Ouvi a porta do quarto se abrindo. Acordando, franzi meu cenho e observei a porta do quarto preocupada. Pensei que fosse Jay, Nancy ou um de seus capangas. Mas, não. Observei Rick adentrando o quarto e caminhando até mim, com um mísero sorriso em seu rosto. Apoiei minhas mãos no colchão, abri minha boca levemente e o observei assustada. –Rick?
Ele então, se aproximou e ficou ao lado de minha cama com as mãos em sua cintura. –O encontramos, Emma. –Ele se referia à Charlie, enquanto eu não acreditava no que via. –Finalmente o encontramos.
Ouvi alguns passos, e logo percebi que Carl estava do outro lado da cama, também sorrindo. –É hora de ir, vamos logo. Quero mostrar meus novos gibis para Charlie.
-O que... estão fazendo aqui?
Em seguida, avistei a estrutura de Daryl no meio dos dois, segurando sua crossbow. –Se não vai levantar para vê-lo, então por que se foi? –Ouvi a sua voz rouca e carregada com o sotaque do interior. –Resolveu esconder as merdas das coisas de mim de novo, não?
-Não dê ouvidos para ele. –O sorriso de Rick desapareceu, enquanto ele caminhava até Daryl e permanecia ao seu lado. –Você teve seus motivos.
-Pare de mentir para si mesmo. –Por uma fração de segundos, vi sangue escorrer por todas as cavidades do rosto de Daryl. Nariz, olhos, ouvidos. Arregalei meus olhos e perdi meu fôlego, sentando-me na cama. –Ela vai matar todos nós. Como os outros.
-Daryl está certo. –Observei Carl, ainda sem palavras. Ele também sangrava, e sua pele ficava pálida cada vez mais, enquanto escorria litros de sangue pelo seu chapéu. –Todos vamos morrer.
-Corrija isso, Emma. –Finalmente, observei Rick. Sua boca era repleta pelo sangue escuro e vermelho, assim como seu rosto e ouvidos.
Voltei-me para Daryl, e ouvi sua voz gritar como nunca. -Faça as merdas derem certo!
Acordei sobressaltada e coloquei uma de minhas mãos em meu pulmão, sentando-me na cama. Suspirei pesadamente, enquanto sentia minha pele suar. Mas, por uma fração de segundos, senti-me aliviada por estar dentro da mesma casa. Eu estava ofegante e meus batimentos estavam acelerados. As lembranças me atormentavam até mesmo nas minhas horas de sono, e os pesadelos se tornavam reais cada vez mais. Passei as mãos pelo meu rosto e senti a dor dos ferimentos causados pela noite passada. Precisava de um banho. Forcei-me a levantar, e com dor em meu corpo, fiz questão de chegar rapidamente ao banheiro que continha água. Jay tinha planejado tudo. Encolhi-me sob a água gelada e fechei os olhos, esperando que aquilo me livrasse da inquietação que sentia desde que acordei. Socos e pontapés, estrangulamento, arranhões, contusão e esmagamento dos punhos, espremidos nas gramas sujas da floresta. Atingida por pistolas (pesadas) e golpes no estômago. Socos no olho esquerdo, que mal se abria e lado direito com bochecha esverdeada. Hematomas no quadril, antebraços, braços, coxas esquerda e direita, no lado externo da bacia e nos dois ombros. Tapas e socos nas duas bochechas, e ferimentos nos ambos lábios. Tudo que Jay fez a mim durante 10 dias no terminal, ele repetiu a mesma coisa em 10 minutos. Tinham se passado dois dias desde a agressão. E mesmo com o curto tempo, eu perdia a conta de quantos ferimentos eu tinha quando olhava-me no espelho. Meu estômago roncava. Sementes e água durante uma refeição por dia, não me sustentavam. Eu pensava em minha família o tempo inteiro, e em Daryl. Depois de cinco dias desde a minha fuga, sentia vontade de chorar toda vez que Jay me humilhava falando sobre as pessoas que eu mais amava. “Eles não estão sentindo sua falta.” “Fiz um favor te trazendo para cá, acredite.” Jay fazia questão de me ferir em todos os sentidos. Mesmo não me agredindo fisicamente a todo tempo, ele fazia isso usando apenas suas palavras. Naquele momento, nem a água fria da tubulação velha e desencadeada, resolviam meus problemas.
De repente, ouvi barulhos dentro do meu quarto e duas batidas na porta do banheiro. Fechei a torneira, e me vesti rapidamente. Deixei o chuveiro e ouvi mais batidas. Não disse nada, ou me movi. Observava a porta desconfiada, e com medo.
