1. Spirit Fanfics >
  2. Sold My Soul. >
  3. Gerard

História Sold My Soul. - Gerard


Escrita por: mryiero

Notas do Autor


Oizinho, pessoas!

Não demorei muito a atualizar e, como disse, vou tentar postar semanalmente. Comecei por domingo mesmo, pois daí quem quiser acompanhar, pode ler durante a semana, pelo tamanho dos capítulos. Estou tentando manter todos com menos de 8k, então anda meio difícil. Não por enrolação, mas por conteúdo da história mesmo.
Antes de mais nada, devo avisar que, como pretendo lançar como livro, ele já está com algumas alterações visíveis, como, vocês vão notar, o fato dos Way serem britânicos e tudo mais.
Não vou dar mais spoilers por aqui, mas espero que vocês gostem desse capítulo, pois ele é só o início dessa história. E, só para não esquecer, essa fic é repleta de "pegadinhas", então, nem sempre acreditem em tudo o que vocês vão ver/ler ou se antecipem em acreditar que esse capítulo vai definir por completo todo o enredo dela. É sério, dica da pessoa insana que criou isso aqui.

AH!
A história é uma distopia não tecnicamente nomeada. Eu quis deixar em aberto na escrita, pois vocês podem acreditar que isso pode estar acontecendo, ou, como eu, que isso tudo vai acontecer em um futuro um tanto distante, em que certas coisas vão acontecer e vão ser mais "comuns", nem sempre tão obscuras ou mascaradas pela Igreja. É só uma dica, na hora da leitura.

Não vou me prolongar mais, espero que gostem e disseminem essa história por aqui. Boa leitura, demoninhos. <3


P.S.: SE PREPAREM PRA MUITA COISA EM LATIM E OUTRAS LÍNGUAS. É sério. Eu não vou colocar a tradução, pois muitas são livres demais e eu prefiro ficar com o original, desde que achei várias versões diferentes de uma oração, etc. E quando eu digo que não é só latim, é porque tem realmente outras línguas antigas aqui e propositalmente eu não vou revelar ou falar qualquer coisa. ♥

Capítulo 2 - Gerard


Fanfic / Fanfiction Sold My Soul. - Gerard

 

O Início

 

Capítulo Um – Gerard

 

 

And lead us not into temptation, but deliver us from the evil one.

Matthew 6:13

 

 

 A casa era pequena, localizada no interior de Cambridge, em uma área que eu sequer sabia o nome, mas o GPS do meu velho Dodge havia sido eficiente em me deixar no local certo. E como eu sabia disso? Com a vida que eu vivo, as escolhas que eu fiz e a experiência que eu tenho… Você simplesmente começa a se acostumar a sentir o mal se aproximando, batendo à sua porta e assoprando um vento gelado desgraçado bem na sua nuca… E quando você vira para trás, não há nada lá… Só o eco de algo amargo não muito bem-vindo.

 Naquele caso, o mal não estava chegando discretamente, como uma tempestade prestes a se formar… Ele estava ao meu lado, relampejando, em uma metáfora de um céu feito de neon, causado por incessantes trovoadas. Estas que, no caso, tratavam-se de gritos… Berros, urros e ruídos animalescos que ecoavam, escapando das pequenas janelas amadeiradas entreabertas da casa, assim que estacionei bem diante da residência, me perguntando o porquê de ainda fazer aquilo e não ter concordado com a ideia de minha velha avó e terminar minha formação em um seminário de prestígio.

 Infelizmente, o caminho que eu e Michael, meu irmão, três anos mais novo do que os meus trinta anos, havíamos trilhado havia começado diferente, tortuoso, até chegarmos ao mesmo ponto: ele, perdido e descobrindo novas crenças, um submundo que os livros de sua tão amada ciência não descreviam e que Mikey ansiava em explorar… E eu, assustado demais para permitir que meu futuro se resumisse ao uso de uma estola. Não por medo da podridão do mundo que parecia transbordar pelos esgotos, mas por perceber que eu não era desejado em minha suposta crença.

 Um seminarista homossexual, o clichê de todos os clichês amontados em solo britânico. O destino quase clamando para que eu me tornasse um daqueles desgraçados que se escondiam atrás de vestes negras e estolas sagradas, enquanto fodiam pequenos garotinhos indefesos dentro de suas sacristias e faziam com que se ajoelhassem para pagar suas penitências com outra coisa enfiada em suas gargantas que não fosse o santo pai nosso decorado e proclamado com ardor. Tornar-me um amaldiçoado daqueles estava fora de cogitação, então, sem olhar para trás, eu dei adeus à Igreja.

 A cada vez que eu me questionava e duvidava da minha capacidade para lidar com situações que nem todos os seres humanos seriam capazes de enfrentar, eu me recordava brevemente da minha trajetória e todas as dúvidas se dissipavam, preenchendo-me com a coragem que me faltou em contar os reais motivos pelo qual eu desisti de ser padre para os meus pais. Com tal sentimento, me coloquei para fora do Dodge, trazendo comigo a maleta de couro escuro, sempre repousada no banco de carona, na ausência de meu irmão, e me preparei psicologicamente para o que eu iria enfrentar naquela modesta casa.

 Os gritos se intercalavam entre agudos e urrados, uma melodia não muito agradável aos ouvidos, ao que ajeitei meu paletó e gravata, tentando ser o mais apresentável possível. A ideia de vestir com formalidade era toda minha, Michael a abominava (ainda que demorasse horas se arrumando), mas eu sempre me sentia protegido naquele escudo de sobriedade, tanto quanto eu me escondia atrás de uma lapela. Sendo assim, fiz questão de caminhar, cheio de propriedade, pelo chão enlameado que antecedia a casa, até sua entrada… E o caminho estava sendo rápido e preciso, subitamente silencioso e me fazendo pensar em como havia sido uma péssima ideia não insistir para que Mikey viesse comigo, quando o silêncio ganhou um substituto. E não, não eram gritos, mas sim um estrondo.

 A porta principal da casa havia sido arremessada, voando como uma simples folha de papel, após ter sido arrancada das paredes frágeis e amadeiradas da humilde residência, sem qualquer explicação plausível em um primeiro momento. E "voando", parou a poucos metros dos meus coturnos bem lustrados, arrastando-se pela lama em um ruído que só não me causou tantos arrepios quanto um rastejar vindo da entrada da casa. A sensação era de que um réptil gigantesco estava se aproximando, arrastando suas escamas epidérmicas pelo chão, fazendo com que meus reflexos falassem mais alto e causassem meus movimentos rápidos, ao buscar a arma mais poderosa que eu escondia naquela maleta.

