Capítulo 12 – O Sacrifício
— Que sensação estranha... — Kagome comentou, enquanto ela e os amigos caminhavam pela floresta.
— O que é, tem algum fragmento da joia aqui por perto? — Inuyasha perguntou empolgado.
— Não, não é nada relacionado à Joia de Quatro Almas, mas... — pousou uma mão ao rosto, pensativa.
— Kagome, o que foi? Você tá esquisita... — Shippou mirou-a em ares de preocupação.
— Eu sinto alguma coisa também. — o monge, habituado a lidar com energias espirituais, fixava o olhar ao longe — Vejam. — apontou o solo à frente coberto por uma fina camada de névoa — Alguma atividade sobrenatural está acontecendo aqui por perto.
— Sinto uma aura forte, não consigo decifrar se boa ou má. Quase posso ver a sua luz... — a adolescente caminhou, calma, atraída pela energia mística.
— Kagome, espere, cuidado! — Sango advertiu.
Inuyasha, afoito, saltou até a menina e a acompanhou atento se havia algum perigo ao redor. Quando deram por si, viam-se em frente a uma árvore possivelmente milenar, diferente de toda a flora presente. Os longos cipós desciam feito longos cabelos esverdeados.
...
— Veja, fiz para você. — Ailyn aproximou-se de Annabelle, nas mãos carregava uma guirlanda de rosas brancas e rosadas trançadas — Lembra de como nos divertíamos fazendo essas coisas?
O corpo, despido, emergiu de uma banheira arredondada, feita em toras de madeira. A dona dos cabelos de ouro auxiliou a dos cabelos de cobre a sair, tirou algumas pétalas pregadas na pele alva após o banho aromático, e, por fim, cobriu-a com o manto claro, antes jazido sobre a pedra.
— Estou pronta. — Annabelle anunciou conformada.
...
— Vocês viram a lua?! — Shippou sobressaltou-se e apontou o astro escondido por trás das largas folhas da árvore antiga — Tá vermelha! — arrepiado, embolou-se dentro dos braços de Kagome.
Miroku tocou o tronco robusto. Algo vibrava ali dentro.
— Há um portal aqui, e está fechado agora. — o monge anunciou.
— Um portal?! — o meio-youkai, confuso, entortou a cabeça para o lado.
— A energia estranha que sinto está do outro lado... mas o que será? — a viajante de uma era distante, apreensiva, tocou o ouvido à madeira e fechou os olhos. Jurava ouvir vozes além.
...
— Deite-se. — Ailyn indicou a rocha grande, lisa e retangular.
Annabelle desfilou graciosamente, a barra da mortalha arrastou-se pela terra molhada e a relva baixa. Antes de sentar, baixou a cabeça para que a irmã enfeitasse seus cabelos com a coroa florida e perfumada. Quando deitou, pétalas brancas choveram sobre si. Ailyn as tinha em uma cesta e as jogou sobre o corpo da outra ocidental jazida de barriga para cima, com as mãos sobre o ventre.
— Estique os braços sobre a pedra. — disse, enquanto escondia os fios áureos debaixo de um capuz largo e negro.
Annabelle, um pouco palpitante a essa altura, seguiu a ordem e mirou o céu ornamentado por uma Lua de Sangue.
— Abra a boca. — mais uma orientação atendida de imediato.
Os lábios rosados abriram-se tímidos, um líquido amargo desceu goela abaixo. Annabelle apertou as pálpebras e os cílios estremeceram.
— Não se preocupe, você vai dormir, não sentirá nada. — a mão gelada afagou a face da ruivinha entorpecida.
Os braços e pernas pesavam tanto! Ainda que quisesse levantar, não conseguiria. Entreabriu os olhos e o mundo ao redor girava. Os vagalumes converteram-se de pontinhos luminosos a desenhos de formas arredondadas, a espirais, a dialetos antigos.
...
— Inuyasha, algo de muito ruim vai acontecer! Precisamos entrar ali! — Kagome exclamou repentinamente. A mão sobre o peito tentava conter os batuques do coração. A lasca arredondada pendurada ao pescoço brilhou rosada.
— Oh, a Joia de Quatro Almas! Ela está... — antes de Sango completar a fala, a árvore estremeceu, derramando folhagem e pedaços de galhos.
A terra tremeu e o tempo parou por alguns segundos.
— Ai, Kagome! — Shippou abraçou-se estoicamente à menina e ela o segurou com firmeza, encolhidos na tentativa de se proteger.
—Vejam! — os olhos de Miroku refletiram a passagem branca a se abrir através do tronco espesso.
...
