O amor, tão nobre, tão denso, tão intenso, acaba. Rasga a gente por dentro, faz um corte profundo que vai do peito até a virilha, o calor acaba e só resta o frio. O amor se encerra bruscamente, porquê de repente, uma terceira pessoa surgiu ou simplesmente, porque não há mais interesse ou atração, sei lá, vá saber o que interrompe um sentimento, é mistério indecifrável.
– Martha Medeiros.
Point Of View: Lauren Jauregui.
E foi dessa saudade, que vieram as mensagens.
Cheguei ao saguão do prédio de Veronica e parei no meio do mesmo para digitar, porque estava sendo uma tarefa um tanto árdua digitar enquanto andava e, após escrever tudo que queria, enviei e tornei a seguir o trajeto que me levaria até meu carro. Já estava claro e céu em pleno azul.
[Lauren] – Não sei se isso é fisicamente possível, só sei que já estou sentindo sua falta.
Avencei a porta giratória de vidro, que fazia aquele prédio parece uma agência bancária e logo fui atingida pelos tímidos raios solares a me aquecer sutilmente. Parei ali por alguns instantes, apenas para admirar aquele céu tão azul, alheio de nuvens. Essa obra artística, majestosa e de tirar o folego, exposta assim, de graça e livre para todos os públicos, merecia ser contemplada.
Parente a tela de infinito azul, respirei profundamente, enchendo meus pulmões de vida.
E quando ia atravessar a rua para chegar até meu carro, meu celular vibrou.
[Camila Cabello] – Que coincidência, porque eu também estou sentindo a sua...
Sorri feito uma tola ao ler aquilo.
[Lauren] – Quando terei a ilustre honra de ver a senhorita novamente?
[Camila Cabello] – Vai ver agora, se você fizer o favor de olhar para cima.
Confusa, ergui a cabeça e a encontrei sorrindo, debruçada sobre a janela do quarto andar.
***
Quando marcaram seis da manhã, eu estava entrando pelas portas de minha casa. Não sentia sono, muito menos estava cansada. Para falar a verdade, eu estava muito mais disposta agora, do que estaria se tivesse dormido por horas e horas seguidas. Em contrapartida, eu sabia muito bem que, quando toda essa adrenalina passasse, eu estaria ferrada, cochilando pelos cantos.
No entanto, não me importava.
As paredes rodeadas pela quietação dos que ainda dormiam, clareavam-se muito aos poucos, de acordo com que o sol vencia a preguiça e subia mais um pouco no céu. Miami normalmente era bem quente nessas épocas, mas ainda sob os vestígios da primavera, vivendo os meados de junho, o verão até que havia se iniciado bem fresco – o que para mim era ótimo, por motivos de odiar o calor. Nunca entendi muito como as pessoas conseguem viver em paz no calor. Tenho na minha cabeça que o calor seja bom apenas na medida certa, mas esse sol que costuma fazer em Miami não faz bem a ninguém. Outra crítica sobre o calor envolve as vestimentas, que sinceramente são um tormento quando você sente que está à beira de derreter. Por isso prefiro o frio, onde todos se vestem bem, as comidas são melhores, tudo é mais confortável e aconchegante.
Sorrateira como um felino, subi as escadas, rumando em direção ao meu quarto, porque precisava de um bom banho e roupas limpas, afinal, eu tinha que ir trabalhar em algumas horas. Quando girei a maçaneta e a empurrei para dentro, fazendo a porta se abrir, me deparei com o que eu já podia prever que encontraria: Keana acordada, sentada à beira da cama, me esperando entrar.
- Bom dia. – Desejei por puríssima educação.
- Onde esteve? – Ela perguntou no exato momento em que fechei a porta.
- Por aí. – Falei olhando em seus olhos, enquanto desabotoava minha blusa. – Por que?
Keana indignou-se com minha pergunta, mas não quis deixar externar isso. Apesar de eu ter reconhecido em seu rosto os traços de sua revolta. Ela podia omitir o que sentia, mas eu sabia.
- Porque você passou a noite fora, Lauren... – Keana estava se esforçando em soar cordial e amigável, mas como eu a conhecia bem, sentia que ela estava sendo falsa. – Fiquei preocupada.