 Não era réptil algum, nunca seria. O arrastar veio acompanhado de um ronronar… Não como de um gatinho adorável pedindo carinho, mas algo rouco, arrepiante… Como a risada engasgada de um animal pequeno. Que ia crescendo, sua sombra expandindo-se, assim que a escuridão se espreitava diante de mim, impedindo-me de ver o interior da casa ou de entender o que estava acontecendo. Preparado, eu segurava o pequeno livro, a capa de couro escura sendo pressionada por meus dedos tensos, tentando focar-me em uma lista de coisas, a fim de utilizar o ambiente ao meu redor como ferramenta para o que viria em seguida.

 Era impossível.

 Afinal, não havia nada ao meu redor, a não ser a casa cercada por árvores e arbustos… Além do meu Dodge e de um mini-cooper parado mais a frente, próximo à lateral esquerda da casa, cujo não prestei atenção quando cheguei ali. E por focar-me naquele automóvel em si, encaixando as peças em minha cabeça e sentindo o sangue subir de uma só vez, falhei miseravelmente em desviar meu foco de forma tão fraca e drástica para um carro vermelho berrante, quando eu precisava me antecipar.

 Anos de treinamento, de aulas… De total prática e domínio no meu campo, e eu só tinha uma fraqueza. E não, não eram carros vermelhos… Talvez o dono do carro, quem sabe. Okay, eu já vou chegar lá, é melhor voltar para a parte em que eu era um completo despreparado em desviar o olhar da porta largada diante de mim e não antevi o momento em que aquela figura pequena iria saltar em minha direção. Não sobre mim, não me jogando longe ou atacando-me diretamente… Mas sim avançando sobre a porta, pousando na superfície amadeirada em um estrondo que me fez recuar e largar a maleta no chão. Eu não era medroso, mas ainda era bastante humano para tomar um susto.

 A pequena garota havia surgido da escuridão, tanto metaforicamente falando, quanto literalmente. Pousou animalescamente sobre a superfície amadeirada, como um enorme felino, parcamente iluminada pela luz do luar, apoiando as mãos entre os pés, em uma posição visivelmente desconfortante, ainda que parecesse endurecer ao sentar-se daquela forma. Pouco revelava o seu rosto, desde que os cabelos sujos, imundos e com nuances avermelhados e esverdeados, talvez de sangue e vômito (ou qualquer secreção do gênero), estavam tapando-lhe sua face. E era como se a jovem pudesse escutar o acelerar de meus batimentos cardíacos, seu rosto lentamente passando a pender para o lado, os fios claros e manchados delicadamente afastando-se e expondo parcialmente o que parecia ser um rosto pálido e marcado por veias escurecidas… Marcas em seu rosto, em um reflexo obscuro do mal que brotava de seu interior. A velocidade com que se movia, contrapondo a sua aproximação, fazia com que me sentisse sufocado e tivesse certeza, por mais que nenhuma palavra e olhares houvessem sido trocados, de que se deliciava com a angústia que me causava.

 O farfalhar de folhas ao longe. O vento rodopiando em algum ponto atrás de mim. A sequência sonora era preocupante, causava-me a sensação de que eu havia parado no tempo e de que eu estava surdo para o mundo, mas não para o que quer que estivesse parado diante de mim. Visivelmente, era uma menina, mas em sua essência… Em seu espírito, era algo arrebatador e que estava a destruindo por dentro.

 O trincar dos dentes da jovem, ao mesmo tempo em que ossos se estalavam audivelmente ao mover-se um pouco mais, como se estivesse tensionada por inteiro, quase apoiando a lateral de seu rosto sobre um dos ombros… As unhas quebrando-se, ao que notei que havia as fincado sobre a porta, em uma clara tentativa de afiá-las ou provocar-me, quando, então, foquei-me em seus olhos enegrecidos tão concentrados no que eu havia em uma de minhas mãos. Tudo aquilo era uma amostra clara de que me via como uma afronta… De que eu e a velha Bíblia em minha mão éramos seus inimigos.

 Bem, aquela era a única arma eficiente em momentos como aquele. Em que olhos negros me olhavam com macabra diversão… Enquanto uma risada aguda cortava o silêncio e revelava os dentes esverdeados de uma jovem que um dia me parecia ter sido bonita. A boca estava igualmente pútrida por dentro, o cheiro quase me fez golfar, propagando-se pelo ar e fazendo com que eu levasse a Bíblia para rente ao rosto, tentando me preparar mentalmente para o que viria em seguida. Era muito mais difícil fazê-lo sozinho, sem ter Mikey como ferramenta de distração, então eu precisava ser ao máximo cauteloso com cada movimento que fazia. Só era um milhão de vezes mais caótico colocar qualquer cântico de expurgação enquanto a jovem moça grunhia e ameaçava colocar-se de pé, pronta para me atacar.

 A voz não pertencia a ela. Ora gutural, ora aguda (principalmente ao que se propunha a rir de toda a minha incapacidade), cada palavra incompreendida era dita em gritos que ofuscavam o relampejar nos céus. Uma tempestade estava prestes a eclodir nos céus, contrastando com a figura diante de mim, ao arranhar a madeira em que havia pousado, fazia com que a porta se movesse sobre o chão enlameado, deslizando em minha direção ameaçadoramente. Murmurei para mim mesmo a oração de São Bento, a tão bem conhecida por mim em anos de estudo católico e que sempre havia sido infalível em cada um dos tormentos nos quais eu mergulhava.

 E que falhou miseravelmente logo em seguida.

 

- Non Suade Mihi Vana! – Exclamei, certo de que teria um efeito impactante contra aquela entidade, um pouco mais alto do que todo o resmungar anterior. Havia sido em vão, claro que havia sido… Eu deveria ter notado que a presença era forte demais, indescritivelmente assustadora ao fazer os olhos possuídos da jovem revirarem-se sucessivas vezes, tornando-se branco e preto, como se tentasse entrar em sintonia com algo ridiculamente desconhecido por Gerard Way, o mais renomado exorcista do Reino Unido.

 

 Ou talvez eu fosse o segundo mais renomado exorcista do Reino Unido e deveria encarar os fatos com realidade, ao invés de… Enfim. Preparado para abrir o pequeno livro em minhas mãos e entoar cada oração libertadora que eu havia abençoado e fixado à páginas e mais páginas do texto sagrado que tinha em mãos, eu desejei (talvez pela enésima vez naqueles nefastos minutos) que eu não estivesse sozinho.

