imitei seu movimento, observando os dois em silêncio.

- E de onde você acha que ela herdou toda a capacidade que tem para o exagero? - O homem riu abraçando o filho rapidamente - Agradeça à Darwin por ter ficado com o talento artístico de sua mãe!

Mike o empurrou para longe também rindo e eu precisei controlar a pontada de inveja que isso me causava, engolindo o amargo que havia ficado na minha boca ao pensar que eu nunca teria uma relação assim com o dr. Engel.

- Eles ainda estão na piscina?

- Não, seguiram para casa - O sr. Pierce mordeu o lábio inferior, a única parte de seu rosto que destoava do filho, já que era bem mais fino - A Raposinha foi embora cedo, alguma coisa sobre a mãe dela…

- Claro… - Mike torceu o nariz - Sempre a sra. Fox! - E então arregalou os olhos levemente, como se lembrasse de algo - Pai, esse é o Steven…

- Ah, claro! - O homem se voltou para mim, os olhos amendoados brilhando dourados por trás dos óculos redondos - Desculpe o mau jeito… Christopher Pierce, é um prazer…

- O prazer é meu, sr. Pierce! - Afirmei, apertando sua mão estendida com firmeza.

- Apenas “Christopher”, rapaz. Não sou dado à esse tipo de formalidades… - Ele deu uma piscadela, sua voz baixando para um tom conspiratório - Sinto muito por ter atrapalhado o encontro de vocês, mas eu realmente preciso finalizar o contrato…

Não teve como controlar a expressão de pânico que, eu tinha certeza, se grudou no meu rosto. Eu podia sentir meu pescoço queimando junto às bochechas e agradeci à Deus por Mike interromper o fluxo de palavras do pai:

- Não houve encontro algum, papai - O moreno quase rosnou, seus olhos faiscavam pregados nos do homem mais velho em um sinal claro de aviso - Você não estava com pressa para devolver as chaves ao proprietário? - Ele tirou o molho do bolso, sacudindo-o em frente a Christopher que apenas olhou do filho para mim rapidamente, os olhos semi cerrados atrás dos óculos, antes de dar de ombros, pegar o objeto e entrar na casa. Mike suspirou sonoramente - Me desculpe por isso - Ele se voltou para mim assim que ficamos à sós - Meu pai tem o péssimo hábito de ver possíveis pretendentes por toda parte… - As íris douradas se reviraram nas órbitas.

- E ele não se importa? - Perguntei num impulso, as palavras pulando para fora da boca involuntariamente por estar realmente surpreso com a atitude natural de Christopher, algo que eu nunca vira em lugar nenhum.

- Com o que?

- Bom… - Dei de ombros distraidamente - Nós dois somos homens e ele age como se isso fosse normal…

As palavras deixaram meus lábios parecendo congelar o mundo ao redor. Mike arquejou sonoramente ao meu lado e não precisei de mais de um segundo para perceber o que eu havia dito…

Normal?”, eu só queria bater minha testa na parede. “O que caralhos eu tenho na cabeça?”

Merda! Merda! Mil vezes MERDA!!”, senti meus olhos se arregalarem em pânico na direção do moreno que me lançava um olhar gelado, as íris douradas em frestas, parecendo tão cortantes quanto a lâmina de uma espada. Eu havia soado como o meu pai e só o que podia pensar era que Blink teria me estapeado se estivesse por perto - e eu não moveria um músculo sequer em minha defesa.

- Então, quer dizer que eu sou “a-normal”? - O tom magoado de Mike separando a palavra com uma ênfase clara me atingiu como um soco no estômago e até tentei abrir a boca para dizer algo mas o franzir de sua testa me manteve em silêncio, ele parecia realmente furioso - E eu pensando que você podia ser diferente dos outros… - O moreno cerrou o maxilar, a decepção estampada no rosto descrente, os dedos se movendo contra as coxas em um gesto nervoso - Como eu pude ser tão estúpido?

- Mike, eu não…

- Avise ao meu pai que fui para casa… - Ele disse simplesmente, recolocando o capacete para então subir na moto, acelerando o motor em um ronco alto.

E eu fiquei ali, completamente estático, apenas vendo Michael acelerar até sumir de vista.

--------

Eu precisava desesperadamente de um cigarro. Ou de uma carteira inteira deles… Ou do meu saco de areia…

Melhor mesmo seria pôr a cabeça na reta do supino suspenso e soltar a barra!”

Era só nisso que eu pensava enquanto dirigia rumo à residência dos Pierce sob o olhar atento e afiado do sr. Pierce em pessoa, minha coluna perfeitamente ereta, o maxilar rígido, os nós dos dedos brancos enquanto eu espremia o volante com uma força desmedida.

- Eu realmente podia ter pego um táxi… - A voz suave de Christopher fisgou minha atenção, o timbre tão semelhante ao de Mike fez meu estômago revirar, mas mantive meus olhos firmes na estrada.

- Não havia necessidade… - Dei de ombros como se não fosse nada enquanto me amaldiçoava em silêncio por ser um coração de manteiga, incapaz de permitir que aquele homem simpático, que aparentemente era um ótimo pai, fosse para casa em um táxi fedido qualquer só porque eu havia sido um idiota deixando-o sem sua carona.

- O que aconteceu com o Mickey, afinal? - Soou curioso, não me dando tempo de pensar sobre o apelido infantil engraçado que destoava da figura austera de seu filho - Sabe porque foi embora sozinho?

