A noite finalmente chegou e, na praça central e adjacências, uma multidão estava aglomerada aguardando o início das festividades. Em uma grande mesa próxima ao palanque, grandes figuras políticas da ilha e convidados ilustres estavam sentados, conversando e bebendo.
Entre os convidados estava Lara Gambel, uma guerreira que havia assumido o comando de um dos fortes de Stonia, após a morte da sua antiga rainha e mãe, Nastácia Gambel.
Lara trajava um longo vestido azul e branco, repleto de pequenos cristais e o seu cabelo, loiro, estava muito bem arrumado. Sem dúvidas era a mais bela dama de todo o festival. Sua aparência encantadora, no entanto, mascarava sua verdadeira personalidade, impiedosa e letal.
Heldone se levantou da mesa, ajeitou seu colete, segurou sua taça e olhou para as pessoas ansiosas lá em baixo.
– Amigos. Mais do que isso, creio eu... Gostaria de agradecer a presença de todos! É por nossos esforços conjuntos, e pela boa convivência com os outros reinos de Surya, que este festival, especialmente esse de nossa cidade, tem crescido tanto. Quando ele foi comemorado a primeira vez, depois que nossos ancestrais dominaram essa ilha selvagem, anos atrás, ele tinha um significado: sobrevivência! Hoje, tenho o orgulho de dizer, que sobrevivência não é a única coisa que comemoramos aqui, esse festival é a marca do progresso e da liberdade de nossa nação! – Discursou Heldone com ímpeto, erguendo a taça de vinho mais alto.
Era quase ensurdecedor o barulho do local, devido a expressiva vibração de todos. Uma chuva de fogos deu-se início, abrilhantando o céu daquela noite majestosa, com formas e cores. Um conjunto de músicos começou a tocar uma melodia alegre e várias pessoas se puseram a dançar.
Ouvindo o seu amigo discursar, em um ponto um pouco mais afastado da praça, estava Ramon. O velho marinheiro estava de pé e de braços cruzados assistindo a tudo quando, da porta de uma pousada, Cannon surge em péssimas condições.
Ele parecia muito desgastado: tinha seus olhos fundos como de ressaca, e a roupa toda bagunçada. Andou, com a mão esquerda no bolso, até Ramon e apoiou o braço em seu ombro.
– Os quartos desta pousada devem ser mesmo péssimos. Você deveria ter ficado na casa de Heldone como sugeri. – Disse Ramon, intrigado com o estado dele.
– Não zombe do regresso de um homem, após suas aventuras heroicas. – Respondeu com o ar de dever cumprido.
Ramon franziu o cenho e coçou a barba, sem entender direito do que o rapaz estava falando. De cabeça baixa e sem mais nenhuma explicação, Cannon seguiu seu caminho por entre os becos da cidade, descendo umas escadarias e se afastando daquela multidão em polvorosa. Ele andou Sem destino por alguns instantes, até que o silêncio fosse absoluto.
– Ah, assim é bem melhor…
Com os braços esticado, ele se espreguiçou. Tudo o que Cannon desejava agora era uma cama limpa e um bom banho quente. Decidiu então caminhar de volta para a mansão.
Em certo momento, enquanto ele passava por uma praça deserta, começou a ouvir algumas batidas suspeitas: um som metálico, ritmado, que ressoava pelas ruas. Quase todos os habitantes de Pascal estavam no festival e, até onde a vista dele alcançava, parecia não haver outro alguém. Aquilo começou a deixá-lo bastante intrigado.
Com olhos e ouvidos aguçados, virou-se em todas as direções tentando identificar de que lado vinha o barulho. Após alguns momentos de concentração, ele conseguiu ter ideia de que rumo tomar.
Cannon seguiu a passos rápidos, rua após rua, sempre a se aproximar da fonte. Os caminho iam se tornando cada vez mais estreitos, simples e escuros à medida que ele avançava.
Quando já estava bem próximo à origem, ele avistou um pequeno recinto de onde uma luz vermelha saia, contrastando com a densa escuridão.
Por todas as partes, aquele era o único sinal da presença de algum ser vivo. Cannon se aproximou silenciosamente da janela e viu uma garota de cabelos vermelhos batendo um grande martelo negro em uma bigorna. Era a mesma garotinha que conhecera no cais, filha de Ramon, Leeno.
– Por que não está com o seu pai, no festival? – Perguntou, enquanto pulava a janela.
Leeno interrompeu as batidas e sem olhar para trás respondeu.
– Não gosto dessas festividades. Eu venho de uma cidade muito longe daqui, lá sabemos bem que essa paz não passa de uma ilusão.
– Mais uma razão para aproveitar enquanto pode. – insistiu.
– E eu estou aproveitando, amo fabricar armas. É assim que eu me divirto. – Retrucou Leeno, sorridente.
Cannon também sorriu e aproveitou para olhar melhor os arredores: havia muitas ferramentas espalhadas por todo o recinto. Uma lamparina a óleo e uma fornalha faziam a iluminação um tanto rústica do local. Havia algumas caixas com pedaços de metal, e alguns sacos com pedras brilhando em várias cores em um canto da sala. Tirando este último, parecia ser apenas uma oficina comum.
– Aquela sacola que seu pai lhe entregou no navio, eram pedras de fogo? – Perguntou Cannon. – Elas são bem difíceis de conseguir fora do mercado negro.
– São sim, eu pedi que ele as pegasse para mim nos laboratórios da Guarnição. – Respondeu Leeno deixando seu martelo de lado e se virando.
Pedras de forja são deixadas, ocasionalmente, por algumas espécies de monstro após sua morte. Uma fonte poderosa de Gin, que carrega a natureza do monstro que a deixou. Quanto maior o nível da criatura, maior a chance dela derrubar uma pedra. Alguns caçadores de itens vendem pedras no mercado negro a um preço exorbitante, uma prática considerada ilegal.