Os dentes unidos e claros desvelaram-se por trás do vermelho dos lábios em um sorriso ganancioso, seguido de uma gargalhada incontrolável. Ailyn contemplou o invólucro alabastrino de sua consanguínea, abriu a capa negra e do decote avermelhado puxou uma lâmina pequena, porém longa o suficiente para cravar o coração de alguém.
...
A lua nas mãos de Naraku oscilou de opaca a reluzente e esquentou sua palma. Os orbes rubros como a lua daquela noite contemplaram a jovem loura erguer os braços para cima e apontar o fio da arma ao peito de Annabelle. Algo dentro de si causou um rebuliço em seu baixo ventre. O hanyou aranha sentiu o frio percorrê-lo como se fizesse voltas na pélvis. Ficou tonto e gelado. O que era aquilo?!
Queria o poder de Annabelle.
Queria o corpo de Annabelle.
Se Annabelle fosse morta, Naraku perderia a chance de fazê-la sua serviçal e de, quem sabe, absorver suas habilidades.
Não, somente ele poderia decidir se a forasteira viveria ou morreria, e não alguém de fora! O aracnídeo se levantou as pressas, vestiu por cima de seu nobre quimono arroxeado a conhecida pele branca de babuíno e cobriu a face com a máscara. Os dedos se fecharam sobre o cristal e algo que ele chamaria de "intuição" o mandou desejar estar no lugar onde o ritual se concretizava.
Fechou lentamente os olhos e todos os seus contornos branquearam até ele sumir em lampejos.
...
Um nevoeiro obscuro, carregado de energia maligna cobriu o astro escarlate e esférico. O punhal dantes escurecido voltou à cor normal e Ailyn pareceu atordoada. Ao mesmo tempo, passos de pessoas correndo atraíram sua atenção e ela se virou para trás.
— Ei, o que pensa que está fazendo, garota?! — Inuyasha estava à frente de seus amigos. O meio-youkai percebeu as intenções da irmã de Annabelle e rosnou — O que aconteceu com ela?!
— Não se meta! — Ailyn rosnou, apertando o cabo da adaga em mãos. Estava surpresa por outras pessoas terem encontrado seu paradeiro.
— Sinto o cheiro do Naraku, ele deve ter alguma coisa a ver com isso! — os olhos doirados fitaram os companheiros demonstrando certa preocupação.
— O que é isso?! — Sango sentiu algo enredar-lhe pelas costas. Era uma sombra sem forma específica.
Ailyn abaixara-se e seus dedos fincaram-se ao solo. Da terra, uma névoa negra surgiu e tomou várias formas. Os vultos cercaram o grupo, Inuyasha empunhou a Tessaiga e começou a cortá-los, Miroku acertou-os com seu bastão e Sango desferiu golpes com o Osso Voador. A fumaça se dissipava e novamente se integrava, formando seres desconexos e lamentosos, ávidos por novas vítimas.
— São almas perturbadas! — Miroku percebeu — Não adianta atingirmos essas coisas, elas não são materiais!
— Eu sei o que fazer! — Kagome disse confiante, colocou Shippou no chão, preparou-se para puxar seu arco e...
— Naraku, seu maldito! — Inuyasha vociferou ao ver o rival pairar elegantemente, atravessando a névoa que ele próprio causou e pousar diante à bela criatura adormecida.
— Sentiu a minha falta, Inuyasha? Hu, hu, hu. — o riso desenhou-se por baixo da máscara.
— Você... — Ailyn surpreendeu-se com a presença do hanyou.
— Muito obrigado por distraí-los para mim. — disse o perverso descendente de Onigumo enquanto, calmamente, tomava a jovem desacordada em seus braços —, agora, se me dão licença, eu e Annabelle Rose temos alguns assuntos a tratar.
— Canalha, tire as suas mãos dela! — Kagome deixou de dar atenção às sombras para apontar sua flecha ao babuíno adiante.
Naraku usou Annabelle de escudo, acomodando-a abraçada a si.
— Atire, se tiver coragem. — desafiou.
— Patife! — Sango se condoeu, no entanto os fantasmas de Ailyn resistiam e ainda atacavam, portanto nem ela ou o restante do pequeno grupo conseguiu dar a devida atenção ao arqui-inimigo.
— Solte-a! — Ailyn apontou-lhe o gládio — Ela é minha, temos um trato!
— Lamento informar, mas o seu trato foi rompido. — e com isso, o hanyou foi envolvido por um redemoinho de miasma e alçou voo.