–Pode abrir... sou eu. –Ouvi a voz de Nancy no lado de fora, e então, ela insistiu. –Se não fizer isso rápido, não sei quando terei outra chance.
***
Mordi a espiga de milho sem sal e sem gosto com vontade. Me lambuzava com a refeição sem graça, mas me sentia agradecida por não sentir mais fome. Sentada no vaso, comia de forma desesperada enquanto Nancy me observava em pé.
–Eu sinto muito pelo o que ele fez à você. –A olhei parando de comer por alguns segundos e recordei-me das diversas agressões sofridas nos dias anteriores.
FLASHBACK ON
Desci para beber um pouco de água. Estava com sede. Peguei uma garrafa na geladeira e me assustei quando ouvi a voz de Jay atrás de mim. –Ajoelhe-se.
Virei-me, sem entender, e o fitei. –O que?
-Ajo-elhe-se. –Ele disse quase soletrando, enquanto eu o observava ainda machucada pelos ferimentos da noite anterior. -E a partir de hoje, me chame de senhor.
Respondi calmamente: -Eu não vou fazer isso.
-Eu disse para se ajoelhar. -Jay repetiu.
-Eu não vou... fazer isso. –Insisti. E então, com um pulo, Jay segurou meus cabelos e com raiva, me empurrou para o chão. Fiz um movimento rápido para apoiar-me com minha bunda, em vez de cair de joelhos. Ele não teria a satisfação, nem mesmo por um segundo, de me ver ajoelhar diante dele. Jay me agarrou, girou para o lado e dobrou minhas pernas como se eu fosse uma boneca de borracha. Tentei me soltar diversas vezes, mas o máximo que conseguia era derrubar toda a água da garrafa no chão. Em seguida, pressionou minhas panturrilhas contra as partes de trás das coxas, erguendo-me do chão como uma marionete com cordas e tentou me empurrar novamente para que eu me ajoelhasse. Enrijeci, me arrastei pelo chão e me livrei de seus braços chutando seu corpo. Ele me socou, e me chutou. Mas, eu levei a melhor: não o chamei de senhor, e muito menos me ajoelhei em frente ao seu corpo. Nunca me renderia à esse ponto.
FLASHBACK OFF
-Não é a primeira vez... –Minha voz rouca e cansada se fez presente, enquanto eu tentava passar o alimento pela minha dolorida garganta. –Estou acostumada. –Vi que ela olhou para baixo e passou a se distrair com o bordado de sua blusa em silêncio. Vi que ela se incomodou com minha “despreocupação” diante aos fatos, e ainda mastigando, chamei sua atenção novamente. –Ele te sequestrou? -Comparei seu aparecimento ao meu, e de forma rude, questionei.
–Não. –Nancy respondeu, passando a me observar novamente, enquanto eu comia. –Eu trabalhava no terminal organizando suprimentos. Achei o lugar através dos mapas... e logo vi que não era o que eu havia pensado. Mas já era tarde. –Eu claramente, não me recordava dela. –Tudo bem. –Percebendo meu estranhamento, afirmou. –Eu também não iria querer lembrar de mais nada sobre lá. –Permaneci quieta, e então Nancy continuou. –O problema foi que... meu filho querido fez "uma merda muito grande", e Jay o matou. –Ouvi suas palavras atentamente. –De certa forma, ele ajudava uma prisioneira. Ela se chamava Gabriela. Dava água, cuidava dos ferimentos... fazia o mesmo com os demais. Jay não sabe o significado da palavra "bondade". -Olhei para baixo e fiquei em silêncio, recordando-me de tudo o que eu passei. –Aquele homem era um filho para mim. –Ela sorriu, perdendo-se em seus pensamentos. –E agora ele se foi. E eu estou aqui, presa.
Associei os fatos, e percebi que o “homem” de qual Nancy falava, era Ben. Segurei-me para que meus olhos marejados não se tornassem lágrimas, e a observei. –Seu filho salvou a minha vida. –Nancy ficou sem palavras. –Como você. –Assenti, e sorri amigavelmente. –E eu... sou eternamente grata. –Nancy sorriu, e então uma lágrima correu pelo seu rosto. Fiz o mesmo e segurei sua mão, a observando.