 Eu não estava. Havia ele e eu sabia muito bem disso.  

 Precisava manter firmeza, fingir que os olhos da garota não se tornavam cada vez mais brilhantes e enegrecidos, ao proclamar palavras desconhecidas por mim. Não eram xingamentos, tão pouco era inglês ou latim… Eram palavras que imediatamente se misturaram com um tom ainda mais grave, dessa vez não entoado pela menina. Uma segunda voz sobrepôs-se, forte e tão arrebatadora quanto a presença sobrenatural diante de mim.

 Eu disse que não estava sozinho, não disse?

 

- Micaoli beranusaji perejela napeta ialapore, das barinu efafage Pe vaunupeho olani od obezoda, soba-ca upaahe cahisa tatanu od tarananu balie, alare busada so-bolunu od cahisa hoel-qo ca-no-quodi cial. – Enoquiano não era uma língua que eu conhecia perfeitamente, mas sabia a sua sonoridade e, principalmente, reconhecia como especialidade daquele rapaz pequeno em questão, que compulsivamente tratava de esbarrar em meu caminho sempre que podia, e dono daquele carro escandalosamente vermelho.

 

 Eu o detestava, mas, naquele momento, Frank era a minha única opção. Para não dizer salvação.

 Frank Iero era uma questão não respondida, uma vertente de tudo o que eu evitava em minha vida e o principal exemplar do espécime humano que me fazia desacreditar na humanidade. Iero era deplorável, um bêbado descontrolado, arrogante e incrivelmente irritante demais para todo aquele tamanho que tinha. O rapaz deveria alcançar minha cabeça com a mão se saltasse algumas boas vezes e toda sua falta de altura refletia em sua igual falta de paciência para tudo e para todos. Ele era detestável dos pés à cabeça.

 Porém, Frank Iero infelizmente talvez fosse mais conhecido do que os pioneiros irmãos Way em matéria de exorcismo, demônios e entidades de outro mundo… Eu não iria reconhecer isso em voz alta de forma alguma, mas, bem no fundo do meu tão teimoso ser, eu sabia muito bem que minha empresa só existia graças à família Iero e toda sua ancestralidade e renome na arte do exorcismo longe dos moldes do catolicismo. Não me cabe aprofundar tal assunto, mas, o que se deve saber, no momento, é que Frank Iero e seu tamanho não refletiam nem um terço do poder que possuía.

 E eu sequer acreditava que estava admitindo isso, observando-o caminhar, recém-saído da casa silenciosa, sendo seguido por uma velha senhora. Frank parecia até apresentável, sob o relampejar forte dos céus iluminando seu rosto tão expressivo, enquanto franzia o cenho e verificava que era realmente Gerard Way e toda sua altura, quase recuando e pronto para fugir de uma garotinha de catorze anos possuída por um demônio. E ele tinha razão em me olhar com tanta incógnita: eu já havia enfrentado até bebês endemoniados, porque parecia sentir tanto medo de uma possessão comum?

 A resposta era clara: não era uma possessão comum.

 

- Vaunesa aladonu mom caosago ta iasa olalore gianai limelala! Anema cahisa sobra mad arida zod cahisa! – Frank berrou, erguendo uma das mãos, alcançando aquele ponto onde eu e a jovem nos encontrávamos. E comprovei minha teoria, quando, subitamente, o corpo da garota envergou, não mais mantendo-se sentada.

 

 Os braços foram para trás, as pernas contorceram-se e esticaram-se, enquanto eu podia escutar os soluços audíveis da senhora próxima à Frank, provavelmente tratando-se da mãe que havia me contactado na noite anterior, em completo desespero. Frank mantinha seus olhos fechados, clamando sua oração com sua voz cada vez mais grave, mais seguro de que surtia algum efeito. E, ao contrário de mim e do coitado São Bento, pude ver um vislumbre de dor e perdição no corpo contorcendo-se diante de mim.

 A jovem rolou sobre a porta arrancada, agarrando-se às dobradiças, como se estivesse sendo puxada. A voz condizia com sua idade, dando-me certeza de que estava sendo arrastada para longe dali, quiçá para fora de seu corpo… O vento tornava-se forte, batendo contrariamente contra seus cabelos emaranhados e causando-me um frio digno de uma noite de inverno brutal. Logo, o paletó pareceu uma segunda camada fina de minha pele, falhando em tentar mascarar o vento gélido e o arrepio que me tomava o corpo por inteiro. Dessa vez, não pelo frio, mas sim pela cena diante de mim.

 O rosto da jovem voltou-se para o alto, para a lua mascarada por grossas nuvens acinzentadas naquele começo da madrugada, em uma posição quase humanamente impossível. Ossos estalavam, seu corpo estrebuchava, sua língua enrolava-se, literalmente, ao que tentava gritar por ajuda. O mal estava quase a sacrificando, quando Frank correu, aproximando-se em um movimento que me assustou tanto quanto o guinchar da garota, quando assim Iero tocou-lhe a testa com seu indicador e médio, aparentemente bastante ciente do que estava fazendo, enquanto eu achava aquilo tudo repugnante. Não a garota e o demônio, mas ele… Cheio de si, invocando palavras sagradas e angelicais que não pertenciam a humanos.

 

- Ooa moanu cahisa avini darilapi caosajinu od butamoni pa reme zodumebi ca nilu. – Frank manteve-se a proferir o cântico, agora em um tom mais cantado, como uma espécie de mantra rápido e fugaz, que derrotava todo aquele mal da mesma forma… O corpo da menina tornando-se amolecido, a palidez cada vez mais visível, denotando uma fraqueza que, anteriormente, havia perdido para uma força sobre-humana que não possuía. – Dazodisa etahamezoda cahisa dao, od mireka ozodola cahisa pidiai Colalala!

 

 Iero continuou, as mãos repousando no topo da cabeça da garota, enquanto tudo se intensificava: sua voz, os tremores ao meu redor, a sensação de que a terra sob meus pés estremecia e o céu estava prestes a desabar sobre nossas cabeças. Eu me sentia pesado, tão fraco quanto a alma que Frank aparentemente estava conseguindo salvar, enquanto mantinha seus olhos fechados e focado em algo que nem eu e toda minha teimosia e abominação por seus métodos ousamos interromper.