Ailyn, furiosa, quis persegui-lo, mas uma flecha luzente passou de raspão ao lado de seu rosto e provocou pequeno corte. Virou-se de súbito, violenta e preparada para trucidar a menina ousada que quase a acertou. Então, concebeu que o real intuito da seta fora purificar a nuvem púrpura encobrindo todo o pântano. Naraku, propositalmente, deixou seu veneno para trás na intenção de prejudicar a todos ali.
— Precisamos sair daqui! — Sango anunciou. Seu pequeno youkai de estimação aumentou de tamanho e ela, ágil o montou. O monge, também rápido, a acompanhou.
— Você, venha com a gente! — Kagome convidou a irmã de Annabelle apesar de tudo — Esse lugar está se desintegrando!
— Kagome, está maluca?! — Inuyasha reclamou.
O portal reabriu, não pelo poder de Ailyn, e sim através da mística Joia de Quatro Almas, cujo lume refletia no azul dos olhos da outra escocesa.
"Eu quero aquilo!" — aspirou ao dar-se conta do tamanho potencial que aquele ignóbil pedaço de vidro tinha.
— Vamos logo! — a menina insistiu, estava segura às costas de seu companheiro.
A mulher jogou o capuz por cima da cabeça, deu um passo adiante e troncos largos desabaram entre ela e o bando. Ailyn foi perdida de vista em meio ao terremoto e ao céu que se desfazia em vermelhidão. Inuyasha saltou longe com Kagome e Shippou às suas costas, seguindo a trajetória de Sango e Miroku montados em Kirara.
...
Respirar era tarefa árdua, o ar parecia denso. Os olhos de Annabelle rolaram por baixo das pálpebras agitadas, os cílios partiram a desentrelaçar os fios e os pequenos céus de verão, turvos, procuraram compreender que ambiente escuro era aquele em que ela se encontrava.
Uma manta pesada e branca a cobria, somente. Ela correu os dedos e sentiu a textura de pelos. Ah! Aquela consistência fofa, a escocesa a sentira certa vez, ao tropeçar sobre a roda de uma carruagem e ter o amparo de certo alguém...
A vista recuperou-se e reconheceu a arquitetura do cômodo. As paredes e o teto, um dia límpidos, escureceram com o mau uso e as condições impostas. Se não fosse por seu dom sobrenatural, o youki presente facilmente a mataria.
Annabelle, enfim, girou lentamente o rosto, adiando até onde pudesse o fatídico reencontro. Naraku estava sentado ao lado de seu leito, sereno, ligeiramente ansioso. Vestia um belo quimono roxo com alguns bordados ostentosos, tinha sobre as pernas cruzadas a máscara de primata, e na mão estendida sobre o joelho o amuleto de lua brilhoso. O olhar carminado, adornado por sombreado gris caía sobre ela, carregado de estranheza. Não demonstrava traço algum de seus sorrisos perniciosos, a boca limitava-se a um risco na vasta palidez mórbida de sua carapaça humana. Os cabelos abundantes escorriam por seus ombros, soltos e sedosos.
Como ele era bonito...
Não, tal encanto não pertencia a ele. Era Hitomi quem ela via, não ele.
Era?
— Isso pertence a você. — o tom grave soou pacato.
Ela, com algum esforço, conseguiu erguer um pouco o corpo e desencostar as costas do tatame. Apoiou-se em um cotovelo ao mesmo tempo em que se ajeitou para manter os seios cobertos pela pele de babuíno. Sentar-se foi um leve martírio, a cabeça rodou. Ainda estava sob efeito da poção de Ailyn. A cabeça pendeu para frente vezes seguidas antes de conseguir controlá-la e mantê-la enlevada, de modo que pudesse continuar a vislumbrar o homem, o monstro, o que quer que ele fosse. A mão, temerosa, encaminhou-se à dele, estática. Pegou o pingente e o trouxe ao peito. A pedra finalmente tornou a brilhar furta-cor.
— Você ia permitir que aquela mulher a matasse. Por quê? — manifestou a curiosidade.
— Por que me salvou? — rebateu com outra pergunta.
— Primeiro, a minha resposta. — mostrou-se irredutível, como sempre.
— Ah... — Annabelle suspirou, dobrou as pernas e abraçou-as, depois escondeu o rosto entre os joelhos. As ondas alaranjadas caíram como cortinas pelos braços, o aroma doce invadiu as narinas apuradas do hanyou.
— Temos todo o tempo do mundo. — pretendeu paciência, os olhos persistiam cravados na humana agora tão vulnerável quanto uma mulher comum. Ele poderia dizimá-la, se quisesse.
Se quisesse.
Como poderia ele não querer?