Quando Nancy deixou o quarto, olhei pela janela. Usei minhas mãos machucadas para afastar minha cortina e finalmente, observar o carro de Jay chegar e cinco homens descerem do mesmo. Ele, foi em seguida, formando um paredão com os outros. Virados para a direção oposta, permaneceram à frente do carro e apontaram suas armas para um ponto que eu não pude enxergar. Franzi minha testa e me locomovi para tentar entender o que estava acontecendo. Depois de alguns segundos, disparos começaram a ser feitos. Quando percebi, uma multidão de errantes passou a andar em direção aos mesmos. Me assustei silenciosamente, e depois de um tempo, quando as munições não estavam dando conta, Jay guardou sua pistola em seu cinto e então tirou uma faca do mesmo. Depois do ato, ele passou a caminhar entre os errantes, matando-os. Os mesmos, não o olhavam. Simplesmente, não tentavam mordê-lo ou segurar em suas vestimentas. Jay passava por todos sem chamar a atenção. Em seguida, quando eles acabaram com todos os errantes, Jay passou a mão pela testa suada e entrou no carro novamente com seus homens. Foi inacreditável. O carro partiu, e eu fiquei sem entender o que tinha acontecido. Jay simplesmente desapareceu para os mortos-vivos. Como se fosse imune. Coloquei uma jaqueta preta que achei no armário, e tirei a poeira de cima da mesma assoprando-a, tossindo em seguida. A vesti sentindo dor em meus braços, e olhei-me no espelho do banheiro. Meus machucados, meu olho inchado e minha voz ferida se fizeram presente mais uma vez. –Faça as merdas darem certo, Willians.
***
-Ei! –Colocando a mão na maçaneta, Will me chamou atenção colocando as mãos em sua metralhadora e levantando-se do sofá. –Aonde você vai?! –Tentei ignorá-lo, mas ele colocou seu braço na minha frente, bloqueando a passagem. –O que está fazendo?
-Preciso dar uma caminhada sozinha. –O observei e respondi de forma rude.
-E Jay a autorizou? –Ele indagou, colocando a mão em seu bolso.
Segurei seu antebraço com todas as forças que pude. E com muita coragem, aumentei meu tom de voz, o observando. –Eu não tentaria fugir sem suprimentos e sei que há 10 de você nas redondezas. Não sou estúpida. –Saberia que ele não ia me matar. E ferimentos a mais não me afetariam. –É só... uma caminhada.
Ele ficou alguns segundos me observando. –Eu espero que sim. –Seu cheiro insuportável de cigarro, gasolina e lixo, adentraram meu nariz. –Não acho que Nancy sobreviveria à decepção... se você não voltasse. –A mesma, que estava limpando a mesa de jantar, me observou apavorada.
Voltei-me para o monte de esteroides covarde. –Eu vim aqui por vontade própria. –Abri a porta e o observei pela última vez. –E vou voltar pelo mesmo motivo.
Saí pela porta de entrada, mas certifiquei-me de ir até a floresta pelos fundos. Não queria encontrar Jay, ou nenhum de seus estúpidos homens. Utilizava todas as minhas forças restantes para conseguir me locomover depressa, mas as dores corporais diminuíam boa parte de minha velocidade. A mochila pesava e meu arco escorregava de minhas mãos fracas, mas eu não desistiria. Depois de praticamente uma hora de caminhada, cheguei ao ponto onde deveria chegar, e observei Mark encostado em uma das árvores com sua grande arma em mãos. Parei de caminhar quando o vi, e percebendo minha presença, desencostou seu corpo e me observou surpreso.
Dei um pequeno sorriso vendo-o vivo e parei meus passos à sua frente. Mark caminhou rapidamente até mim e me abraçou. Colocando seus fortes braços por cima dos meus, e uma de suas mãos em minha cabeça, fechou seus olhos.
–Achei que... não iria se lembrar. -Eu disse, recordando-me da conversa que tive com o homem antes de deixar HoldWood.
-Como não me lembraria? –Ele se afastou lentamente, e me observou. -O que houve com você? -Mark percebeu meus ferimentos sem esforço. -Está sentindo dor?
-Não. –Respondi e passei a andar de um lado para o outro, nervosa, enquanto ele me fitava. –Eu só... precisava tomar um ar.
-Como deixou esse filho da puta fazer isso com você?
-Isso é pouco... –Mark me observou confuso. –Jay preparou uma casa. A minha casa para me receber. -Expliquei.
-Eu vou acabar com aquele cara... –A voz grossa de Mark se fez presente, enquanto ele tentava andar em direção a casa.
-Perdeu a cabeça?! –Entrei na frente de seu enorme corpo e empurrei seu peito musculoso. –Se voltar para lá e mostrar que está aqui, vai estragar tudo.