 Pela primeira vez, em anos de olhares furtivos, discussões estúpidas e boatos esclarecidos face a face, eu o via libertar uma alma de tamanho ardor pessoalmente. E era muito maior… Frank crescia quando entoava todo aquele poder, diminuía sua animosidade e exalava a certeza de que, o que quer que estivesse dominando aquela garota, iria se disseminado em questão de segundos.

 Poderia rezar em silêncio, gritando em minha mente cada palavra do Ritual Romano, mas eu sabia que não era a minha fé que realizava aquele milagre. Era inteiramente Frank.

 

- Ul ci ninu a sobama ucime. Bajile? Iad Balatohe cahirelanu pare! NIISO! – Eu nunca o vi tão forte, nem mesmo quando, tantas vezes, se atreveu a tentar partir para agressão física quando nos víamos… Nem mesmo quando bancava o bêbado sabe-tudo e estragava uma de minhas missões. Acreditava que estava o fazendo, dessa vez sóbrio, quando Frank abriu os olhos… E eu vi todos os relâmpagos ao nosso redor, a tempestade, o frio e dor, toda a dor que emanava naquela bolha de caos em que nos encontrávamos, refletidos nos olhos escurecidos dele. – In nomine dei Deus, excelsi! – E agora claros, cor de amêndoa, como realmente eram, os olhos de Frank focaram em mim, indecifráveis. Particalmente, eu não fiquei muito tempo os encarando, quando, preparado, completei suas palavras sem nem pensar duas vezes.

 

O principal fato era alarmante demais para que minha mente perturbada deixasse escapar tão facilmente: Gerard Way e Frank Iero, inimigos quase mortais, estavam exorcizando uma desconhecida juntos. Aquele era o milagre da noite, não a expulsão de um demônio. Eu tinha absoluta certeza disso. 

 

- Ab insidiis diaboli, libera nos, Domine. Ut Ecclesiam tuam secura tibi facias libertate servire, te rogamus, audi nos. – Não precisei da Bíblia e de minhas anotações para declamar aquilo, em passadas largas, diminuindo a distância que antes eu seguramente mantinha. Não que eu me sentisse mais seguro com Frank, era só que… Eu precisava mostrar quem realmente dominava demônios como ninguém. – Ut inimicos sanctae Ecclesiae humiliare digneris… Te rogamus, audi nos! – Minha garganta estava em chamas, ao gritar o fim das palavras de São Miguel Arcanjo, sentindo uma faísca percorrer todo meu corpo, assim que repousei minha mão sobre as de Frank, no topo da cabeça da jovem. E com a mesma intensidade com que proferi todo o poder divino e senti-me arrepiar, meu corpo foi arremessado bruscamente para trás.

 

 Não sabia ao certo se em virtude da adrenalina daquele momento ou se por meu subconsciente mascarar aquilo para mim, mas não sentir dor alguma ao atingir o solo, alguns poucos metros de onde o corpo da jovem desabava sobre a madeira e um último gutural escapava de toda sua fraqueza e quase derrota. E eu digo “quase” com toda a propriedade que me cabia… O mal não havia vencido, mais uma vez. Nós o havíamos derrotado de uma só vez. E o mais assustador daquilo tudo não era uma maldita entidade escura deixando o corpo da jovem, pairando por sua cabeça por reles segundos e rumando em direção aos céus, assim que Frank gritou “Te rogamus, audi nos!”, imitando-me e fazendo com que aquele espírito malevolente se lançasse em direção aos céus.

 O que realmente era assustador eram as nuvens pareciam chorar, derramando a grossa chuva sobre nossas cabeças, como se houvessem esperado aquele exato momento para se manifestarem diante daquele fenômeno. A tempestade era brusca, quase fantasmagórica, com uivos causados pelo vento ecoando ao nosso redor e farfalhar de folhas sendo quase mascarados pelas pancadas fortes, as trovoadas causando tremores consecutivos em meu corpo ainda abalado e desgastado por o que quer que havia me lançado para longe. Eu não sentia nada, eu sequer conseguia pensar em hipóteses sobre o tipo de força que havia sido exercida sobre mim e meu arquinimigo número um.

 Largado no chão, sem conseguir pensar em visualizar se havíamos concluído de verdade o nosso trabalho ou não, encarei o acinzentado acima de minha cabeça, semicerrando os olhos e permitindo que a chuva espessa me encharcasse, até perceber que o livro, ainda bem seguro em minhas mãos, poderia acabar danificando-se. Em súbito, levantei-me, busquei minha maleta (eu precisava proteger minha Bíblia acima de qualquer coisa) e senti-me pesado, não só pela água sendo absorvida por minhas roupas e meu coturno enlameado por dentro e por fora, mas por naturalmente precisar de um momento após um ritual pesado como aquele.

 Um momento que eu não possuía, uma vez que Frank Iero estava ali (a jaqueta de couro e os jeans rasgados tão sujos e molhados quanto eu deveria estar), sentado no meio da lama, mais próximo da jovem desmaiada do que eu, encarando-me tão indecifrável como antes. Eu não me preocupei em desvendá-lo, nunca o fazia e desviei meu olhar, após arremessar a Bíblia para dentro de minha maleta e voltar a segurá-la junto ao meu corpo, verificando o estado da pobre jovem vítima daquele mal.

 A garota estava largada, em uma posição não muito confortável, sobre a porta. Um pequeno grupo de pessoas havia se formado ao longe, diante da entrada da pequena casa, e não me atentei a identificar nenhuma daquelas pessoas, assim que a senhora, completamente ensopada e bem protegida por seu casaco escuro gigantesco, largou-se sobre o corpo da filha. E só tive certeza absoluta de que o trabalho estava concluído, quando vi a mulher mergulhar em um misto de sorrisos, lágrimas e gritos, até mesmo orações proclamadas e abafadas pela aterradora tempestade.

 Parte da pequena e mínima culpa que sentia em ter abandonado a Igreja desaparecia ao ver cenas como aquelas, ao presenciar que eu estava exercendo o meu conhecimento e que ele nunca era em vão. Abrir uma pequena empresa com meu irmão e tratar exorcismo como um assunto sério parecia uma loucura na primeira vez que o cogitamos, mas agora… Diante da imagem do alívio, após semanas ou meses de sofrimento, era inominável a sensação de paz e de que eu possuía uma vocação de verdade. Não legalizada pela Igreja, trazendo o meu excomungar e o de meu irmão, mas ainda sim mais válido do que falsas mentiras e orações que havia presenciado em solo sagrado.

