História Terras selvagens - Ela

Mist passou a manhã inteira vagando, primeiro pelos corredores azuis e lilás da casa e depois, finalmente na parte exterior. Ela tinha que admitir, o lugar era extremamente bonito com seus jardins altos, o verde profundo e as cores cálidas que davam uma atmosfera de paz e tranquilidade.

Que era o completo oposto do que sentia.

Ela mordeu o interior da boca, estava ainda com raiva e chateada, o motivo? Aquele homem era um arrogante, bastardo, idiota, cretino! Ela podia listar ainda um mar de bons palavrões, daqueles que aprendeu com Roi para descrever o que ela estava sentindo por ele. Como ele ousava sequer falar de sua terra natal? De seu pai e amigo que foram presos injustamente?

Tão insolente!

E ainda ela estava com raiva de si mesma pela noite que tiveram. Tinha planejado que tudo não passaria de uma obrigação sua, um ato mecânico e robótico, para consumar o casamento já feito. Mas então, todas as vezes em que ele pediu, sua voz grave e ainda suave, para que ele permitisse, Mist cedia por que ela também queria e, em nenhum momento durante a atividade, sua mente vagou por outro caminho que não fosse desejo e vontade. E mesmo ali, naquele ocasião, tocando seus próprios lábios com a ponta dos dedos, ela podia sentir a força dos beijos trocados, a sensação que era ter seu corpo pesado contra o dela.

Oh deus, o que ela estava pensando? Sentiu o próprio rosto arder com as lembranças do que aconteceu entre os dois.

Ela não era pudica nesse sentido. Mas houve tanta intimidade envolvida que era confuso todos esses sentimentos conflitantes dentro dela.

Havia muito que Mist não sonhava com uma relação tal qual o casamento. Ela sempre se sentia inferior, diferente, não bonita o bastante, não boa o bastante. Sua adolescência fora um complexo de desafios diários em lidar com as meninas da sua tribo. Ela sabia que, como sendo a única menina da tribo até então, tinha dado muito trabalho aos seus pais. Estava sempre suja, sempre descalça, os cabelos rebeldes bagunçados. Comparado com as outras meninas da tribo, Mist era muito, muito inferior. Se houve uma vez que ela tivesse pensado em casamento, foi quando tinha aquela paixonite pelo melhor amigo.

Ela cresceu crendo que sempre seriam só os dois, amigos e depois amantes. Eram tão parecidos, gostavam das mesmas coisas e Roi sempre foi tão absurdamente bonito que ela achava injusto o fato dela não ser bonita também. E assim foi seu coração partido. Roi sempre namorando as outras meninas, as encantadoras, lindas, educadas, sensíveis meninas da tribo, enquanto ela estava ao seu lado a espera que ele a olhasse mais do que uma amiga, mais do que a garota que cresceu ao seu lado. Mas não aconteceu e Mist acabou pensando que, talvez, toda essa coisa de casamento não fosse para ela afinal de contas.

E agora todo esse problema em seus ombros. Como conviver com alguém que é suposto você odiar?

Bem, isso não era ensinado na escola e também, sua mãe e seu pai, nunca suponham que sua filha mais velha acabaria naquela situação, portanto, conselhos não viriam deles. Mas ela não podia ficar ali sentindo pena de si mesma, afinal, seu casamento tinha tido um preço e, agora, ela não iria recuar.

Disposta então a enfrentar sua própria raiva, Mist engoliu todo o orgulho e ressentimento que sentia. E isso levou o dia todo.

Os empregados a procuraram algumas vezes, sempre cautelosos como se ela fosse um animal estranho, mas eram respeitosos e se curvavam, perguntando se ela precisava de algo, se sentia bem ou se desejava tomar alguma refeição. Se sentia tímida com toda essa atenção, mas recusava todas as ofertas. Ela só queria ficar sozinha por um tempo para pôr os pensamentos em ordem.

Depois de algum tempo e o frio e o cansaço aumentando ela decidiu voltar

Logo tomou um lento e demorado banho e decidiu fazer uma refeição apropriada, fazia dias que não comia nada substancial e ela sentia suas forças esgotando-se.