Droga!”

O que eu poderia responder?

- Eu… E-ele… - Minha voz saiu baixa demais e eu pigarreei para tentar melhorar mas não consegui, me voltei para seu rosto confuso por um instante, percebendo que as íris âmbar dele, um pouco mais escuras que as de Mike, possuíam o mesmo poder de me deixar nervoso, então desviei minha atenção para a pista novamente - Ele só disse que precisava ir…

- Huum… - O homem coçou o maxilar que, reparando bem, também diferia ao de Michael, mais estreito e delicado - Acho que preciso ter uma conversinha sobre educação com o meu filho…

- Não! Por favor! - Me apressei demais e, em consequência, pude sentir a intensidade dos olhos dele sobre mim, então pigarreei pigarreei nervoso - Ele parecia estar passando mal - Inventei de última hora - Deve ter achado que o senhor ainda ia demorar…

O silêncio se estendeu de forma desconfortável dentro do carro, sua atenção ainda pesando sobre meus ombros enquanto eu esperava por uma resposta que não vinha. Respirei fundo tentando não provocar um acidente de trânsito mesmo que meus olhos insistissem em se desviar para o perfil do sr. Pierce à procura de diferenças e semelhanças entre ele e seu filho. Como um grande Jogo dos Sete Erros…

Os olhos eram quase idênticos, o mesmo formato bonito amendoado, os cílios espessos sob as sobrancelhas negras bem feitas destacadas na tez clara, apesar de a pele do homem ao meu lado possuir algum bronzeado, fugindo da palidez absoluta de Mike.

A estrutura física também era bastante semelhante, o mesmo corpo longilíneo dotado de músculos alongados, o mesmo quadril estreito em harmonia com ombros não tão largos e as coxas grossas. Eles escapavam completamente à realidade de corpos brutos da família Engel. Aparentemente, os Pierce conseguiam ser fortes e másculos mesmo com seus corpos mais delicados.

Minha própria observação correu sobre o meu corpo em um choque. O que eu estava fazendo, afinal? O que estava acontecendo comigo naqueles últimos dias?

Por que, em nome de Deus, eu estou observando os corpos de um colega de time e seu pai?”, eu só queria gritar, mas era como se eu estivesse preso em um looping de desespero infinito.

- Pode virar na próxima direita… - Christopher indicou com um sorriso simpático nos lábios, os dedos magros e compridos empurrando os óculos redondos para cima na ponte do nariz - Estamos quase chegando.

--------

Quando finalmente estacionei o carro em frente à residência dos Pierce eu me senti simplesmente maravilhado e precisei impedir que meu queixo tocasse o chão.

A mansão, construída no que pareciam ser lascas encaixadas de uma pedra rosada muito clara, se erguia do gramado verde em um casamento perfeito entre o clássico e o moderno. As janelas francesas enormes criando recortes delicados de vidro e madeira branca em meio à estrutura, harmonizando perfeitamente com a trepadeira verde clara que cobria boa parte das paredes no primeiro andar.

De onde eu estava, pude me maravilhar com o telhado claro distribuído em diferentes ângulos e alturas, além da cobertura cônica que cobria uma parte circular na lateral direita da casa, e que me fez imaginar se alguma princesa dormiria ali, já que, brilhando suavemente sob o sol fraco quase poente e exalando o perfume adocicado das rosas-trepadeiras brancas e cor de rosa que pendiam em cachos do teto na varanda de entrada, a mansão mais parecia o castelo encantado de algum conto de fadas infantil.

- Ual!! - Foi só o que consegui exclamar.

- Sou obrigado a concordar… - A voz divertida de Christopher se ergueu por trás de mim - Ela é linda, não é?

- Absolutamente! - Afirmei em um suspiro - Parece saída de um filme da Disney…

A risada anasalada soou no carro.

- Minha parte favorita são as rosas… - O braço claro salpicado de fios negros finíssimos se esticou à minha frente apontando para a planta - Confesso que a achei muito fria à princípio, mas foi só Valquíria fazer sua mágica das flores e voilà… Temos essa obra de arte.

- Valquíria? - Eu ainda estava bestificado pela beleza da propriedade, mas o nome conhecido despertou minha atenção e meus olhos se voltaram para Christopher.

- Michael não falou dela para você? - Perguntou, a testa franzida, e eu apenas neguei com um aceno de cabeça, a lembrança da figura miúda e distante no campo de futebol voltando à minha mente - É a princesa da nossa torre… - Indicou a parte mais alta da construção rosada com um sorriso carinhoso antes de voltar a falar - Agora vamos, é hora de preparar o jantar!

--------

Se Michael era bom em argumentação quando queria algo, Christopher Pierce podia ser ainda melhor.

E era justamente por isso que - mesmo depois de insistir repetidamente que minha melhor opção era seguir para casa - eu me encontrava na varanda da mansão, sob os arcos de madeira de onde os cachos de pequenas rosas se penduravam, nos cercando com seu delicioso aroma adocicado. O chão de pedras retangulares amareladas me fazendo pensar brevemente no caminho para a Cidade das Esmeraldas da história que eu tanto amava quando criança - mas o pensamento não durou muito já que, ao invés de torres verdes, o que se ergueu diante de mim foi uma porta de madeira maciça, larga, alta e absolutamente vermelha.