 Minha impulsividade era nata desde os primórdios de meus ensinamentos no catolicismo e, daquela vez, não seria diferente. Enquanto Frank estava ainda sentado, ainda registrando uma mãe cuidando de sua filha, eu banquei o louco que não possuía mesmo um lugar ao lado dos jesuítas ou de qualquer crença que falsamente pregava tranquilidade. Eu estava muito longe disso.

 

- O que faz aqui? Esse caso é meu! – Em passadas um tanto quanto dramáticas, postei-me diante de um Frank que imediatamente ficou de pé, mais habilidoso do que eu imaginava. Os cabelos curtos estavam colados em sua face, sua expressão indignada o fazia como uma criancinha irritada por não estar se divertindo, enquanto eu fiz questão de realmente tirar qualquer sinal de satisfação dele. – Você e seu amiguinho esquisito rastrearam a ligação, não foi? Eu tenho certeza de que… - Era completamente não-profissional iniciar aquele tipo de discussão diante de um cliente e, pela indignação no rosto de Iero, fitando a mãe e a filha se abraçando, bem ao nosso lado, ele achava o mesmo. Mas isso não o impediu de responder, apontando um dos seus dedos tatuados em minha direção, enquanto sua voz era muito mais contida do que a minha.

 

- Sinceramente? Acha que eu iria perder o meu precioso tempo rastreando você?! – Frank e sua voz eram completamente diferentes do que eu presenciei quando expulsava o demônio daquela menina, muito mais frio e contido do que a força que transbordava de seu cântico enoquiano e sua determinação. – O pai da jovem é um conhecido meu, fui chamado há uns dias, mas só pude comparecer agora. E… E eu não lhe devo mais satisfação alguma! – Foi um tanto ríspido, franzindo o rosto, até um tanto bonito, ao que me fitava de cima à baixo, notando todo o desastre que eu era com aquela roupa pretensiosa, mas completamente destruída. E aproximou-se, em pequenos passos, o bastante para que erguesse seu rosto e quase me fizesse rir da diferença de altura, ao grunhir a frase seguinte. Os olhos faíscavam, a mão se controlava para não acertar o indicador contra o meu peito e os lábios tremulavam, raivosos demais para uma simples rixa entre duas equipes em um mesmo e restrito ramo. – Da próxima vez, faça o seu trabalho direito e chegue antes de mim ao menos uma vez na vida… Me poupe dessa ladainha, Way. Eu não tenho culpa da sua incompetência!  

 

- Como você pode ser tão detestável assim?! - Exclamei, nada pacífico e sentindo cada parte do meu corpo tremer, não só pelo vento frio e o fato de que eu provavelmente iria ficar gripado com toda aquela chuva caindo em mim, mas por ver aquele insolente me dar as costas e rumar até a senhora, cumprimentando-a rapidamente, pronto para dar o fora dali. – Ah, esqueci, tem raiva porque eu e meu irmão somos mais requisitados do que você e todo esse método ultrapassado. – Pronto. Era o bastante para ativar em Frank o seu verdadeiro eu e que falsamente escondia com sorrisos e palavras doces para mães e pais desesperados diante de um filho ou ente querido quase derrotado pelo mal. Frank não era nada bom e, aparentemente, só eu conseguia enxergar isso.

 

 Primeiramente, por ignorar por completo a velha senhora e sua filha imersas em lágrimas, para quase avançar em mim diretamente. Meu movimento defensivo, em erguer minha maleta em sua direção, ao mesmo tempo em que um relâmpago explodia nos céus, havia sido ridículo, mas foi o bastante para quase conter sua fúria. Ou melhor, quase… Pois Frank ainda avançava em minha direção, uma mão dentro da jaqueta, e era muito provável que estava prestes a puxar uma arma (ainda não identificável), quando o interrompi.

 E, mais uma vez, Gerard Way, tão controlado e cheio de religiosidade, ia para o espaço com a presença de Frank Iero e todo o efeito que causava em mim.

 

- Qual é o seu problema?! – Indiquei o que fazia com um movimento rápido de minha mão, alertando-o a respeito da insanidade que estava prestes a cometer. As histórias assombrosas de Frank eram um tanto duvidosas, em um primeiro momento, porém, sendo ameaçado de tal maneira e sem qualquer razão aparente (certo, eu sabia que havia começado), era a prova de que talvez fossem mais reais e obscuras do que contavam por aí.

 

- Toda essa obviedade é tão típica sua, Way. Continue zombando dos meus métodos! Você pode ter toda a tecnologia do mundo e a parte da igreja ao seu lado, mas… Existe um tipo de conhecimento que nem um dos seus sistemas e armas avançados são capazes de adquirir. – Frank não gritava como eu, incrivelmente o rapaz explosivo sabia ser controlado e imponente, mesmo com a baixa estatura e vestindo-se como um roqueiro de bar de quinta, enquanto eu podia sentir minha mão coçar para atacá-lo. Nem que fosse arremessando minha maleta preciosa naquele rosto bonito. – E você sabe que, quanto a isso, a competição é completamente injusta pro seu lado. – Eu sabia, eu não era burro… A família Iero possuía um histórico memorável, é válido ressaltar. Parte italiana, parte americana, a família havia migrado para o Reino Unido e, mesmo com décadas habitando as terras da Rainha, aparentemente Frank não havia perdido o sotaque americano marrento e irritadiço. Principalmente quando queria jogar verdades na minha cara e mostrar que, por mais que Mikey e eu fossemos bem-sucedidos, eles possuíam conhecimentos e técnicas que nem mesmo a Igreja Católica tinha acesso ou culhões para por em prática. – Tenha uma boa noite… E mande lembranças ao seu irmão, ele é uma gracinha.

 

 Ótimo, Frank Iero havia arranjado uma nova técnica para me deixar irritado. Meu rosto deveria estar vermelho escarlate, mesmo com todo aquele frio e ventanias desgraçados, quando insinuou-se para o meu irmão propositalmente arrancando a reação que desejava. Toda a situação esdruxula que girava ao redor de arremessar minha maleta em Frank quase se tornou real, quando, após piscar para mim (Exatamente… Piscar!!), ele me deu as costas e agiu como se nada tivesse acontecido. Ou melhor, como se houvesse ganhado aquela batalha e não tivesse precisado de mim para executar aquele curioso exorcismo.

