Ele chegou e roubou uma batata frita do meu prato, roubou o sol que brilhava irritantemente do lado de fora da janela e sentou-se a minha frente jogando a mochila na cadeira ao lado. Sorriu de um jeito meio torto e levantou os óculos os deixando no topo da cabeça. Me sentia pronto para alcançar-lhe palavras maldosas e questionamentos múltiplos. Afinal, ninguém nunca ousara roubar uma batata do meu prato antes.
Mas talvez ele tivesse roubado muito mais de mim.
Deixei a caneta cair ao lado do caderno para dar-lhe toda minha atenção e curiosidade. Ele tinha os cabelos todos espetados para cima, duros de forma que me fez imaginar o tempo que ele ficara sem tomar banho e isso pareceu meio nojento de se pensar, mas ele continuava sorrindo como se uma batata não tivesse sido roubada do meu prato e como se ele não tivesse levado o sol embora e trazido um aroma de outono nas roupas e o espalhado pelo ar, justo na minha frente, justo na mesa do único lugar que me trazia paz em todo o mundo.
- Eu adoro batata.
Disse apoiando o queixo nas mãos sobre a mesa e encarando meu prato. Quis mandar-lhe desfazer o bico pidão e dizer que era eu quem pagaria por aquela batata, que eu havia as pedido como um ritual sagrado, portando eu teria de comê-las. Mas quando ele voltou a me encarar nos olhos e sorriu sem mostrar os dentes empurrei a prato para ele e não o neguei aquele pedido mudo.
Vi uma por uma se esvair do prato que ele havia sujo de molho. Nunca tive que lidar com alguém que molhava batatas no molho de queijo antes de comer, portanto me assustei quando ele lambuzou uma e me ofereceu, a colocando bem diante dos meus lábios. Meus olhos se arregalaram, como poderia existir alguém assim no mundo?
Ele balançou a batata no ar e eu não pude fazer nada além de abrir os lábios e deixar que ele os recheasse com o molho daquela batata que agora eu mastigava. Era um gosto totalmente novo para um prato que eu comia todos os dias sempre no mesmo horário.
Fiquei o olhando atento me perguntando milhares de coisas que eu provavelmente não o perguntaria jamais. Minhas mãos brincaram no meu colo. Olhei para o caderno a minha frente e voltei a segurar a caneta. Ele estava acabando de comer e de repente fiquei com medo que ele fosse embora. Quis escrever algo para ele, mas meus dedos estavam suados e temi que a caneta caísse idiotamente antes de eu conseguir dizer algo.
Ele parecia feliz quando acabou. Empurrou o prato para o lado e sorriu sem mostrar os dentes. Seu sorriso era torto de uma forma tão adorável que me encheu de coragem para escrever-lhe algo antes que ele se levantasse e fosse embora por aquela porta sem pagar nada e me dever muito.
"Como você se chama?"
Escrevi tentando não errar nenhuma palavra e ergui o caderno para ele. Ele encarou a pergunta feita com tinta e não com palavras e sorriu novamente, abaixei o olhar tímido, ele não pareceu querer zombar de mim com aquele sorriso esquisito.
- Kim Minseok - disse baixinho se inclinando sobre a mesa para me olhar mais de perto, seus olhos tinham um tom bonito de castanho, parecia um gato selvagem perdido pelo mundo.
Quando ele se levantou do banco tudo dentro de mim se revirou, quis que fosse de fome, mas não pareciam os mesmos sintomas. Minha mão instintivamente se levantou para segurar a dele, mas voltou para meu colo antes que ele a visse pairando pelo ar revelando o idiota que sou.
Ele me olhou, não entendi o que se passava pela sua mente, por debaixo daquele cabelo duro, mas ele sorriu largo e me perguntou:
- Você quer dar uma volta?
Por um segundo tudo na minha vida parecia estranho e confuso. Alguém que eu nunca vira antes naquele lugar chega levanto muitas coisas embora em questão de minutos, incluindo minha saúde mental. Esse alguém é ousado demais e rouba uma batata do meu prato. Como se não bastasse me faz voluntariamente lhe entregar todas as outras e então esse mesmo alguém me chama para dar uma volta... Esse eu que nunca foi notado ou incluso nas saídas dos amigos e companheiros de trabalho.
Questionei-me se talvez ele fosse alguém querendo se aproveitar de mim, alguém que teria prazer em me fazer algum mal e depois desaparecer sem deixar vestígios. Entendi que o mais sensato era continuar sendo o anônimo que sempre fui e tentar inutilmente concertar aquele dia que ele havia bagunçado logo que levou o sol embora naquela cidade que sempre era ensolarada. Lhe disse não, como o bom covarde que era. Me arrependi assim que neguei com a cabeça seu pedido, quis voltar atrás com a minha resposta e simplesmente dizer sim e depois escrever-lhe dizendo que só havia aceito porque era de direito meu que ele me oferecesse algo de bom depois de ter comido meu almoço.