Não pude segurar o sorriso nostálgico e sonhador que se alastrou no meu rosto, me lembrando de quando havia visitado Londres pela primeira vez, ainda muito criança, e voltara para o Texas completamente apaixonado pelas “portinhas coloridas”. Na minha cabeça infantil, nada soava mais divertido - ou feliz - do que as ruas ladeadas com os mais diversos tons que coloriam as estradas das casas floridas.

Minha mãe deixou bem claro que as achava absurdamente profanas.

Respirei fundo mais uma vez, absorvendo, além do perfume, a calmaria que parecia emanar em ondas de todos os cantos daquele lugar, tentando guardá-la na memória.

Eu poderia morar aqui para sempre!”, pensei num suspiro, enquanto Christopher passava a frente entrando na casa mas, quando fui segui-lo, meus olhos se ergueram por algum motivo e eu parei para ler as inscrições na placa retangular de pedra amarela sobre a porta:

O CORAÇÃO QUER O QUE O CORAÇÃO QUER" 

- Steven? - Christopher se voltou para mim novamente - Você vem?

- O que? - Desviei os olhos das curiosas letras talhadas, confuso - Ah! Claro! Vamos sim…

Me deixei guiar para dentro e mais uma vez estanquei diante do hall de entrada. O som suave e triste de um piano nos envolvendo imediatamente. A melancolia adorável contrastando com a felicidade que o ambiente emanava.

A sensação de contradição se espalhou pelo meu corpo como um comichão agradável na nuca e eu me permiti observar o piso preto e branco que se desenrolava em círculos à partir de um ponto central onde uma mesinha alta sustentava um grande vaso de porcelana branca, repleto de belas peônias cor de rosa, sobre seu tampo minúsculo.

O pé direito duplo exibia um teto de vidro por onde eu podia ver o céu rosa-arroxeado do crepúsculo lá fora e valorizava os degraus negros lustrosos, assim como o corrimão de madeira branca bem trabalhada, que levavam ao segundo andar.

As paredes altas possuíam um tom estranho que me lembrava o amanhecer, como se um frasco de azul houvesse caído em um balde de tinta branca, criando aquela cor desbotada e adoravelmente despretensiosa. Mas o que me surpreendeu de fato, além do espírito geral, foi a parede esquerda, a mesma em que a escada se apoiava, onde o desenho realista de delicados ramos marrons forrados de minúsculas folhas em vários tons alaranjados se alastrava desde um ponto no canto inferior da parede até a borda do teto, trazendo o outono para dentro de casa.

Era simplesmente lindo.

- Parece que estamos com sorte… - Christopher comentou com um sorriso no rosto, abrindo uma porta sob a escada para guardar o casaco e os sapatos - Vamos! - Me apressou, indicando o armário com um aceno - Tire os tênis e guarde o casaco se preferir, não é sempre que ele toca piano…

- C-claro!!

Não entendi muito bem do que - ou de quem - ele falava, mas obedeci seus comandos, preferindo manter a jaqueta por algum motivo desconhecido, e o segui até o arco sob o mezanino do segundo andar me surpreendendo mais uma vez naquele dia.

O cômodo era espaçoso e pintado no mesmo tom azulado do ambiente anterior, exceto pela parede maior, logo em frente, que era praticamente inteira coberta por um lindo vitral colorido. O enorme tapete de centro era cinzento e parecia persa, combinava bem com o piso de madeira, com as poltronas e o divã cor de creme, assim como os móveis claros - alguns deles também sustentando vasos diferentes entre si com flores coloridas de várias espécies - e no canto direito do cômodo, quase em frente ao arco onde estávamos, se destacando como principal peça na decoração, um lindo piano roxo lustroso.

Era daquela peça tão peculiar, e que ao mesmo tempo combinava perfeitamente com a aura da casa, que vinha a melodia triste, a qual eu não era capaz de reconhecer, e eram os dedos pálidos e compridos de Michael que deslizavam rapidamente nas teclas de marfim.

O moreno parecia preso em seu próprio mundo de sons delicados, criando aquela imagem que seria suave, digna de um quadro em tons pastéis, se ele não estivesse dedilhando furiosamente o piano. A postura absolutamente rígida, tão diferente de sua suavidade natural, a coluna ereta demais, as mangas da blusa cinza arregaçadas até os cotovelos deixando a pele branquíssima desnuda. As pernas se cruzavam na altura dos tornozelos, apenas a ponta de um dos pés descalços tocando o chão suavemente sob o banquinho, também roxo, em que se sentava. Os cabelos negros brilhantes cobrindo parte do rosto enquanto seu corpo dava os clássicos trancos comuns aos pianistas.

- Eu não sabia que ele tocava… - Sussurrei surpreso.

- Desde os cinco anos de idade - Christopher sussurrou de volta, o orgulho evidente na voz.

- É tão triste… - Não pude segurar a observação que pulara da minha boca em tom aturdido.

- São as favoritas dele quando o assunto é piano… - O sr. Pierce deu de ombros e eu continuei observando seu filho, pensando se aquela música havia sido uma escolha aleatória entre as preferidas dele ou se possuía um significado específico. Se Mike estaria realmente tão alterado quanto parecia enquanto tocava… Porque, se estivesse, certamente a culpa seria minha, e eu não saberia lidar com isso - Eu preciso tomar um banho… - A voz de Christopher chamou minha atenção - Se importa em esperar aqui? - Isso me fez olhá-lo de cenho franzido, mas nem ao menos tive tempo de responder já que ele apenas girou nos calcanhares e saiu, me deixando ali sozinho, sem saber o que fazer.