 Não tentei me contrapor, xingar, correr ou deixá-lo marcado com o único objeto que tinha em mãos. Deixei que se afastasse, após despedir-se da senhora e ajudar a jovem enfraquecida a ficar de pé, rumando para aquele carro nada discreto, sem sequer olhar para minha cara. Frank deveria estar satisfeito e eu não queria mais bancar o inconsequente, não após presenciar algo que não estava em nenhum dos meus registros técnicos de aparições ou possessões. Havíamos visto algo forte ali, a entidade que havia ascendido aos céus era memorável, questionável também, e nós dois sabíamos disso, sequer precisávamos discorrer sobre o assunto para saber.

 Então, assistindo-o adentrar seu carro, após despedir-se do restante dos familiares próximos à casa, tateei o interior da minha maleta, tentando-a protegê-la da chuva com o meu próprio corpo, até encontrar uma pequena pilha de papéis no fundo da mesma. Agradeci mentalmente pela chuva não mais nos castigar como antes, agora sendo uma reles garoa emanando sobre nossas cabeças, quando me aproximei da assustada dupla, que agora era amparada por mais dois homens e uma pequena criança assustada.

 A família Montgomery era humilde. Michael e eu havíamos aceitado o caso, no dia anterior, sem nem pensar duas vezes ou cobrar por nossos serviços. O desespero era substituído por alívio em seus olhares, principalmente ao se certificarem que a jovem estava bem, livre do que quer que estivesse a azucrinado há meses. Sendo assim, não precisei aproximar-me e atrapalhar aquele momento, quando a mãe, a delicada Sra. Montgomery, veio até mim, talvez notando minha inquietação a respeito de atrapalhar aquele momento delicado.

 

- Me desculpe o escândalo, normalmente esse tipo de situação não acontece. – Comecei, ao que a senhora, tão baixa quanto Frank, postou-se diante de mim, sob o barulho dos pneus do mini-cooper daquele desgraçado ecoando logo ao meu lado. Entreguei o que havia retirado de minha maleta, uma pequena folha com a oração de São Bento impressa e preparada por meu irmão, com algumas alterações para leigos. – É parte da oração que utilizei ainda agora… Em caso de qualquer dúvida ou reaparecimento do que quer que tenha sido, não hesite em entoá-la. Isso pode ajudá-la a ganhar tempo até que eu e meu irmão possamos visitá-la. Mas espero profundamente que não venha a acontecer nunca mais. – Eu era extremamente sincero, apesar de viver de situações como aquelas quase semanalmente. Nada era mais perturbador do que ver pessoas perdendo a fé, desistindo da vida e entregando-se à escuridão, perdidas em um desespero que poderia ser retrógrado.

 

- Tudo bem, meu filho… Eu estou eternamente agradecida. Se eu pudesse, eu os pagaria com todo o dinheiro do mundo e… - A mulher iniciou aquele discurso emocionado e eu fiz um breve sinal para que não continuasse. Afinal, já era brutal o suficiente para que se preocupassem com mais alguma coisa, que não fosse a saúde da jovem Montgomery. “A Sra. tem nosso contato, pode nos chamar quando quiser.”, fiz questão de tranquilizá-la, ao que a mulher guardava o papel no bolso do casaco, cuidando para que tal não ficasse úmido. E disse, enquanto eu recuava, com lentidão, ciente de que meu trabalho ali já estava feito. – Obrigada, Sr. Way… Não faz ideia do quanto estou grata. Fique com Deus.

 

- Que Ele esteja sempre com a senhora e sua família, que sempre ilumine o lar de vocês e nenhum mal lhes abata novamente. – “Amém”, a mulher imediatamente respondeu às minhas palavras, o que me fez lhe dar as costas, com um sorriso e ainda abalado pela série de situações que havia presenciado naqueles últimos minutos.

 

 A viagem que fiz até Londres não passava de flashes obscuros em minha mente. As estradas, cada floresta obscura e cada pista que quase derrapei com meu Dodge em meio aquela semana chuvosa eram tudo o que minha mente havia registrado de verdade, durante horas e mais horas de um trajeto que me levou diretamente a casa que eu e Michael havíamos herdado de nossos pais. Normalmente, todo aquele caminho era muito mais prático quando se tinha companhia, porém, em toda a minha solidão, minha mente era desviada para buracos cada vez mais sombrios, memórias e reflexos de momentos que não queria lembrar.

 Podia ponderar sobre o quanto estava me sentindo radiante por retornar ao meu lar, suspirar aliviado por ter me libertado de mais um demônio, mas uma grande parte de mim gritava, em meu interior, que aquilo era uma ameaça. Não um “fim”, como todos os casos… Mas algo que não deveria ser colocado em uma pasta de arquivos, como Michael fazia, e deixá-lo esquecido como todas as outras centenas de casos que havíamos explorado pela Europa. Algo que eu tinha que cavar até o último segundo, a fim de obter todas as respostas que minha inquietação tanto desejava desde que vi a aparência daquele demônio.

 Aquilo vagava meu subconsciente, ao que estacionava meu Dodge diante da lateral da entrada principal da casa de dois andares onde eu e Mikey trabalhávamos. Era um bom local, de aparência antiga, com suas janelas grandes brancas contrastando com a estrutura de tijolos amarronzados, que escondia todos os apetrechos tecnológicos e religiosos que havia em seu interior, além do porão repleto de quinquilharias que meu irmão acumulava ilegalmente. Era um bom disfarce, a vizinhança pouco sabia do que eu e Michael vivíamos e conseguíamos passar como dois jovens professores de universidade para qualquer curioso ao nosso redor.

 Adentrei a casa sem muita pressa, sentindo-me exausto, não mais encharcado e refletindo a respeito de colocar meu carro para a revisão e limpeza no fim de semana seguinte, naquela preocupação habitual que tinha. A respeito da casa, eu não ligava, mas, quando tratava-se do meu velho Dodge, comprado em um leilão no interior do país, eu era um chato por completo em relação ao meu carro. Só com o carro, com todas as outras coisas e complicações, eu até que era bastante prático para alguém que havia convivido com fanáticos religiosos.

 Mikey não estava no hall, muito menos na sala. E eu nem precisei verificar o cômodo com dois sofás repletos de livros e pouco lugar pra sentar, fora as estantes e mesas entulhadas de tralhas que pertenciam tanto a meu irmão, quanto a mim. Porém, aquele não era o refúgio de Mikey, muito menos o seu quarto no andar superior… Sempre que eu perdia meu irmão de vista ou recém chegava em casa, só havia um lugar aonde ele poderia se enfiar.