Mesmo com minha negação ele tocou meu braço gentilmente e se agachou ao lado da mesa para me olhar já que eu não conseguia o encarar depois de ter tantas coisas frenéticas e aleatórias correndo pela mente.
- Você tem certeza que não quer?
Repetiu a pergunta me dando uma segunda chance de dar-lhe a resposta que eu tanto queria dar, e mesmo depois de ter vacilado por uma segunda vez, escrevi com letras feias no caderno que aceitava.
Ele esperou que eu guardasse minhas coisas na mochila, então saímos daquele restaurante de esquina, os dois com mochilas nas costas lado a lado andando pela calçada.
- Aquela batata estava boa a beça. Muito obrigado. - Balancei a cabeça mostrando-lhe que eu havia recebido seus agradecimentos. Tínhamos quase a mesma altura andando daquela forma, próximos, porém seus cabelos o deixavam aparentemente mais alto.
Andamos pela beira da praia naquela tarde. Eu havia nascido naquela cidade, portanto o tempo tomou de mim a admiração pelo mar, pela areia, pelas árvores, pelo vento ou pelas coisas belas que ali tinham. Mas ele pareceu trazer essa sensação nostálgica de volta, me fez lembra dos tempos em que corria pela praia por horas incansáveis sob sol quente de um lugar onde o verão nunca descansa e voltava para casa no fim da tarde com a marca da camiseta e da bermuda. Trouxera-me lembranças de quando a inocência me açoitava e aprisionava toda tristeza que viria nascer com a adolescência.
O vento batia forte contra meu rosto e fazia um barulho engraçado com nossas roupas. Tive vontade de sorrir observando o quanto suas expressões pareciam serenas estando ali, arrastando os pés na água e misturando-se com o vento como se fossem um só.
Depois de me entregar sua mochila ele correu para dentro do mar e sumiu entre as ondas voltando logo depois com os cabelos molhados e crescidos grudando no rosto. Senti uma batida falhar no meu peito e minhas mãos voltaram a suar quando ele se aproximou sorrindo e jogando os cabelos para trás.
Depois que ele se lavou em um dos chuveiros públicos seguimos andando pela praia até que encontramos uma sombra para sentar. Ele tirou uma garrafa de água de dentro da mochila e estendeu em minha direção, dentro daquela mochila pareciam ter tantas coisas que me deixou curioso.
Dividimos a água e tornei a abrir meu caderno e lhe lançar uma pergunta.
"Onde você mora?"
Pensei que talvez aquela fosse se tornar uma pergunta inconveniente, já que talvez ele pudesse não ter um lugar para morar, mas ele sorriu e me respondeu naquele mesmo tom sereno.
- Eu moro na capital. Divido um espaço com meus amigos.
"Por que veio para cá? Por que roubou uma batata do meu prato?"
Ele pareceu pensar um pouco sobre a resposta e então se virou para mim.
- Eu sonho em abrir meu próprio restaurante porém a faculdade não se paga sozinha, então arrumei um jeito mais fácil de aprender sobre comida. Eu estou fazendo um mochilão por todo o país conhecendo pessoas e aprendendo sobre culinária da forma mais precária possível. Respondendo sua segunda pergunta, eu realmente achei você interessante quando vi você através do vidro, me pareceu confuso com o que tentava fazer, me pareceu meio triste. Então eu quis convidar você para dar uma volta, mas aquelas batatas cheiravam tão bem que eu quis mesmo que você as dividisse comigo.
Ele soltou uma risada animada e eu o acompanhei.
Desisti da faculdade quando um professor substituto me pediu para ler em publico sem saber da minha afasia. Naquela noite chorei como no dia que descobri que nunca falaria como as outras pessoas e pensei em desistir de tudo em mais um momento de fraqueza excessiva. Minseok por outro lado era o tipo de pessoa que eu gostaria de ter sido a muito tempo e nunca consegui ser. Aquela pessoa que acha soluções novas para as dificuldades mais típicas, que não medo de sair da caixa e desafiar o mundo.
De repente ele não veio tirar minha paz, mas sim trazer-me uma paz nova, que soava bonita como uma musica velha. Talvez ele não veio me roubar algo, mas me trazer aquela vontade de coisas novas que eu perdera a muito tempo. Estar ao lado dele naquela sombra, vendo o mar se quebrar em ondas e fazer subir um cheiro gostoso de areia molhada e sal, me fez querer seguir em frente e me encheu de coragem. Quis chamá-lo para sair outra vez. Nem que para isso eu tivesse que perder mais uma tarde de trabalho. De repente isso se quer importava.
Meus olhos se perderam no movimento que seus cabelos haviam adquirido depois de lavados e secos pelo vento, mesmo que ainda parecessem duros de uma maneira bonita, de uma maneira bagunçada mostrando exatamente aquilo que imaginei Kim Minseok ser, um sonhador bagunçado que não se preocupava com coisas bobas e fúteis como lavar os cabelos todos os dias, ele queria apenas viver e ser feliz chamando um estranho para dar uma volta na praia depois de comer seu lanche sem pagar.
