Parte I
“The soul is an irrational, indivisible equation that perfectly expresses one thing: you.
The soul would be no good to the devil if it could be destroyed.
And it is not lost when placed in Satan's care, as is so often said.
He always knows exactly how to put his finger on it.”
― Joe Hill, Horns.
Prólogo
“We are each our own devil and we make this world our hell.”
– Oscar Wilde.
Sangue. O líquido viscoso fazia uma trilha sutil, quase discreta, pela rua feita pedra, antiga, com suas construções que beiravam o fim da Era Vitoriana. Uma linha sinuosa… Pincelada, como se um artista renomado houvesse cuidadosamente delineado o caminho com respingos de uma tinta avermelhada, um tom de rubi escuro, brilhante sob a luz do luar. Uma obra de arte criada no reflexo do bem mais precioso da raça humana: a vida.
O desejo de tanto viver, de tanto permanecer em um mundo pintado em tons de cinza, em tons da morte, desencadeava aquele mesmo avermelhar. Olhar para o trajeto que o filete de sangue fazia pela rua adquiria a sensação de ouvir um sutil pulsar… Um coração que batia, onipresente, fraquejando, segundo após segundo, ao que o vermelho tornava-se mais abundante, criando pequenas poças pelo chão.
E, quanto mais se aproximasse, o cheiro ligeiramente ferroso e peculiar adentrando suas narinas, era possível perceber que não mais parecia uma obra de arte bem cuidada. Ou talvez fosse… Ou talvez as manchas no chão de pedra escura se tornassem fruto de um artista revoltado, de um derramar de sangue que era inconsequente. De um derramar da vida.
Um artista doentio, apreciador da vida até o seu limite… Até o esvaziar de seu recipiente, de um último suspiro… De cada gota que carregava em suas mãos ensopadas de sangue desconhecido. Um artista que tinha prazer no sórdido, um artista sem nome… Ou melhor, com nome, sobrenome, uma identidade que variava de cultura para cultura. Um artista amaldiçoado… Um artista que havia nascido nos primórdios da humanidade e entendia, como ninguém, o valor do líquido que manchava suas mãos.
A morte era um dos seus nomes, mas não era o seu único ideal. A dor, o desespero, o caos… A diversão em fazer dos humanos o seu playground. E era sempre com um sorriso nos lábios que o fazia, fosse sob a máscara de uma criança adorável ou de um velho que mal podia se movimentar direito. Sempre conseguia… Sempre se alimentava do último suspiro de esperança da raça humana.
- Você não vai conseguir levar isso para frente… Eu não vou deixar! – Grunhiu o rapaz, diante do beco escuro, as mãos eram quase como uma cachoeira de sangue, sujando-lhe a jeans, os tênis, enquanto as levava para o rosto, pouco se importando com a confusão que estava se tornando. Queria afastá-lo, tirá-lo de si, mas a onda que se alastrava em seu corpo era mais forte, uma presença que tomava seu corpo sem pedir permissão. Uma presença que sabia muito bem quando entrar em cena.
O corpo diante de si estava em frangalhos. Retalhos do que havia sido uma jovem, há minutos atrás, que não possuía nome, que não havia razão para estar ali ou ser dilacerada como um porco levado ao abate. Mas não havia satisfação completa em ver aquela cena visceral, não quando o rapaz era forçado a ficar de joelhos, lágrimas viscosas descendo transparentes por seu rosto manchado de sangue, irreconhecível. Aquela força queria mais… Queria tudo o que poderia consumir naquela noite. E sua única opção era ceder, ainda que à contragosto.
Uma luta silenciosa era travada, enquanto tentava gritar, arranhando o próprio rosto, as mãos logo enterradas em seus cabelos, ao que seu corpo era bruscamente arrastado para a escuridão. Em ambos os sentidos da expressão, claro. Seus joelhos deveriam estar em carne viva, ao que seu próprio corpo o traía, o empurrando de volta para o beco deserto e inundado de sombras, enquanto as mãos escapavam da face e tateavam o chão enlameado de sangue e sujeira, guiadas por alguém que já não mais era ele mesmo.
Se portava como um predador ao rastejar, emitindo ruídos, cujos não conseguia obter controle, entoando um cântico sombrio, em uma linguagem desconhecida e milenar. Uma melodia doce, mas que vinha acompanhava da sensação de desolação, impotência e que lhe devastava o peito, murmurada em uma delicadeza que não era sua, envolvendo-o, gradativamente assumindo o controle. Poderia dizer que nunca quis, que não desejava e se abominava por isso. Mas queria, havia pedido por isso até o último segundo.
Vozes, gritos e gargalhadas ecoavam em sua cabeça e o rapaz só avistava uma tela em branco, porém, o seu corpo sentia… Os dedos sujos tocavam pedaços de um corpo úmido, que ainda pulsava vida, em um último vestígio do que restava da jovem morta. E era aquele momento que o “artista” mais preferia: o gran finale.
Ao som de uma sinfonia perfeita entre sangue e entrega. Abafando os gritos que o rapaz nunca conseguiria emitir, sufocado pela piscina de sangue em que mergulhava, bebendo e saboreando da vida de uma jovem alma que podia sentir unindo-se ao seu corpo, lembrando-o que, mesmo recobrando a consciência, nunca estaria limpo. A voz em sua cabeça era mais experiente, tinha a lábia de um encantador de sonhos que lhe pareciam esplêndidos, mas que nunca poderia realizar… O vislumbrar de vida refletindo no mal.
E o jovem, com a boca cheia de sangue, um sorriso doentio estampando seu rosto insano, não correspondia à voz que gritava em sua cabeça, que pedia por clemência, que contestando cada dia amaldiçoado de sua pobre vida desde aquele fatídico dia. Que chorava, enquanto sorria e saboreava o sangue quente de uma inocente, implorando para ter sua vida de volta, para que nunca tivesse sido louco o suficiente para encontrá-lo e deixá-lo entrar.
Todo o mal da Terra. E além dela. Ele podia conquistar tudo, se quiser, num piscar de olhos. Em um sorriso bem dado ou um “pedido” bem executado. Com sangue ou sem derramar uma lágrima sequer… Sempre seria poderoso por si só.
Ele era o choro dos órfãos das guerras, do caos que o próprio havia criado ao se sentir entediado… A doença incurável, o câncer irremediável. A escuridão em dias de glória, as mãos do assassino que matava à sangue frio, a injustiça de um mal que passava despercebido sob os olhos de Deus… O mesmo Deus que havia o expulsado do Paraíso, o fazendo criar a sua própria morada, construído o seu próprio reino banhado de vítimas, como aquela jovem, e sofrimento daqueles que o deixaram para trás. Ele, que está em todas as crenças e assume a forma que bem desejar. Ele pode ser eu, você… Quem quiser, só basta pedir. E se você disser “sim”, não há como voltar atrás.
Ele é o dono do que você mais tem de precioso e irreparável: a sua alma.
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