— Acabe logo com isso. O que está esperando? — na mesma posição, ela se pronunciou.
— Quer encontrar seu Kagewaki no paraíso, não é? — em algum momento Naraku precisava recuperar o tom jocoso e sujo, era sua natureza — É uma pena, Annabelle Rose, ele não está lá...
— Eu quero ficar longe de você. — ergueu o rosto aborrecido — Quero ir para um lugar onde nunca mais tenha que olhar para a sua cara e me lembrar do quão fraca sou. — lânguida, levantou com dificuldade, tão absorta em se afastar da tal criatura que não se preocupou em tentar cobrir a parte de trás do corpo.
Esgueirou-se pela parede a segurar o manto no peito, ouviu os passos desapressados a seguindo, bem como um riso discreto. Antes que chegasse à porta, Naraku estava diante dela, imponente.
— Saia da minha frente... — sussurrou esbaforida.
— Ou o que? Não tem um cavalo para me atropelar, ou forças para me enfrentar agora. — expandiu o sorriso — E eu, graças a você, melhorei das feridas que aquela garota me causou, me sinto forte o suficiente para dar o castigo que você merece.
Annabelle tentou evocar seu poder, e ainda estava temporariamente selado. Tentou jogar seu peso para empurrá-lo, só teve forças para cair nos braços dele. Naraku não a segurou e também não a afastou. Deixou-a lá, a agarrar o tecido macio de suas vestes escuras, a afundar o nariz em seu peito e soprar o ar sôfrego perto de seu pescoço. A pele de babuíno escorregou entre os dois e a humana ficou como veio ao mundo, o único pano que a separava da pele do hanyou era o da roupa dele. O aracnídeo riu, cheio de si.
— Eu queria matar você... — ela confessou, apática.
— Entre na fila. — escarneceu — Quem é aquela mulher?
— É minha irmã gêmea, ela me ajudou a conjurar aquela arma...
— E em troca ofereceu sua vida a ela? — as peças finalmente se encaixaram.
Annabelle silenciou completamente, os dedos desapertaram a bela farda do novo mestre do castelo.
— Como é tola, mulher... — fitando o nada, chafurdado no aroma viciante dos fios acobreados, a criticou risonho — Não completou seu objetivo e mesmo assim abriria mão de sua vida. Que desperdício de um poder tão diferenciado, que poderia ser usado para fazer coisas grandiosas. Essa lua enrolada em seus dedos, não é disso que vem o poder, eu percebi. A coisa está dentro de você. — segurou-lhe os cabelos e forçou-a a erguer a face e encará-lo — A minha proposta permanece, Annabelle Rose. Sirva a mim e eu, Naraku, a faço esquecer de todo o sofrimento passado... — ah, aquele timbre sedutor outra vez, seguido do deslizar das mãos dele pela sua face fria, pelos ombros e costas... certamente, o sujeito desejava desatiná-la, e Annabelle sabia a causa da malícia no sorriso do hanyou. Mais uma vez, o vão entre as pernas dela melava-se diante de uma investida dele.
— Nunca! — a indignação deu a força de que precisava para empurrá-lo longe no fim das contas. A luz branca, fraca, piscou ao redor dela e desapareceu ligeira. Naraku caiu sentado ao corredor, e ela desabou dentro do quarto, ainda assim encontrou fôlego para ralhar: — Apesar de tudo, o amor que eu e Hitomi sentíamos um pelo outro foi concretizado, nós nos entregamos, nós vivemos a plenitude desse sentimento e isso você nunca vai poder tirar de mim! Isso é uma coisa que alguém como você jamais terá na vida!
O vilão gargalhou histericamente, como se ouvira a piada mais engraçada dentre todas. E o riso descontrolado ecoou, longo e vibrante. Ainda a estremecer de rir, Naraku levantou, ajeitou a roupa, olhou-a uma vez mais de cima a baixo, e então pôs a mão sobre a porta, puxando-a para fechá-la.
— Ailyn me encontrará até no fim do mundo, você não vai conseguir me manter aqui para sempre! — ela persistiu a afrontá-lo, até a porta quase o cobrir por completo — Ela virá atrás do que lhe é prometido!
— Então, você deveria me agradecer por estar sob a proteção da minha barreira. A sua vida é minha a partir de agora. — e assim a deixou, com a clareza de que não a deixaria escapar, de que não permitiria que outra pessoa a tomasse — "Esse poder será meu" — ele almejou a habilidade, mas não só. Rememorou vívido o momento em que recebeu a luz dentro de si e experimentou a indescritível sensação, aquela que almejava por ter novamente. — "Ela vai ser minha".
Continua...
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