Então respirei fundo no aroma misto de flores, me encostando no batente da porta e me deixando levar pelo som do piano que corria dos graves aos agudos em uma cadência rápida e agradável, como água fria caindo em uma cachoeira, seguindo seu ritmo corredeira abaixo.

Era suave e triste. A coisa mais triste que eu já ouvira na vida. Mas também possuía uma beleza profunda, quase palpável, que aparentava vir diretamente da dor.

Fechei meus olhos, me deixando levar pela melancolia, pensando em tudo o que eu vivera no último ano em Berlim e no que me levara até lá; lembrando da minha vida em Austin, de todos os momentos de parceria partilhados com John, todos os beijos trocados com Thalia, toda dor que eles me causaram… E senti meu coração pular uma batida quando cheguei à parte das minhas memórias que vivia trancada a sete chaves. Soterrada no fundo da minha mente, tão sufocada que eu quase podia fingir nunca ter existido.

Mas que estava lá, afinal. O modo como os olhos dela sempre brilhavam desafiadores, os cabelos dourados que balançavam na brisa refletindo a luz do sol, a risada infantil e escandalosa que ainda reverberava nos meus ouvidos quase dez anos depois…

A dor parecia recente, espremendo meu coração como um punho de ferro.

- O que você está fazendo aqui?    Abri meus olhos em um pulo sentido-os arder.

O peito disparando pelo susto e me assustando ainda mais ao dar de cara com Mike bem diante de mim, seus dez centímetros à mais de altura fazendo-o parecer um gigante como nunca antes. Os braços cruzados sobre o peito em uma pose defensiva que poderia enganar os desavisados incapazes de enxergar a irritação fria em seus olhos.

- E-eu… - Droga! Por que eu sempre tinha que gaguejar? Respirei fundo, engolindo o nó que as lembranças haviam criado na minha garganta - Eu dei uma carona ao seu pai porque ele estava sem carro…

Michael se calou por alguns instantes e pareceu se desarmar um pouco quando voltou a falar:

- Ele está muito chateado comigo?

- Acho que não - Dei de ombros - Só não ficou aqui para vê-lo tocar porque, segundo ele, precisava de um banho…

O moreno acenou com a cabeça em sinal de compreensão, sua postura parecendo minimamente mais relaxada quando se voltou para dentro me indicando uma das poltronas com a cabeça.

- Obrigado por trazê-lo - Voltou a falar assim que me sentei - Eu não pensei nisso quando saí de lá…

- Não fiz mais que minha obrigação… - Encolhi os ombros, sem graça, observando enquanto Mike cobria as teclas de marfim com uma flanelinha comprida antes de descer a tampa do piano - Você é ótimo, aliás…

O moreno se voltou para mim, uma sobrancelha negra erguida, as íris âmbar me avaliando minuciosamente, se demorando nos meus ombros cobertos pela jaqueta e fazendo minhas bochechas esquentarem com isso.

- Obrigado! - Deu um sorrisinho mínimo, os dedos magros acariciando a madeira púrpura como quem cuida de um animalzinho - É uma ótima válvula de escape…

- Eu costumo socar as coisas quando estou com raiva, mais especificamente meu saco de box…

- Eu teria socado você se fosse dado à violência… - Respondeu simplesmente e eu me remexi desconfortável diante de sua honestidade, mas não poderia repreendê-lo.

Eu teria me socado se fosse ele.

- Quanto à isso… - Tentei entrar no assunto, determinado a dar alguma explicação e pedir desculpas, mas como sempre acontecia, o que eu podia jurar que não passava de um carma de vidas anteriores, eu fui interrompido mais uma vez.

- Papai falou que você estava tocando… - A voz da menina soava frustrada - Não acredito que perdi o show do meu pianista favorito!

- Não se preocupe com isso, Val… - O sorriso perolado de Mike se abriu lindamente na direção do vão de entrada - Escolha uma música, qualquer uma, e terá um show particular!

- Show particular? - Ouvi as palminhas animadas entrando na sala às minhas costas, antes de silenciarem subitamente - Ah! Temos visita…?

- Sim, aparentemente nós temos… Val, esse é o Steven… - Mike apresentou enquanto eu me virava, mas nem ao menos pude me dar ao trabalho de associar um rosto à famosa “Valquíria”, ou ouvir o que quer que ele tenha dito em seguida, já que quando mirei a menina diante de mim meu mundo parou.

Ela estava lá. Impossivelmente em carne e osso. Como se minhas lembranças mais dolorosas tivessem ganhado vida no momento em que as trouxe à superfície.

Os cabelos dourados descendo em ondas perfeitas até quase os cotovelos, os olhos grandes e redondos no tom exato de azul celeste que eu me lembrava, o mesmo que eu via todos os dias ao mirar o espelho.

Minha cabeça girou e a sala saiu de foco quando dei um passo cambaleante para trás.