 “senhora? ” Seu devaneio foi interrompido por uma das servas que ela fora apresentada no dia anterior.

“oh, hum, oi?!” se voltou sem jeito para a mulher.

“Senhor Sethendreck está solicitando sua presença”

Oh, Mist então sentiu um arrepio involuntário e por mais que ela quisesse ir na direção oposta, de preferência em direção aos campos livres ao redor, Mist seguiu a mulher até um quarto bastante grande, cheio de livros e poltronas aconchegantes e, ela olhou feliz, uma lareira acesa.

Seth estava conversando com outro servo, mas no momento em que a viu, ele dispensou e voltou sua atenção para Mist indicando uma das poltronas para que ela sentasse. Relutante, ela obedeceu, mas não falou nada, descobriu que sua boca estava travada numa linha fina. A dor da discussão mais cedo ainda retornando enquanto ela encarava a figura estoica que ele era. Mas decidiu que, a fuga de mais cedo não aconteceria novamente. Ela era uma mulher adulta agora e enfrentaria o que quer que ele dissesse de forma madura e segura e não como uma menininha petulante.

“Mist” ele começou ainda de pé, os braços atrás das costas e a encarando seriamente “espero que tenha apreciado as paisagens externas”.

Ela assentiu de sua posição, Seth parecia um pouco relutante e nervoso, algo que ela dificilmente associaria a ele.

“eu-eu gostaria de pedir desculpas pelo que falei durante o desjejum, não era a minha intenção magoar você” ele disse e a pegou completamente de surpresa.

Observando sua figura pouco à vontade, mais ainda tentando dá alguma dignidade ao seu pedido de desculpas Mist sentiu vontade de rir, mas devido a seriedade do momento, ela achou melhor não, ao invés, encarou os próprios pés para não denunciar a formação de um sorriso nos lábios.

Porém, o efeito foi inverso, talvez ele entendeu que ainda estivesse resignada, pois voltou a falar.

“Entendo que o momento não é o mais propício para você, tendo as preocupações com sua casa e estando distante da sua família, então, eu simplesmente sinto muito, por favor, me permita isso”. Ele completou ainda sério.

Seth então esperou pela sua resposta.

Mist respirou fundo e voltou a fita-lo. Mordendo a parte inferior dos lábios enquanto observava o homem desconhecido que havia se casado. Seu objetivo vindo ali era tentar alguma forma de reconciliação para tornar a sua estadia naquelas terras estranhas mais suportável. No entanto, aquele homem tão frio e comedido havia se adiantado e pedido desculpas, mostrando um lado humilde que ela não tinha enxergado antes. Reconhecia que também fora infantil na briga e quaisquer súplicas deveriam ser por ambas as partes.

“Sethendreck... eu” ela começou após tomar uma pausa e organizar seus pensamentos. “eu também gostaria de me desculpar, minha atitude foi imatura, eu não deveria ter saído daquela forma” disse envergonhada.

Por um momento ele pareceu surpreso também. Bom, os dois estavam descobrindo coisas novas um sobre o outro a todo momento.

“certo então... acho que podemos concluir que nos dois não começamos muito bem” Seth respondeu e Mist assentiu, “então, proponho que possamos... bem, recomeçar” ele concluiu e ela pode ver seus olhos azuis na expectativa por ela.

Ela sabia, Seth estava dando a opção a ela, para que escolhesse, de certa forma, qual seria o futuro deles. Estava ela disposta a fazer com que esse casamento, e toda essa loucura desse certo?

“sim” disse em voz alta. Mist não sabia bem onde isso iria andar e talvez nunca se sentisse a vontade com esses costumes estrangeiros ou mesmo com seu marido. Mas ela decidiu que faria tudo ao seu alcance para cumprir os votos do casamento, bem como honrar o nome da sua família e todas as coisas boas que seus pais haviam ensinado.

Ele franziu os lábios e logo esboçou um breve sorriso, como se um peso tivesse saído dele. Seth então se aproximou de onde ela estava sentada e estendeu a mão para ela.

“amigos então?” Perguntou.

Mist levantou e apertou as mãos geladas dele. Castanho e azul se encontraram.

“Amigos” respondeu por fim.