-Estragar tudo? –Mark se afastou por um momento, e se indignou com o meu estado. –Olhe para você, Emma. Não há mais nada para estragar.
-Eu já passei por isso antes, dá para superar.
Mark me observou seriamente e insistiu. –Ok, então me responda uma coisa: quem vai vigiar esse olho para não infeccionar? –Ele indagou, e eu desviei meu olhar contendo minha paciência. –Quem vai cuidar dessas costelas fraturadas? Da sua asma, Emma? -Eu o fitei. –Vai se matar se continuar com esse plano. Podemos encontrar Charlie de outra forma.
-Não, não podemos. –Afirmei, convicta de mim mesma. –Charlie está nas mãos de Jay. E eu não vou voltar para casa até ele mandar o garoto de volta para a comunidade de novo. –Mark cruzou os braços, e fechou seus olhos abaixando sua cabeça. –Mark, eu estou viva. Estou respirando. –Ele segurou-se para não ir contra a mim novamente. –Apenas... não gaste o único tempo que eu tenho de paz me pedindo para desistir de algo que eu não vou abrir mão. Por favor. –Ele pareceu não concordar em parar de discutir, mas assentiu levemente com a cabeça. Coloquei meus cabelos atrás das orelhas e perguntei. -Como Daryl está? E Carl, e rick, e... todos?
-Estão fazendo rondas diárias novamente. –Mark me respondeu, e eu permaneci quieta. –Procurando por Charlie, e por você. Daryl está desesperado. Não desistirá até a encontrar. Carl está abalado, mas começou a fazer parte das rondas com o Rick. Tento ir em algumas para manter minha transparência, mas não dá mais, Emma. Toda vez que vejo Alex e penso que ele sabe onde você está como eu, temos certeza que ir aos lugares marcados no mapa não vai dar em nada. –Cruzei meus braços, e senti minha pele se arrepiar. –Erin trabalha forçadamente. Apenas atende Maggie nas consultas diárias, e outros habitantes sem nenhuma vontade. –Murmurei um “merda” e olhei para baixo, coçando minha nuca, nervosa. –Daryl não fala com ninguém. –O olhei novamente. –Só fala que vai procurar por você. Sozinho.
-Como assim sozinho? –Indaguei, preocupada. –Não pode deixá-lo fazer isso. Os homens de Jay estão por todos os lugares... isso é perigoso demais para...
-Emma, se nem Rick consegue mantê-lo junto ao grupo... não vou conseguir nada tentando. –Suspirei pesadamente, e minha preocupação atingiu um nível que nunca imaginei que atingiria. Uma lágrima espontânea escorreu por um de meus olhos, e eu tratei de limpá-la rapidamente, desviando meu olhar de Mark. –Por favor... desista do que pretende fazer e volte para casa. –O observei novamente, e ele insistiu. –Não pode fazer nada presa com ele. Não pode salvar Charlie, não pode proteger ninguém ou a si mesma. Não pode se martirizar pelo desaparecimento de Charlie, ou pela morte das pessoas que nos deixaram. Vamos resolver isso juntos, até que...
-Até quando, Mark?! –Mais lágrimas tomaram conta de mim, e minha voz chorosa o pegou de surpresa. -Até eu quando chegar em casa e achar Daryl esganado? –Me referi a pessoa que mais sentia falta, enquanto ele ainda me fitava. –Ou você espancado até a morte pelas mãos de Jay?! –Ele se calou. –As pessoas que sofreram por ele e as que ainda sofrem, precisam de um culpado. E até quando eu acabar com o verdadeiro culpado, esse alguém serei eu. Eu tenho que pagar. -Fechei meus olhos e contive minhas lágrimas mais uma vez. -Apenas... faça isso por mim. Você é o único fora do meu grupo em que eu confio para fazer isso agora. E é o único... que pode fazer isso, o único que pode completar o plano. –Eu o olhei. –Prometa para mim que não vai desistir.
Mark ficou alguns segundos em silêncio, me observando. Eu sabia que pedia muito. Sabia que era arriscado e sabia que era inaceitável. Mas, eu precisava tentar.