- Você está bem? - Senti as mãos de Mike me amparando pelos ombros mas toda a minha atenção ainda estava fixa na menina, que agora se aproximava de mim com ar preocupado…

Eu tinha plena consciência de que as roupas dela não se encaixavam nas minhas memórias; não aquela saia branca de tule, curta o suficiente para deixar as pernas completamente nuas até o limite das pantufas de unicórnios, não aquele cinto prateado delicado que se posicionava acima do umbigo e, certamente, não aquela blusa “rosa bebê” brilhante que envolvia com firmeza os seios e cobria totalmente os braços, deixando a pele à mostra apenas no decote e em uma pequena faixa da barriga lisa.

Não havia ali nada da rebeldia das camisetas de bandas de rock que eu me lembrava, ou das munhequeiras de spike que me arranharam tantas vezes ou do ar superior de desafio capaz de levar qualquer um à loucura e, ainda assim, a doçura nos olhos era a mesma que a garota nas minhas lembranças só possuía quando se voltava para mim.

Levei meus dedos trêmulos ao rosto da menina à minha frente e pude vê-la retesando o corpo, além de sentir o aperto firme nos meus ombros se intensificar, mas nada disso importava agora:

- Arianna? - Chamei em um fio de voz, engolindo um novo nó sufocante na garganta.

- Quem é Arianna? - A voz suave da menina flutuou no ar, quebrando o momento como uma película frágil de vidro e me trazendo de volta à realidade dolorosa.

----------------------------------------

Michael Pierce

Subi na moto sentindo meu sangue ferver nas veias e apenas acelerei, deixando Engel e sua estupidez para trás.

Eu não era capaz de entender o porque daquilo ter me afetado tanto - jogando futebol a tantos anos, eu já era acostumado a ouvir absurdos mil vezes piores - mas, verdade seja dita, as palavras e ações de Engel haviam me acertado como um belo tapa na cara, ferindo como nenhum xingamento pesado de qualquer outra pessoa jamais conseguira. Exibindo diante dos meus olhos a realidade dos fatos - principalmente o fato de que Engel não era melhor que ninguém, que aquele momento dele com Bruce, o qual me fez olha-lo com outros olhos, muito provavelmente não passava de defesa própria.

E agora eu seguia para casa com o maxilar cerrado, o corpo trêmulo, correndo à mais de 150 km/h, tomado por uma onda de decepção desmedida que eu não sabia de onde vinha, já que eu mal conhecia meu agressor.

Se mamãe me visse nessa situação, costurando nos cruzamentos de forma desatenta, com a cabeça cheia ao ponto de sentir meus olhos turvarem, certamente me colocaria de castigo pela primeira vez na vida, mas ela não veria, então apenas fechei o visor escuro do capacete, inclinei meu corpo sobre a moto e acelerei mais, atingindo os 180 km/h nas ruas vazias daquele bairro quase deserto.

O vento gelado se chocava contra meu peito precariamente coberto e invadia os buracos nos joelhos do meu jeans, beliscando a pele das minhas coxas à medida que eu avançava vertiginosamente. O frio que enregelava meus músculos de forma agradável também me fazia lembrar do passado… Das noites de aurora boreal no Alasca ou na Islândia, o céu tomado dos mais lindos tons de verde, que corriam e se misturavam naquela dança suave, enquanto Brittany e eu nos deitavamos em nosso saco de dormir compartilhado - tão cheios de roupas e cobertas que mal movíamos o pescoço - para ter aulas sobre “gases” com mamãe, discutir teorias fantásticas que explicassem o fenômeno ou, simplesmente, apreciar o silêncio de mãos dadas.

Eu sentia falta daquela época todos os dias, dos sotaques novos, das culturas diversas ao redor do mundo, das estradas infindáveis… Mas, quando as coisas ficavam realmente confusas na minha cabeça, era do silêncio e do frio que eu sentia mais falta.

E da mão dela acima de tudo.

A mão pequena de Brittany que me amparou a vida inteira, em todos os meus melhores e piores momentos.    E era atrás dessa mesma mão que eu iria agora.

--------

Estacionei Freya na garagem subterrânea ao lado da caminhonete levemente descascada de Joey e entrei em casa pela porta dos fundos, subindo as escadas até me ver na cozinha deserta, à qual eu deixei para trás rapidamente, atravessando os cômodos sem ao menos olhar para o lado, afim de chegar nas escadas o quanto antes e, ao me ver sobre os degraus negros, subi praticamente correndo, virando à direita no mezanino, ignorando a ampla sala de TV adiante e parando em frente à porta branca, larga, onde um grande “B” azul turquesa se pendurava sustentando uma coroa dourada.

- Minnie? - Entrei sem bater, já que a porta estava apenas encostada - Minnie? - Chamei novamente do centro do quarto, observando o edredom branco de flores amarelas que cobria a cama, o dossel azul recolhido para o canto e a penteadeira retrô cor-de-rosa, repleta de maquiagens, ao lado do espelho de corpo inteiro.

- Aqui! - A voz chamou minha atenção e eu apenas segui para o closet, que era enorme graças ao fato de que aquela era a suíte máster, o quarto que devia pertencer aos nossos pais - Algum problema? - Perguntou sem nem ao menos me olhar, enquanto se inclinava sobre a ilha central feita apenas para guardar lingeries e acessórios, mas minha cabeça pesada resolveu ignorar seu tom seco e prosseguir mesmo assim.

