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História Sonhos Não Mordem - O Garoto da Árvore


Escrita por: Decrypt0

Capítulo 2 - O Garoto da Árvore


Fanfic / Fanfiction Sonhos Não Mordem - O Garoto da Árvore

Ao fim de uma de suas imensas e desinteressantes orações, ela, provavelmente percebendo que não estou escutando-a, solta as seguintes palavras:

 

Se fosse o Paulo falando você escutaria.

 

    Fecho meu livro com relativa força, fazendo um leve barulho abafado. Viro-me completamente em sua direção, fazendo-a ficar emudecida.

      Fale mais uma palavra sobre Paulo e poderá ter duas certezas, a de que serei expulso, e, principalmente, que você não sairá de uma cama de hospital pelos próximos dois meses. - respondo secamente.

     Seus olhos fitam-me e, após alguns segundos, ela volta sua atenção ao vídeo, de modo a parecer que não ouviu minhas palavras. Torno meu corpo para a frente e continuo minha leitura.

    

    Paulo era um garoto que estudava em minha sala. Ele entrara cerca de três anos atrás e, desde então, nutri um certo afeto pelo garoto.

   Possuíamos os mesmos gostos mórbidos, o mesmo faro para romances britânicos do século dezenove, até nossos cabelos pareciam terem sido feitos em uma linha de montagem. Éramos o que alguns podem chamar de “almas gêmeas”, mas, francamente, não acredito nesse tipo de coisa.

    No meio do ano passado, porém, Paulo estava passando por alguns problemas pessoais, problemas que hesitou em contar até mesmo a mim. De qualquer forma, ele estava mais melancólico que de costume, havia adentrado em uma depressão.

    Em uma sexta feira, a última do mês de Maio, enquanto estávamos assistindo a última aula do dia, Paulo pediu permissão para ir ao banheiro, pois não estava sentindo-se muito bem. Ele, porém, não retornou, e o sinal da saída tocou.

    Enquanto descia a escada, lembro-me de notar uma movimentação acima do comum para o horário e, quando cheguei no pátio, percebi o motivo de tal agitação.

    Paulo jazia enforcado em um dos galhos do cipreste. Alguns garotos tentavam em vão segurá-lo pelas pernas para que pudesse recobrar a consciência. Eu, entretanto, sabia que não havia nada mais a ser feito. Paulo estava morto.

    Ainda consigo ver suas feições, surpreendentemente pacíficas para alguém que, presumo, tenha agonizado por cerca de dez minutos. Seus lábios, uma vez rosados, estavam com um aspeto cinza, como se feitos de argila. Seu pescoço inclinado para trás em um ângulo inimaginável. Suas mãos, antes pálidas, agora estavam coradas em um tom de vinho tinto. Mas, ainda sim, seus olhos estavam cerrados, não havia uma expressão de dor. Paulo teve o quê ansiava por dias, uma morte bela e tranquila.

    Depois do “incidente”, como os alunos começaram a se referir ao ocorrido, criou-se uma repulsa sobre o cipreste, tendo havido, inclusive, um abaixo assinado para derrubá-lo, rapidamente vetado pela direção da escola.

    Ainda hoje gosto de sentar-me aos pés da árvore. Gosto de pensar que ainda estou lendo meus “penny dreadfuls” com Paulo ao meu lado, pedindo por mais tempo para contemplar as palavras da página antes de eu virá-la. De certo modo, ele tornou-se uma página virada, mas não esquecida.    

    Lembro-me que, ao chegar próximo ao corpo, encontrei a carta de suicídio em no bolso direito de seu jeans preto. Dentre linhas e mais linhas de desculpas e agradecimentos, notei um anexo, preso em um clipes, com os dizeres 

 

“Sei que não está triste, sei que entende meus motivos, para você, Pedro, deixo a seguinte passagem do primeiro poema que lemos assim que começamos a conversar. Obrigado por tornar minhas manhãs e noites mais interessantes.”

 

Entre ver o mundo em um grão de areia

E o paraíso em uma flor selvagem,

Segure a infinidade na palma de sua mão

E a eternidade em uma hora.

 

    Ninguém leu sua carta de suicídio. Após retirar e, cuidadosamente guardar o anexo, entreguei-a para a diretoria. Presumo que tenham entregado para os pais de Paulo, que, infelizmente, nunca tive a oportunidade de conhecer.

    

    A aula termina, o quê significa que ainda tenho mais cinco pela frente para então poder passar a tarde devorando meu novo livro.

    Um período depois, o intervalo inicia-se, e todos são obrigados a dirigirem-se ao pátio. Nunca aprovei tal medida, pois, mesmo após horas de reflexão, não pude encontrar uma justificativa plausível que satisfizesse o porquê de não podermos ficar nas salas.

    De qualquer maneira, aguardo os demais alunos sairem das salas para que possa descer as escadarias sem ser empurrado ou ter de ficar amassado entre o que calculo serem duzentos estudantes.    

    Ao chegar no pátio, a luz do Sol ofusca minha vista, e rapidamente busco abrigo na sombra abaixo do cipreste. No início, todos encaravam-me com desprezo e reprovação, mas, após notarem que, francamente não dou a mínima, pararam, ou ao menos fazem-no em silêncio. 

    Espero alguns minutos e Marina surge da enorme fila da cantina, que, ao meu ponto de vista, não possui nenhum alimento no mínimo decente para consumo humano.

    Ela senta-se ao meu lado e começa a falar sobre uma festa de Halloween, cujos anfitriões são os alunos do terceiro colegial, e que, por motivos que eu não consigo entender, convidaram os alunos do segundo ano.

    Digo a ela que vou pensar no assunto, pois não sou exatamente a melhor pessoa para festividades. Ela insiste e, depois de algum tempo, troca de assunto.

    Enquanto ela vocaliza suas mágoas sobre como os garotos do terceiro são bonitos, o quê de fato é verdade, algo cai de cima do cipreste em sua cabeça. Não tão pesado para machucá-la mas não tão leve para passar desapercebido.

    Marina tateia seus cabelos russos e, entre uma mecha e outra retira um pedaço, com cerca de vinte centímetros, de corda, fazendo-a emitir um alto e desesperado grito.

    Imediatamente todos que estão no pátio se voltam para nós, e, enquanto Marina chora e grita, percebo que é um dos restos da corda de Paulo que decidiu visitar-nos.

    Marina é escoltada para a enfermaria e tomo a liberdade de guardar a corda em meu bolso. Imediatamente, como que sumonada por uma força demoníaca, Flávia rouba a corda de meu bolso e joga-a na lixeira.

    Percebo a atitude, tento ao máximo controlar-me. Um deslize e estarei acabado.

    Finjo que não notei e continuo minha caminhada em direção à sala, ao passo que o sinal toca, anunciando o início da segunda metade do martirizante dia.

    

 

 

    

    

        

    



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