–Quando você me pediu para que eu te ajudasse... eu prometi que a ajudaria. –Ouvi sua voz grave mais uma vez. –No dia das invasões você salvou minha vida. –Me virei, e o observei surpresa. -Eu te devo uma, lembra? –O observei por míseros segundos, até que nos abraçamos novamente. Senti o calor de seu corpo invadir o meu, e minhas lágrimas vazarem pelos meus olhos. A dor não cabia em meu peito, e arriscar a vida do meu amigo daquele jeito era difícil. Mas era o único jeito. Mark fazia parte do plano, e isso não mudaria. –Eu estou com você, parceira. –Ouvi sua voz, e senti meus cabelos sendo acariciados.
***
Abri a porta de casa, e observei Will parado em frente a mesma. Ele estava me observando fixamente, como os homens armados do lado de fora. –Algum problema? –Perguntei irritada, com a mão na maçaneta.
-Nada, fraca. –Ele afirmou, ironicamente. –É a sua casa, não é? O que está esperando para entrar?
-Você parar de me olhar como um doente psicopata. –Falei entrando na casa e ignorando a sua presença ali.
Logo quando pisei no tapete em frente a porta, observei a mesa de jantar. Haviam dois copos de água, algumas sementes, frutas variadas e como sempre, pedaços de carne. Jay estava sentado com uma xícara de café em mãos, assim como Nancy, que estava sentada ao seu lado. Sua pistola estava em cima da mesa, ameaçando de certa forma a mulher. Meus passos foram interrompidos enquanto observava aquela cena, e então Jay finalmente se pronunciou sem parar de me olhar. –Pode ir agora.
Depois de alguns segundos, Nancy se levantou de forma aliviada e me observou fixamente por míseros segundos, antes de ir para a cozinha. Queria parecer natural, então, apressei-me para sentar na cadeira ao lado dele.
-O quê? –Indaguei observando-o me encarar.
-Estava esperando saber qual tipo de fraca terei hoje. –Minha mudança de comportamento durante os últimos dias, era insuportável para ele. Tentei ignorá-lo pegando algumas sementes e frutas, e de forma rápida, colocando-as em meu prato com minhas próprias mãos. –Posso saber onde estava?
-Saí para caminhar. –Respondi, mentindo.
-É ótimo saber que não fugiria assim. –Jay afirmou, bebendo um gole de seu café extremamente quente.
-Estou me esforçando.
-Claro que está. -Ele ironizou. -Não seria bom tolerar mais uma morte caso ao contrário, não? -Poderia discutir ali mesmo, ou ir para meu quarto como uma adolescente rebelde. Mas não queria me ferir mais. -Fico feliz que tenha essa noção, fraca "que está se esforçando".
-Mais para “tentando tornar a situação mais tolerável”. –Encostei minhas costas na cadeira, e bebi mais água. Mesmo sem parecer, estava com medo. Tinha preocupações em relação aos seus espontâneos surtos de raiva, e me sentia exposta e inferiorizada com seu olhar silencioso. –Como fez aquilo? –Indaguei o observando e ainda de boca cheia. –Passou pelos errantes sem fazer eles perceberem sua presença... vi pela janela hoje de manhã.
Ele pareceu irritado quanto a minha pergunta, então desviou-se de mim e pediu com sua voz sendo abafada pela xícara de café. –Coma a sua comida.
Engoli as frutas contidas em minha boca e mexi nas sementes de forma distraída. Queria desvendar todas as minhas dúvidas relacionadas à Jay. Mas, aquela tinha que esperar.
–Suas ações nunca te atormentam? –Insisti em ter algum tipo de diálogo com ele, o observando.
Jay colocou a caneca em cima da mesa, e olhou para um ponto fixo em sua frente.
–Antes de conhecê-la, raramente me importava com alguma coisa. –Mentiroso. Jay era um homem repulsivo. Suas mentiras, sua voz sarcástica e sua extrema vontade de me fazer perder a paciência, me irritavam profundamente. Ele desejava que eu surtasse.
-Nem mesmo com os presos do terminal? –Ele me observou novamente, em silêncio. –Nunca pensou como se sentiria se alguém o obrigasse a fazer coisas que não quisesse, esmurrasse você todos os dias e deixasse você sem comer em... pleno fim do mundo?
-Você não foi a única que sofreu com o apocalipse, fraca. Existem pessoas com mais ódio que eu, acredite.
Jay voltou a evitar o meu olhar, e eu continuei. –Então... matar todas aquelas pessoas, inclusive me obrigar a matar aquele homem... foi por puro.... ódio?