- Não exatamente um problema… - Comecei olhando ao redor, para as prateleiras de madeira branca repletas de casacos, vestidos, bolsas e sapatos - Eu só queria conversar com você… - Eu não sabia por que estava tão reticente ao falar com minha própria irmã, mas a aura do quarto vibrava hostilidade e quando finalmente percebi isso meu corpo se retesou.

- Fala logo, Michael, o que você quer? - Brittany se voltou para mim novamente, as mãos na cintura em uma pose impaciente.

- Eu… Eu só precisava… - Comecei incerto mas fui interrompido imediatamente por uma risada sem humor.

- Mas é claro que você “precisava”! - Seu tom de escárnio era cortante - Você só me procura quando precisa de algo…

- O que? - Perguntei completamente confuso - Do que você está falando?

- Por favor, Michael, não se faça de idiota - Rebateu com os olhos castanhos em fendas - Não me faça de idiota! - Prosseguiu se aproximando de mim lentamente. Eu nunca ouvira Brittany soar tão amarga e aquele tom, pingando de deboche, simplesmente me deixou sem reação - O que foi? O seu príncipe de ébano está na porta aqui ao lado… Aposto que ele ficaria feliz em te ajudar no que quer que seja, não é isso que ele sempre faz?

A frase de Brittany chamou minha atenção, mas eu simplesmente não podia acreditar no que estava ouvindo.

- Então é isso? - A descrença era evidente na minha voz - Está fazendo todo esse show por ciúmes do Joey?

- Ciúmes? Não seja ridículo, Michael - A atitude superior dela, somado às íris que desviaram para uma bolsa Chanel aleatória, foi a prova final de que eu havia acertado - Por que diabos eu sentiria ciúmes dele?

Britt me deu as costas, se apoiando na ilha espelhada novamente, parecendo muito interessada em um par de óculos escuros qualquer mas, à essa altura, meu sangue já fervia mais uma vez.

Obviamente, ela não fazia a menor idéia do que estava acontecendo comigo e pensava que, como sempre, eu iria relevar suas atitudes de garota mimadas…

“Hoje não, irmãzinha!”

Aquele era um péssimo dia para qualquer um atravessar o meu caminho e Brittany estava prestes à descobrir isso pessoalmente.

- É exatamente o que eu adoraria saber… - Pus de lado todos os meus sentimentos confusos e assumi meu melhor tom superior de descaso - Me explique, por favor querida, “por que diabos” você teria esse tipo de sentimento de posse à respeito de alguém que nunca foi seu?

Eu sabia que havia pego pesado, a expressão traída no rosto de minha irmã apenas confirmava isso, mas eu realmente não me importava. Não naquele momento, pelo menos. Não quando eu havia explodido de forma tão furiosa que simplesmente perdera a razão.

- Fala como se ele pertencesse à você…

Brittany começou, tentando devolver na mesma moeda, mas foi calada por um sorriso torto que rasgou meu rosto.

- Você sabe exatamente por que ele não é meu, não sabe, irmãzinha? Afinal… Como é mesmo que vocês me chamam? - Meu tom baixo era pensativo de propósito e exalava deboche - Claro! O “espírito livre”... É assim, não é?

Eu podia ver o peito dela subindo e descendo, as narinas se inflando como sempre acontecia quando se irritava de verdade.

- Será mesmo que você é um espírito livre, irmãozinho? - Brittany desdenhou em voz baixa, seu olhar queimado em minha pele - Ou será que tem tanto medo de deixar alguém ver o vazio além do mistério, além de toda sua luminosa armadura de gelo, que acaba achando mais fácil ficar sozinho…?

Senti meu corpo vacilar imediatamente e cerrei o maxilar de forma ruidosa.

Eu não sabia se era apenas por ciúmes que Brittany estava me atacando assim mas também não queria saber. A única coisa que me importava era que aquelas palavras haviam doído como uma maldita apunhalada nas costas.

Ela, mais do que ninguém, sabia tudo o que eu havia passado, sabia exatamente por que eu me comportava assim, mantendo distância da maioria das pessoas…

- Fique longe de mim! - Grunhi entre os dentes antes de girar nos calcanhares e seguir para fora, batendo a porta do quarto com tanta força que pude ouvir o barulho do grande “B” azul se espatifando no chão com coroa e tudo.

Marchei o caminho de volta me sentindo entorpecido, pisando duro até parar sobre o mezanino novamente, meu corpo inteiro tremendo enquanto eu me agarrava com força ao guarda corpo tentando me acalmar.

Minha cabeça doía, meu rosto queimava, a tensão se espalhava por meus músculos como fogo sobre pólvora. Massageei minhas têmporas com as pontas dos dedos em movimentos circulares lentos, deixando meus olhos viajarem pela sala de música logo abaixo, observando, completamente entorpecido, o modo como a luz do sol incidia colorida e fragmentada sobre os móveis claros, até o reflexo do piano roxo lustrosos fisgar minha atenção, despertando um sorriso cansado nos meus lábios.

Desci as escadas já me sentindo um pouco mais calmo, me sentei no banquinho próprio do instrumento, meus dedos correndo a madeira púrpura suavemente, me lembrando com carinho do dia em que eu o havia ganho, no meu aniversário de 11 anos - recém chegado à Terra Firme.

Mais uma vez eu estava alí... Diante das teclas de marfim que eu fazia questão de cuidar pessoalmente, pronto para por meus sentimento para fora em forma de música, como acontecia desde que eu era capaz de me lembrar.    Arregacei minhas mangas até os cotovelos e respirei fundo, fechando os olhos por um momento.