- Eu não perguntei o seu nome ainda. Eu normalmente não pergunto o nome das pessoas que conheço, porque não gosto de me apegar a elas ou algo do tipo. Também sempre tive um grave problema em me lembrar de nomes ou datas, então... Mas eu estou realmente curioso para saber o nome do garoto que não fala e que foi putamente legal comigo.
O sol parecia sereno naquela tarde, como nunca antes. Acertava seu rosto e fazia seus olhos brilharem de uma forma a se desenharem na minha mente. Virei a folha do meu caderno e escrevi com uma caligrafia um pouco mais elaborada.
"Kim Junmyeon"
- É um nome muito bonito. Combina com o meu.
Dizer que nossos nomes combinavam era como pedir para entrar no meu coração e não sair nunca mais. E aquilo me assustava porque eu sabia que ele não passava de um mochileiro sem rumo que iria embora assim que o assunto acabasse e eu não o veria nunca mais.
E de fato nunca mais o vi. Passaram-se dias em que olhei para a janela daquele restaurante de esquina esperando que ele passasse com seus cabelos duros e seus óculos ridículos sobre a cabeça a descansar. Que ele me roubasse uma batata do prato e me fizesse o oferecer todas as outras. Mas depois de um mês eu parei de olhar para fora ou acreditar que ele apareceria. Nada dele havia ficado comigo para que eu tocasse e o esperasse voltar para buscar, mas ele havia ficado com algo meu, ele havia batido uma foto minha na praia antes de me acenar e ir embora. Disse que iria olhar para ela e lembrar do garoto que não fala, mas que diz muito.
Queria só saber o que ele pensava enquanto a olhava.
Mas depois de sentir aquele vazio por quase um mês, lembrei-me das esperanças que ele havia acendido no meu coração e entendi que ele não havia chegado do nada, ele quis me salvar de me afundar em mim mesmo.
Voltei para a faculdade no mês seguinte, de cabeça erguida porque não havia o que temer ou o porquê me esconder. Pessoas certas sempre aparecem em momentos certos. As vezes é preciso para de esconder-se embaixo de uma concha e dar uma chance para a vida.
Depois de me despedir de Luhan caminhei distraidamente pela calçada. A noite estava calma e ao longe era possível ouvir o som das ondas se desfazendo no mar. Peguei uma rua diferente enquanto ajeitava os fones de ouvido para ouvir Park Hyo Shin cantando Wild Flower. Minha vida estava indo bem, mais um semestre estava prestes a se findar e apesar de toda correria, eu estava aproveitando cada segundo.
Avistei as luzes de um restaurante com uma faixada em marrom acobreado, me chamarem atenção. Meu estômago se revirou de fome lembrando as tantas horas que eu ficara sem comer apenas estudando. Decidi entrar.
Sentei em uma mesa perto da janela, como tinha costume de fazer. A voz de Park Hyo Shin se findava e peguei o celular agilmente colocando aquela musica novamente, eu estava viciado nela. Aproveitei para olhar as mensagens preocupado que talvez Luhan tivesse mandado algo já que tinha mania de não me dar sequer tempo de chegar em casa para começar a contar como tinha sido o percurso até seu apartamento. Ainda não havia nenhuma. Guardei o celular no bolso e peguei o cardápio sobre a mesa. Assim que o tomei em mãos algo me chamou a atenção.
Eu conhecia aquela foto na capa.
Eu estava naquela foto.
Era eu ali. Meu rosto virado para a câmera sorrindo timidamente. Os cabelos em parte sobre o rosto por conta do vento. Meus olhos perdidos em algum lugar que não fosse aquela lente. Ao fundo tinha o mar. Ambos em preto e branco assim como na foto que Minseok havia batido de mim.
Sua lembrança me atingiu o estômago como um soco. Deixei o cardápio cair na mesa, pronto para me levantar quando um garçom parou ao meu lado deixando sobre a mesa uma porção de fritas com molho de queijo. O olhei, mas não era Minseok.
Sorri vendo aquele prato enquanto minha mente puxava na memória o dia em que o vi pela primeira e única vez. Senti meu coração bater mais forte.
Então ele finalmente se aproximou, era ele, com seus cabelos espetados para cima, com aquele mesmo sorriso torto.
Ele me estendeu a mão e me mostrou um bilhete.
"Eu te devia uma porção de batatas, mas nem é isso que eu quero dizer, eu só quero dizer mesmo que você lindo."
Sorri da maneira mais besta possível. Olhando em volta vi que haviam vários quadros de diversos tamanhos pela parede, todas com a mesma foto. A minha foto. O encarei e tirei meu caderno da mochila.
"Você quer dar uma volta?"
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