-Não. –Ele me respondeu, e nos encaramos novamente. –Foi por você. –Parei de comer, e de me movimentar. –Quando a vi na floresta, atirando com seu arco e flecha contra uma árvore aleatória... sabia que seria você. –Prestei atenção em suas doentias palavras em silêncio. Ele me seguia desde sempre. –Então... eu só dei uma ordem, meus homens obedeceram e finalmente a tive em minhas mãos. –Recordei-me daquele dia frustrante mais uma vez. –Mas nem tudo são flores... não é fácil fazer você acreditar que pertence a mim, que é minha propriedade e que... devemos ficar juntos. –Ele era um psicopata insano. Tudo o que ele falava não fazia sentido algum. Franzi meu cenho sem acreditar no que estava dizendo. –Então... eu sou obrigado a fazer tudo o que faço.
-Está dizendo que... tudo o que faz, é por minha culpa? –Indaguei.
-Não, claro que não. –Sua irônia se fez presente mais uma vez. –Só estou querendo dizer que você contribuiu para que tudo aquilo acontecesse. E vai contribuir até me provar que concorda comigo.
-Você tentou me fazer matar um homem inocente. –Aumentei meu tom de voz e continuei o observando.
-Isso mesmo. “Tentei” te fazer. E ele não era inocente. Era um traíra. –Jay me interrompeu. –Poderia muito bem conduzir suas mãos para atirar no pobre Jack, mas não fiz.
-Sim. Você preferiu me bater. –Aproximei minha cabeça da sua e aumentei ainda mais meu tom de voz. –Mais uma vez.
–Foi melhor do que fazê-la estourar os miolos daquele filho da puta com uma flechada, não? Melhor do que invadir seu precioso lar e acabar com cada um daquela maldita comunidade, não foi? Então, seja educada e não reclame de barriga cheia. –Olhei para meu prato e fechei meus olhos. –Apenas... aceite que, querendo ou não, estamos juntos nessa. –Senti sua mão alisar meu antebraço, então me levantei rapidamente, soltando o talher na mesa e empurrando sua mão para longe.
-Eu disse para não me tocar! –Quando me virei, passei a andar em direção às escadas. Ouvi os passos de Jay me seguindo, e consequentemente, sua voz.
-Fraca....
-Não me chame assim! –Subi os primeiros degraus e então, fui interrompida por sua fala mais uma vez.
-Eu costumava fazer bem mais do que apenas tocar sua mão.
Quando parei de caminhar, me virei o observando. –É... –Desci os degraus novamente, e pela primeira vez naqueles dias, não senti medo de Jay. –Chama-se agressão. Abuso. Feminicídio.
-O quê? –Ele franziu seu cenho e ironizou. –Poupar a vida da merda do seu grupo, não te matar quando resolveu fugir e deixar aquele idiota do Ben te alimentar, é agressão?!
-Eu não queria nada daquilo, Jay! E não quero! –Gritei. –Você não só me agrediu fisicamente, mas violou cada célula infectada do meu corpo e cada pensamento da minha maldita cabeça! –Ele continuou parado, enquanto observava e me ouvia calado. –Não importa se acha que isso é “amor”, ou se pensa que sou sua “propriedade”, porque eu não sou! Tirar-me da minha comunidade, matar pessoas, sequestrar crianças ou me fazer de escrava, não vai diminuir o nojo que eu sinto por você! Não vai diminuir quantos machucados eu tenho em meu corpo, e não vai diminuir o quanto eu o odeio! –As palavras pulavam de minha boca. -Não importa o que estava tentando fazer! Você me agrediu. –Repeti, caminhando em sua direção e gritando o mais alto que podia. –De novo, e de novo, e de novo!
Rapidamente, vi o vulto de Jay segurar a minha garganta com uma de suas mãos e lançar meu corpo contra a parede mais próxima. Minha cabeça bateu tão forte naquela estrutura, que me senti tonta ao ponto de cair no chão de bruços. Mal conseguia abrir meus olhos, e senti uma dor extrema invadir minha nuca e a parte de cima de meu crânio. Os machucados doeram como nunca, e eu senti sangue sair pela minha boca. Em seguida, observei por borrões os pés de Jay caminhando até atrás de mim, e em seguida, ouvi sua voz sussurrar palavras, enquanto seu corpo curvava-se até mim.
–Sabe, fraca... –Grunhi de dor e continuei o ouvindo, sentindo minha cabeça girar. –Eu estava realmente pensando em aceitar o seu comportamento e livrar o garoto do que ele está passando. Mas parece que... isso vai ter que esperar, não é mesmo? –Fechei meus olhos e comecei a chorar, vendo minha visão escurecer por puro cansaço, e dor. E então, Jay disse suas últimas palavras naquela manhã. –Durma bem.
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