 A entrada do porão era uma pequena porta logo abaixo da escada, levando a um corredor estreito com um novo lance de degraus. O local havia sido transformado em uma grande sala climatizada, uma espécie de laboratório criado por meu irmão há quase dez anos. Armários de vidros, mostruários de armas e objetos que usávamos em nossas excursões pelo continente, enfeitavam o local esbranquiçado, que destoava por completo dos demais cômodos escurecidos da casa. Não era a toa que Michael passava horas mergulhado em suas pesquisas, aquele era, definitivamente, o canto dele.

 

- Mikey! Descubra onde Frank Iero está morando! Quero o endereço completo, o país já sabemos... Preciso urgentemente! – Exclamei, invadindo aquela “bolha” pertencente ao meu irmão, largando minha maleta sobre o armário mediano, no qual guardava garrafas e mais garrafas de água benta. Mikey estava concentrado em algo e eu estava exausto e egoistamente mais preocupado em reclamar de Frank Iero, quando continuei a falar, ainda de costas para ele e analisando o armário diante de mim. – Precisamos queimar a casa dele… Já tenho uma ótima desculpa pra polícia caso acabem pegando a gente e… O que é que você está fazendo?! – A indagação era quase gritada, quando, após girar meu corpo e caminhar até o canto da sala onde havia uma maca reluzente e prateada, notei que Mikey e eu, tecnicamente, não estávamos sozinhos. Imediatamente reconheci o corpo sem vida de uma jovem, na faixa dos seus vinte e tantos anos de idade, exposto e aberto para uma dissecação que não sabia que meu irmão possuía conhecimento para colocar em prática. Sim, como se não bastasse vê-la nua, notei que meu irmão examinava seu tórax aberto com completa minúcia. – De quem é esse corpo?! – Mais um dia esquisito. Mais um corpo morto que subitamente surgia em nosso caminho. Mais um dia comum na vida de Gerard e Mikey.

 

- Susan Simmons, vinte e três anos. Foi encontrada morta nesse fim de semana, sem o coração… Sem nenhum vestígio de violência. – A voz de Mikey era um tanto diferente da minha, menos informal, menos carregada do sotaque que eu possuía após anos convivendo com ingleses e escoceses naquele seminário. Michael era mais desleixado, ainda que a voz fosse arrastada e séria, ao que se curvava sobre o corpo da jovem. – Parece que simplesmente o coração evaporou dentro dela. Eu nunca vi uma coisa dessas em toda a minha vida! - Meu irmão parecia um cientista louco, com óculos enormes, quase em um estilo steampunk, um jaleco branco (que havia comprado apenas para o seu bel-prazer) e suéter listrado em preto e branco, debaixo daquilo tudo. – É fantasticamente surreal!

 

 E meu irmão parecia animado com um cadáver quase dissecado diante de si, saltando do pequeno banco, onde antes estava sentado, para rodear a maca. Aproximei-me, parando ao seu lado, com o olhar ainda fixo na jovem de face rígida, mas quase pacífica, e seus cabelos escuros ondulados, espalhados sobre a maca. Silenciosamente, resmunguei a oração de Santo Agostinho, a mesma que havia utilizado para velar o corpo de nossa avó, quando fui arrastado para o seu funeral e obrigado a ver a única pessoa que realmente se importava em cuidar de mim, a não ser Mikey, abandonar-me. Aquela memória era pesada e só reforçava que eu era, talvez, a última pessoa do mundo que gostava de lidar com morte e suas adjacências.

 Ironicamente, eu vivia cercado dela. E a jovem morta diante de mim era um bom exemplo disso.

 

- E você deveria deixar seu coração evaporar da mesma forma quando trabalha e encontra Frank Iero por aí. Essa paixonite está indo longe demais. – Mikey ganhou minha atenção não só por pegar um enterótomo para puxar parte da pele da garota (o barulho do ato era tão nojento, que sequer conseguia descrever), mas por cogitar aquilo… A ideia de Frank, o exorcista mais abominável e egocêntrico que eu conhecia, mantendo algum relacionamento comigo. Nunca, nem em um milhão de anos, eu teria algum tipo de afeição em relação a Frank Iero. Era praticamente ultrajante cogitar um absurdo desses! Eu ainda tinha um pouco de integridade e uma reputação a zelar. E muito menos estava tão desesperado assim.

 

- Para o seu governo, ele te acha uma gracinha e te mandou lembranças, eu não faço o tipo dele. – Ponderei, dedilhando a borda da maca, tomando todo o cuidado do mundo para não tocar naquele cadáver, enquanto Mikey e suas luvas cirúrgicas não possuíam o menor cuidado ao explorar o interior do corpo. Cutucava, remexia e agia como uma criancinha divertindo-se com um brinquedo exótico. – Mesmo que o fizesse…Oh! Não existe paixonite alguma! Não me faça… Não me faça justificar minha irritação causada por aquele baixinho insolente. – Grunhi, percebendo a quantidade de desculpas e enrolações estúpidas que estava dando para uma afirmação ridícula. Não havia nada a ser dito, pois não havia nada. Ponto.

 

- Certo. Não me diga que não avisei. – Mikey deu de ombros, ainda bastante ocupado em enfiar a mão entre os seios daquele cadáver, vasculhando minuciosamente seu interior, enquanto só uma questão vagava minha mente. “Me fale mais sobre como esse cadáver veio parar na nossa casa.”, resmunguei, desviando meu olhar para as feições concentradas de Mikey. Olhando-o daquela forma, ele até parecia comigo, se não fosse pelo cabelo mais castanho claro do que o meu e os óculos esquisitos. E ah, toda a sua magreza. Michael era um espelho de nossa mãe, enquanto eu era meu pai por completo, desde os cabelos escuros, ao rosto mais redondo e a palidez. Apesar de todos os pesares, nós realmente éramos parecidos, acredite. A começar por nossa sintonia e como Michael respondeu prontamente o que eu queria saber em cada mínimo detalhe. – Kristin me mandou o corpo assim que viu o coração desaparecido. – Claro, Mikey vivia revendo a ex-namorada (uma moça calma demais para Mikey e que trabalhava em um necrotério, obviamente) quando o deixava sozinho, não era uma novidade. Só não sabia que seus encontros trariam todo o necrotério do St. Mary para nossa casa esporadicamente. – Ela também nunca viu algo assim… O corpo estava intacto antes de ser examinado, nem um corte ou incisão sequer na região do tórax. Com o meu pouco conhecimento de medicina, o que posso dizer é que é humanamente impossível remover um órgão dessa forma, sem fazer um estrago completo.