– Você me parece um pouco nova para ser uma forjadora. – Comentou Cannon cruzando os braços.
– E... Eu não sou tão nova assim, tenho dezoito anos e sou uma excelente forjadora. – Respondeu, um pouco irritada.
– Sério? Mas você nem tem peit...
Antes de terminar a frase, Cannon foi interrompido por um forte soco. O golpe o derrubou no chão, por sobre umas caixas vazias.
– Ai… Calma, eu só estava brincando! – Continuou Cannon, do chão.
Leeno cruzou os braços, virou o rosto, irritada.
– Se veio aqui para me insultar é melhor...
– Eu já disse, foi só uma brincadeira. Você bate muito forte para uma menina... – Interrompeu, enquanto ficava novamente de pé.
A garota tinha o temperamento tão forte quanto o seu soco.
– Posso dar uma olhada no que estava fazendo?
– Run! Sua sorte é que eu já terminei... – Respondeu, ainda enraivecida.
Os dois foram em direção à bigorna, onde repousava uma bela espada de lâmina vermelha, muito bem trabalhada. Uma alta temperatura inundava o ambiente.
– Parece realmente uma excelente obra prima. Posso segurá-la?
– Sinta-se a vontade, ela é pelo menos bronze quatro.
As espadas eram divididas, pelos forjadores, em seis níveis: ferro, bronze, prata, ouro, platina e diamante; com cinco subníveis cada. A classificação começava com ferro I e terminava em diamante V.
Ao tocar a espada, Cannon pôde sentir o metal queimar sua mão, como se estivesse segurando em brasas.
– Que droga! Isso aqui está pegando fogo! – Reclamou, largando o artefato. – Podia ter me avisado para esperar esfriar!
A garota riu, maldosamente, em seguida respondeu:
– Uma arma feita com pedra de fogo nunca esfria. Não se for bem forjada.
Cannon reparou em seu rosto enquanto ouvia sua explicação. toda aquela raiva inicial havia desaparecido e ela agora esbanjava um alegre e satisfeito sorriso. Era definitivamente uma garota interessante. Só podia ser mesmo filha de Ramon. – Pensou.
Ele voltou então a empunhar a espada, levantando-a para admirar seu brilho e detalhes.
– Que tal “Ignição”? – Sugeriu Cannon, colocando-a novamente sobre a bigorna.
– “Ignição”... Parece um bom nome para ela. – Concordou. – Como a sua se chama?
– Transgressora. – Cannon sacou sua espada e a entregou para que a garota a examinasse. – Pegue, imagino que esteja curiosa para ver de perto.
Os olhos de Leeno brilharam com a oferta. Ela ficou empolgada, observando cada detalhe daquela espada: sua lâmina de um negro fosco, suas marcações, peso e acabamento. Ela sempre teve muito mais jeito com armas do que com pessoas.
– É inacreditável o peso dela, deve ter levado uma grande quantidade de obsidiana na sua composição. De cara eu diria que é uma prata I – Comentou, enquanto alisava o gume. – Estranho. Eu conheço o trabalho de quase todos os bons ferreiros da Ilha, isso não parece obra de nenhum deles.
– É a minha companheira inseparável. Tem um valor mais do que familiar, para mim. – Disse Cannon com um ar nostálgico.
A conversa foi bruscamente interrompida por uma explosão do lado de fora da oficina. Cannon pegou sua espada e virou-se em direção a porta. Dois golpes violentos a derrubaram. Um homem de armadura e espada vermelha, com detalhes pretos, surge da escuridão e entra na sala.
– Sabia que iria encontrá-la aqui, Leeno, meu amor! Você me disse que eu não era bom o bastante, mas eu vim lhe provar o contrário! – Disse o homem gesticulando, visivelmente alterado. – Gastei parte da fortuna do meu pai para comprar, no mercado negro, quantas pedras de fogo fossem necessárias para fabricar a minha armadura. Eu a forjei com minhas próprias mãos, agora podemos nos casar!
O homem se chamava Peter Green, ele era obcecado pela Leeno desde que a viu pela primeira vez na cidade. Desde esse dia ele vem tentando, incessantemente, de tudo para conseguir se casar com ela, que sempre o rejeitava. Peter apontou sua espada em direção a Cannon.
– Quem é esse sujeito aqui?! Que traição é essa?! – Continuou o homem de armadura.
– Leeno, rápido, fique atrás de mim, eu vou acabar com esse maluco! – Ordenou Cannon empolgado com um pouco de ação.
Enquanto os dois discutiam, Leeno surgiu na frente de Peter e desferiu um poderoso golpe de martelo em seu peitoral. O golpe o jogou com força contra a parede. A armadura brilhante que ele usava, começou a trincar e se desfez em pedaços. O jovem apaixonado soltou a espada que segurava e caiu de joelhos no chão, com as mãos no rosto. Cannon caminhou até ele e apanhou um dos fragmentos de sua armadura.
– Está fria. – Disse Cannon, jogando o pedaço novamente no chão. – não foi bem forjada.
Peter se levantou correndo e gritando inconformado pelas ruas e becos da cidade, onde sua voz ecoou até não poder ser mais ouvida. Leeno caminhou até o lado de fora da oficina. Os fogos já haviam cessado, mas o céu estrelado fazia sua própria iluminação naquela noite tão escura. Uma brisa suave massageou seu rosto, era um verdadeiro alívio sentir aquele frescor após horas trancadas no calor daquela sala.
– Os dias aqui são sempre tão calmos. Fico feliz em ter um pouco de animação, só para variar. – Disse Leeno virando-se para trás.
Cannon havia sumido. Ela sorriu e entrou novamente no recinto.
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