Cameron abriu os olhos devagar, esforçando-se para focar no teto de madeira acima dele, mas suas pálpebras insistiam em permanecer fechadas e o que era para ser uma tarefa fácil, lhe resultava quase impossível.
- Está vivo - ouviu, uma voz grossa vinda de alguém ao seu lado direito.
Cameron queria virar a cabeça e ver de quem se tratava. Mais que tudo, queria perguntar do que o homem estava falando. Mas sua cabeça doía, latejava, e mal conseguia manter os olhos abertos. Deixou então que o foco nas tábuas de madeira e nos pregos enferrujados se esvaísse. Finalmente, permitiu que o cansaço e a dor vencessem e tudo voltou a ficar escuro.
O sono fora profundo e sem sonhos. Cameron acordou num pulo, assustado ao lembrar-se, de repente, do seu último momento desperto. Sentou-se e olhou em volta: as caixas e barris estavam espalhadas pelo lugar e as redes dos marinheiros se amontoavam num dos cantos. Estava no porão do Tesouros Salgados.
Identificado o lugar, Cameron ignorou a confusão e tratou de levantar-se rapidamente. Assim que se colocou de pé, no entanto, sentiu uma forte dor na cintura e se viu obrigado a apoiar-se na parede. Olhou para baixo, receoso do que veria. Uma faixa de pano grosso e mal cortado envolvia com força sua cintura, tapando o ferimento que provavelmente estaria lá. Mas não era esse seu único problema. Além da cintura, percebeu também que seu ombro direito estava enfaixado fortemente.
O loiro já não entendia mais nada. Sua cabeça latejava, seu corpo doía e tudo girava. Começava a ponderar a hipótese do barco estar preso num redemoinho, girando e girando e girando sem parar. Para piorar tudo isso, Cameron não conseguia se lembrar exatamente do que tinha acontecido e do porquê de seus ferimentos.
A vontade de entender o que se passara foi o que guiou o loiro a dar o primeiro passo. Assim que o fez, uma dor lancinante se espalhou por seu corpo, dando-lhe a impressão de que correra quilômetros a fio. Fechou os olhos com força, esforçando-se para ignorar a dor, e deu outro passo. Foi dessa forma lenta, cambaleante e dolorida que Cameron atravessou o porão, subiu as escadas e chegou ao convés.
Só levantou os olhos quando chegou ao último degrau. A cena diante dele não era nada bonita. O convés estava cheio de poças de água, provavelmente resultados da chuva. Em todo o piso se viam corpos feridos, perfurados, os olhos abertos e sem vida. O sangue se misturava à água, tornando as poças cor-de-carmim. Em meio a isso tudo, algumas pessoas tentavam limpar o lado mais afastado do convés e empilhar os corpos num canto.
Aquilo foi suficiente para que uma série de imagens voltasse à sua cabeça: a invasão dos piratas, a luta, os ferimentos. Cameron lembrava agora de quase tudo, desde a euforia que sentira enquanto lutava sem sequer pensar até a sensação das lâminas cortando sua pele e da chuva fazendo o cabelo grudar em sua testa. Agora a sensação de que sua cabeça explodiria e a dor no corpo faziam mais sentido.
Respirou fundo e começou a caminhar em direção ao outro lado do convés, onde os tripulantes trabalhavam com afinco para apagar as marcas da batalha.
- O que vão fazer com os corpos? - a pergunta fora dirigida a ninguém em particular e feita assim que se aproximou o suficiente das pessoas. Cameron ignorava a dor e a fraqueza, esforçava-se em manter o tom minimamente firme, o suficiente para que a voz não tremesse.
Um garoto loiro de cabelo enrolado olhou para Cameron e largou o rodo que usava encostado na parede no exato momento em que o reconheceu.
- Capitão Slave mandou que atirássemos ao mar.
Aquela declaração surpreendeu Cameron. Sabia como o capitão gostava de seus tripulantes, amava-os como a sua família.
- Pensei que ele fosse preferir esperar chegar em terra firme para que tivessem um enterro decente.
O garoto suspirou pesadamente, Cameron conseguia notar a melancolia e a tristeza em seu olhar. Provavelmente perdera algum amigo, mas já chorara o suficiente para conseguir manter-se firme.