Inspirei novamente, inflando o peito, permitindo que todas as sensações e acontecimentos dos últimos dias tomassem conta de mim em uma onda de sentimentos que quase me sufocou.

E era como se eu pudesse rever todos aqueles momentos… Engel no vestiário indo contra Bruce; o olhar traído dele diante da porta; minha discussão com o brutamontes de dentes tortos; Engel aos beijos na pista de dança; seus braços firmes em volta da minha cintura em nosso trajeto de moto; a pressão de Joey para que eu fosse atrás de Engel; as mãos dele, quentes e levemente calejadas, envolvendo meus dedos frios no alto da roda gigante; seus olhos azuis pregados nos meus, me salvando de uma crise de pânico naquele brinquedo estúpido; e Brittany, me atacando gratuitamente, sua atitude agressiva capaz de me deixar ainda mais confuso…

Engoli com dificuldade o nó que se formou na minha garganta, deixando que todo o oxigênio se esvaísse lentamente, minhas mãos se posicionando sobre as teclas inconscientemente, propagando ao meu redor as notas suaves e melancólicas de uma música que eu havia composto pouco tempo atrás, logo após nossa última viagem ao Alasca.

Senti a melodia me preencher completamente, me levando para longe dali, criando um mundo só meu onde nada mais importava, onde nada além do marfim frio sob meus dedos - e do som que ele criava - possuia massa ou peso suficiente para ser notado. Toquei com os olhos fechados por um tempo incalculável, sentindo os tremores se dissiparem e meu maxilar relaxar sob o balançar involuntário do meu corpo… Mas foi quando finalmente abri os olhos que algo na visão periférica me chamou a atenção e eu tive uma enorme surpresa…

Engel estava alí.

Como uma aparição ou uma miragem, encostado no arco de entrada da sala de música, os braços musculosos cruzados sobre o peitoral alto, os ombros ainda apertados dentro da minha jaqueta, a cabeça apoiada na parede e o rosto, mesmo de olhos fechados, transpassando uma tristeza imensa.

Ele parecia ter embarcado profundamente na melodia, assim como eu, mas a surpresa de vê-lo ali foi tão grande que me vi atropelando as notas, saindo totalmente de compasso até finalmente abandonar as teclas com um suspiro.

Engel, entretanto, não pareceu notar e apenas continuou lá…    Banhado pela luz multicolorida do vitral, lindo e atemporal como a estátua de um anjo, exceto pelos cabelos dourados que apontavam para todas as direções com rebeldia.

Levantei em silêncio, me aproximando lentamente, o corpo ainda tenso, observando o modo como ele parecia solitário alí, ilhado em seus pensamentos, e, à despeito de minha própria irritação, resolvi que talvez fosse melhor trazê-lo de volta:

- O que você está fazendo aqui? - Perguntei em voz baixa, a surpresa ainda me guiando e, em resposta, recebi um pulo assustado.

Os olhos azuis me miraram levemente avermelhados. Eu podia ver sua respiração acelerando o movimento do peito e pude sentir meus próprios braços se cruzando involuntariamente, como se meu subconsciente procurasse manter alguma barreira de proteção entre nós.

- E-eu… - As frases gaguejadas de Engel já eram tão constantes que nem ao menos me surpreendiam, mas então ele respirou fundo, parecendo engolir em seco antes de prosseguir - Eu dei uma carona ao seu pai porque ele estava sem carro…

Me mantive em silêncio por alguns instantes remoendo aquela resposta.

Ótimo, Michael! Ele só está aqui por sua culpa…”, eu queria me xingar mas isso não mudaria nada, então apenas foquei em algo mais importante para o momento:

- Ele está muito chateado comigo? - Perguntei, me referindo à Christopher.

- Acho que não - Engel deu de ombros - Só não ficou aqui para vê-lo tocar porque, segundo ele, precisava de um banho…

Afirmei com a cabeça em sinal de compreensão.

Menos mal…”, pensei com algum alívio, me deixando relaxar minimamente enquanto caminhava novamente para o piano, indicando uma das poltronas ao rapaz loiro que me observava atentamente.

- Obrigado por trazê-lo - Voltei a falar quando o vi acomodado - Eu não pensei nisso quando saí de lá…

- Não fiz mais que minha obrigação… -  Sua voz soou tímida às minhas costas enquanto eu cobria novamente as teclas do instrumento com a flanelinha comprida antes de descer a tampa por cima - Você é ótimo, aliás…

Me voltei para ele imediatamente, minha sobrancelha se erguendo automaticamente em descrença enquanto eu o avaliava à procura de algum indício de deboche, sua atitude preconceituosa de mais cedo ainda regendo minhas ações, mas foi com uma sensação estúpida de alívio que me deparei com nada além de seu característico olhar dócil e das bochechas timidamente coradas.

- Obrigado! - Baixei meus olhos para o piano carinhosamente, meus dedos caminhando na madeira púrpura - É uma ótima válvula de escape… - Dei um sorriso mínimo.

- Eu costumo socar as coisas quando estou com raiva, mais especificamente meu saco de box… - O tom levemente divertido de Engel chamou minha atenção e não perdi a chance de alfinetar.

- Eu teria socado você se fosse dado à violência… - Respondi simplesmente, segurando uma risada ao vê-lo se remexer desconfortável na poltrona.