 

- Isso é bastante óbvio, Mikey. A questão principal é… Isso pode nos interessar por qual obscuro motivo? Você não iria manter ilegalmente um… - Antes que eu questionasse mais ainda, Mikey revirou os olhos, prontamente inclinando-se para ajeitar o braço da jovem, o que estava mais próximo de mim, mostrando-me não com palavras diretas, mas com a visão daquela pele clara marcada. Símbolos haviam sido cavados em seu antebraço, provavelmente com algo mais rústico do que um simples canivete. A carne ainda estava em processo de cura quando a jovem morreu, e ainda era notável todo o cuidado e precisão com que trilharam aquela linha de figuras em sua pele. – Oh… Esses símbolos... Agora faz um pouco de sentido e…

 

- Enoquiano antigo. – Mikey era mais rápido do que eu e provavelmente já havia juntado todas as peças quando recebeu o seu “objeto” de estudo. E complementando-se, meu irmão deixou as ferramentas de lado e repousou as mãos sobre a maca, enquanto resumia a pesquisa que havia feito durante a minha ausência. – Não achei nada nos registros históricos ou nos papéis sagrados que você insiste em consultar. Mas a parte mais interessante ainda não é essa, acredite. – E ele me olhou daquela forma… O mesmo olhar esperto que me lançava desde pequeno, quando investigava pequenos acidentes na vizinhança e sempre os acertava, sempre inteligente demais para crianças da sua idade.

 

- Achei que falta de coração e símbolos enoquianos fossem o suficiente para o mistério da semana. – Era assim que chamava todos os casos quase sem solução em que meu irmão nos metia e sempre obtia a mesma resposta: Mikey revirando os olhos, voltando a fazer o que tinha que fazer, o que, no caso, consistia em voltar a examinar o corpo diante de si e me responder com sua fala rápida e quase ensaiada.

 

- Kristin consultou a identidade dela e quando entrou em contato com a família, descobriu que o pai é um ex-pastor conhecido em Chesire.  O homem já sabia do fim da filha… Não conseguiu exorcizá-la e teve um fim indesejado. Fugiu de casa e quando a encontraram,  aqui em Londres, estava dessa forma. – Meu irmão indicou o corpo diante de si com um gesto breve de sua cabeça e eu me mantive encarando os símbolos delicadamente lapidados em sua pele, enquanto ele continuava a ensopar o seu jaleco de sangue e fluídos não muito bem vindos. – A filha mais nova está sofrendo do mesmo mal… Símbolos cortados nos pulsos e pernas… Todos os sintomas típicos de uma possessão misturados a essa incógnita nessas mensagens ainda indecifráveis.

 

 Indecifrável. A palavra estava dominando meus últimos dias, desde o exorcismo com aquele final questionável, Frank Iero em um todo, até chegarmos ao corpo exposto diante de mim, sendo dissecado delicadamente por meu irmão, fechando toda a situação da pior forma possível. Ou estaria começando? Tal pergunta martelaria ainda mais em minha cabeça, enquanto eu buscava semelhança em algum símbolo visto, comparado a escrita na pele da jovem. Nada… Vazio completo.

 Tentei relaxar a minha mente a todo custo, mas algo em mim trazia de volta a imagem da criatura enegrecida pairando o céu, os ruídos… A anormalidade sutil que visualizei naquela noite em questão. Algo gritava dentro de mim que cada detalhe era uma peça do quebra-cabeça que surgia e era enaltecido a cada nova informação. Ou talvez eu estivesse ficando louco.

 Ou talvez eu precisasse dormir.

 

- Essa é a parte em que você diz que Kristin nos indicou ao ex-pastor e que vamos visitá-lo imediatamente para ajudá-lo nisso. – Gesticulei com uma das mãos, sendo imitado por Mikey, ao me responder um  “Exatamente. Temos muito trabalho a fazer, irmãozinho.”, que me fez suspirar, resignado. Talvez os meus planos de tomar um banho, me jogar na cama e dormir por um dia inteiro estavam indo para o espaço. – Peça para buscarem esse corpo e deem um enterro digno à ela… E pare de cutucar os pulmões da garota, você não é mestre em medicina! – Exclamei, quando me atrevia a recuar um tanto, já conformado da falta de rotina que tínhamos há anos. Ás vezes, conseguíamos descansar e relaxar por dias, aproveitar um pouco de nossa cidade natal ou até mesmo nos comportarmos como seres humanos normais, mas, a maioria dos dias sombrios vencia, e eu nem mais tentava lutar contra isso. - Nós vamos para…

 

- Sul da França, aparentemente o ex-pastor decidiu que era uma boa se mudar do Reino Unido quando foi excomungado. – Mikey fez questão de falar, com um sorriso gigantesco no rosto, finalmente parando de revirar o cadáver e retirando as luvas avermelhadas, permitindo que os estalos do plástico ecoassem pelo porão em um silêncio que durou apenas cinco segundos. Eu cronometrei. Foi tempo suficiente para que eu percebesse o que aquilo queria dizer.

 

- Merda. – Sul da França. Era só o que me faltava... Eu queria gritar mais palavrões, mas o meu bloqueio religioso impedia que eu fosse mais desbocado do que aquilo (por enquanto). Era como se o destino estivesse trabalhando perfeitamente para que eu não encontrasse a minha tão sagrada paz.

 

 Eu sabia o que isso significava: nós não iríamos apenas para outro país, nós iríamos entrar no território dele, no atual local de trabalho de Frank Iero. A tempestade estava voltando, mais forte e agora metafórica, anuviando minha mente e meus sentidos de uma só vez… Algo em mim tinha plena certeza de que era a pior ideia do século.

 A principal luta era contra os dominadores do mundo das trevas, contra cada alma amaldiçoada vagando pela Terra em busca do tão aclamado caos que forças espirituais mal-intencionadas desejavam, mas a Bíblia dizia que deveríamos vestir a armadura de Deus e enfrentar cada um dos nossos próprios demônios... Utilizar o escudo da fé para tal e seguir em frente. O pior desses demônios, para mim, era humano e respondia pelo nome de Frank Iero. Eu era especialista em entidades sobrenaturais, exemplar no meu trabalho, mas nem toda a minha experiência era capaz de repelir aquele rapaz.

 Nem todas as orações do mundo seriam capazes de rechaçar o que estava por vir.

 

 

 

 

 

 

 

 


Notas Finais




Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...