- Ele prefere... - começou, desviando o olhar de Cameron logo em seguida - Mas não quer passar o resto da viagem olhando para eles. E os corpos começariam a feder. Acho que jogar no mar é a melhor opção.
Embora o loiro parecesse concordar com a posição do Capitão, Cameron podia ver que lhe doía fazer isso. De fato, todos ali mereciam um enterro melhor.
- Certo - limitou-se a dizer - Posso ajudar?
O garoto apontou para a pilha de corpos nas quais dois outros homens já trabalhavam. Cameron acenou devagar com a cabeça, num gesto silencioso de pêsames, e dirigiu-se ao local indicado.
Antes que conseguisse pegar o primeiro corpo, no entanto, a porta do quarto de Slave atrás dele se abriu e Cameron pôde ver o capitão, acompanhado de Groove, saindo do aposento assim que ouviu o rangido característico.
- Cameron – o capitão se dirigiu até ele, uma expressão de alívio tomando sua face – Bem que Groove me disse que você ficaria bem.
- O que está fazendo?
Cameron olhou para Groove assim que ele fez a pergunta. O tempo que passaram no navio era tão visível no velho quanto nele mesmo: seu cabelo grisalho crescera e se juntava com a barba numa mistura desgrenhada de fios. O estado de Cameron não era muito diferente; os dois estavam cansados da viagem e era como se, em um pacto silencioso, os dois tivessem decidido ignorar a própria aparência, em um protesto que acabaria quando chegassem em terra firme.
- Estou ajudando – respondeu em tom casual.
- Você precisa descansar.
- Estou bem.
- Você está querendo estourar seu ombro?! E o ferimento na cintura?! Você acabou de acordar, Cameron. Volte para o porão e descanse.
O tom autoritário de Groove convencera Cameron instantaneamente. A verdade é que o garoto ainda se sentia um pouco tonto e a dor não lhe ajudava em nada. Sem abrir a boca, dirigiu-se ao porão, sendo seguido de perto por Groove. Sentou-se, cansado de tão só ter andado um pouco e passado algum tempo de pé. Estava realmente debilitado.
- Vão trazer uma sopa para você, pedi para prepararem.
Cameron olhou para o velho a sua frente e não pôde evitar pensar em tudo o que vinha acontecendo. Aquele homem, cheio de mistérios e cuja mente parecia ser terrivelmente obscura, demonstrava importar-se com Cameron. Ele aceitara segui-lo até Uzberg, o ajudara a fugir da senhora Hansy, o salvara quando a luta no navio começou. E, agora, cuidava dele. De modo grosso e, aparentemente, desinteressado. Mas Cameron sabia que esse era só seu jeito.
- Groove – arriscou perguntar – depois que a luta começou, o que aconteceu?
O velho suspirou:
- Mais tarde falamos nisso.
Cameron queria desesperadamente saber o que acontecera, ainda mais depois da resposta do homem. Repassou as imagens em sua cabeça: a última coisa de que se lembrava era matar uma garota do navio inimigo. A derrubara no chão e enfiara a faca nela até perder a conta, mesmo depois dela já ter morrido. Ainda conseguia sentir o sangue da mulher respingando em seu rosto.
Conforme as imagens voltavam à sua cabeça, Cameron começou a sentir um aperto em seu peito. A atitude que tivera o horrorizava.
- Eu... Eu não acredito – murmurou, contendo as lágrimas – Como eu perdi o controle daquele jeito?! Eu não senti nada...
- Foi necessário – o velho respondeu, sem sequer olhar para o loiro.
Foi o que você disse quando matou a Sra. Hansy.
Não era esse o tipo de resposta que queria ouvir.
Groove finalmente olhou para Cameron, as lágrimas se acumulavam nos cantos dos olhos do loiro. Com um suspiro, o homem disse:
- Perdemos a noção do que fazemos quando alguém que amamos está em perigo.
Cameron arregalou os olhos:
- Alguém que amamos?
De repente, lembrou-se de tudo.
- Groove, onde está a Canela?! – silêncio – Onde está a Canela?! – Gritou.
Um pânico começou a tomar conta de Cameron diante da mudez do velho. E quando ele abaixou a cabeça, Cameron não pôde mais conter as lágrimas. Sabia que havia falhado.
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