- Quanto à isso… - Engel começou, visivelmente sem jeito, mas foi interrompido quase que imediatamente.

- Papai falou que você estava tocando… - Valquíria soava contrariada - Não acredito que perdi o show do meu pianista favorito!

Me voltei para ela imediatamente:

- Não se preocupe com isso, Val… - Sorri para minha irmã que fazia um bico enorme - Escolha uma música, qualquer uma, e terá um show particular!

- Show particular? - Suas palminhas animadas ecoaram nas paredes quando ela entrou na sala usando as pantufas de unicórnio que me fizeram sorrir ainda mais - Ah! Temos visita…? - Val parou imediatamente encarando as costas largas do loiro de cenho franzido.

- Sim, aparentemente nós temos… - Iniciei as apresentações rapidamente - Val, esse é o Steven… Engel, essa é Valquíria, minha irmã caçula…

Engel havia se levantado imediatamente, voltando-se para a menina antes de seu corpo inteiro travar a olhos vistos.

Ele parecia repentinamente zonzo. O vermelho, sempre tão presente em suas bochechas, substituído por uma palidez assustadora; os olhos pregados em Valquíria pareciam quase em pânico, sua boca aberta em uma expressão de horror quando seu corpo cambaleou em um passo trôpego para trás.

- Você está bem? - Corri para segura-lo pelos ombros mas ele nem ao menos parecia notar minha presença enquanto Val se aproximava curiosa.

As íris azuis de Engel avaliaram minha irmã centímetro por centímetro e pela primeira vez, enquanto eu tentava entender o que estava acontecendo, me dei conta das semelhanças entre os dois. O formato redondo, inteligente e alerta, dos olhos de ambos, o mesmo tom raro de azul elétrico nas íris, as maçãs do rosto altas, o nariz arrebitado…

Mas apesar disso, e de também possuírem o mesmo tom de dourado nos cabelos e nos cílios volumosos, suas semelhanças paravam por ali. Enquanto Valquíria era a própria imagem da delicadeza, com seu corpo magro pequeno e a boca miúda em formato de coração, Engel era, apesar de não muito alto, grande e imponente. A altivez sempre contrastando com a timidez encantadora e o adorável biquinho formado por seu lábio superior grosso “demais”.

As semelhança eram grandes sem dúvida, entretanto as diferenças eram tão mais chamativas que eu jamais teria reparado nada fora do comum, não fosse pela reação estranhamente exagerada de Engel ao se deparar com minha irmã, e foi justamente enquanto Valquíria o encarava com sua preocupação natural que ele tomou mais uma atitude estranha.

As mãos do loiro tremiam visivelmente quando subiram diante dos meus olhos. Seus dedos travando todo o corpo de Val ao toca-la no rosto suavemente, enquanto eu apenas reforçava o aperto em seus ombros por saber o quanto aquilo a deixaria desconfortável. E eu estava prestes a me manifestar à respeito de toda aquela situação bizarra quando a voz do próprio Engel soou ao meu lado, tão baixa e quebradiça que foi quase impossível de se ouvir:

- Arianna? - O queixo dele tremeu.    Val apenas franziu ainda mais as sobrancelhas claras em total estranhamento:

- Quem é Arianna? - Ela perguntou suavemente, mas foi como se de repente sua pele o tivesse queimado.

Engel recolheu a mão em um tranco, se afastando de nós dois com um olhar assustado e confuso. Vagando os olhos avermelhados ao redor, parecendo perdido, as bochechas corando furiosamente, assim como o pescoço e as orelhas.

- Está tudo bem? - Perguntei finalmente, toda a minha irritação anterior completamente  esquecida diante da preocupação.

- Eu… - Engel encarava as próprias mãos trêmulas - Será que eu posso usar o banheiro?

- Claro! - Respondi imediatamente, já indicando o caminho - Precisa de ajuda com alguma coisa? - Perguntei assim que ele afirmou ter entendido as instruções.-

 Não! Mas obrigado… - Ele falou isso ainda de cabeça baixa pouco antes de sumir pela porta.    Valquíria me encarava atônita:     - O que foi que acabou de acontecer? - Arfou enquanto se deixava cair no divã.     - Juro que também estou tentando entender…     - Você notou? - Os olhos dela estavam arregalados - Ele parecia estar vendo um fantasma…

“Quem diabos é Arianna?”, era tudo o que eu queria saber. “E por que a suposta semelhança de Valquíria com essa tal Arianna o abalou tanto?”

- Ele é realmente lindo… - Val chamou minha atenção com um ar de riso na voz.

- Sim. Ele é! - Admiti o inegável.

- Seria um belo exemplar de cunhado… - Comentou como quem não quer nada, e eu sabia que ela só estava tentando quebrar a tensão quando sorriu abertamente ao ver que uma risada mínima havia me escapado.

Arremessei uma almofada em sua direção, uma resposta implicante na ponta da língua, quando fui interrompido por pela voz alegre de Christopher.

- Boa noite, crianças! - Meu pai exclamou sob o arco da porta com um cajón embaixo do braço; ao seu lado, Joey carregava duas cases de violão - Quem topa um piquenique musical para o jantar?  


Notas Finais


Galera, deu algum bug louco no Spitit...
Se acharem algum erro no texto, me avisem, por favor!!


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...