Achei graça de sua frase final, mas nada falei, apenas sorri sem a menor vontade. Ignorando-a solenemente, fiquei de frente para o guarda-roupa para escolher as roupas que usaria.
- Nós precisamos conversar. – Pronunciou-se outra vez, falando ainda mais baixo.
- Depois, Keana. – Pontuei friamente, somente para cortar de uma vez aquele assunto. Estava bem-humorada demais para ter meus ânimos ceifados por assuntos tão desagradáveis.
E entre nós o silêncio se instalou.
Tendo constatado sua concordância, fui para o banheiro. Acredito, sem medo de ser injusta, que aquele foi, sem dúvidas, o banho mais demorado que já havia tomado em toda vida. E por todo tempo que durou, evitei pensar em coisas negativas, porque sinceramente estava sendo sem comparações sentir toda aquela leveza que me envolvera. Era bom me sentir em paz de novo.
Todavia, eu sabia que teria de enfrentar a fera. E já estava pronta para isso.
Depois de me vestir e estar completamente pronta para mais um dia, saí do banheiro, encontrando-a no mesmo lugar, feito uma estátua de sal. Keana realmente estava começando a me fazer crer que estava arrependida. Porém, não seria seu arrependimento súbito que a privaria de ouvir o que eu falaria. E, honestamente, eu tinha muita coisa a falar. E ela ia ter que me escutar.
- Olha, eu vou ser bem sincera com você... – Comecei a falar, ficando de frente para ela. Seus olhos se ergueram para encontrar os meus. E como ela não disse nada, eu continuei. – Eu não gosto de gente mesquinha. Tenho nojo desse tipo de atitude. Então, pelo bem desse casamento, eu peço que, enquanto estiver comigo, não ouse repetir uma cena como a de ontem. Aquilo foi vergonhoso! Não é esse o tipo de exemplo que eu quero que você dê para minha filha.
Apesar de estar sendo muito ríspida, meu tom de voz era baixo, quase sussurrado. Eu estava parada a sua frente, de braços cruzados, olhando dentro de seus olhos. Ela prestando atenção em tudo que eu dizia, acuada e calada feito uma criança que está levando bronca da mãe.
- Outra coisa: – Prossegui, aproveitando-me do seu silêncio. – Eu vou sim pagar o colégio da amiga de Lucy. E não me importa se você aprova a ideia ou não. O dinheiro é meu e eu gasto da forma que bem entendo. Se você não tem humildade nesse seu coração, é problema único seu. Não me inclua nesse seu egoísmo, nessa sua prepotência. Não me iguale a você, primeiro porque somos muito diferentes. Segundo que, se eu fosse você, teria vergonha de ser assim. Não é nada bonito ser feio por dentro. E por fim, eu não quero mais ouvir sobre esse assunto. Caso encerrado.
- Mas, Lauren...
- Não existe “mas”, Keana. – A interrompi grosseiramente. – Caso encerrado.
Rezei silenciosamente para que ela não debatesse, porque não estava sentindo boas vibrações ao meu redor. Depois do que senti na noite anterior, temia muito me estressar com ela.
- As coisas não são assim, Lauren Jauregui. – Seu timbre se elevou ligeiramente.
Não sei se vocês já sentiram isso, mas vou descrever com detalhes o que me aconteceu: Quando sua voz adentrou meus tímpanos e se rebateu por dentro de minhas paredes cranianas, senti meu corpo ser envolvido por um calor descomunal, como se um manto fosse posto em meus ombros. Dei um passo à frente e me inclinei, proporcionando uma proximidade perigosa entre nossos rostos. Naquele instante, senti meu coração bater raivoso, da mesma forma que pulsara na noite anterior. O sangue começou a arder em minhas veias e o ar vertendo em lufadas picadas. Nos meus pensamentos, coisas terríveis se passavam. E eu estava começando a ficar preocupada.
Se ontem só me restavam algumas gotas de paciência, agora, eu assistia o evaporar delas.
- Faça o favor de falar baixo, porque a minha filha está dormindo e eu não quero que ela seja acordada por você fazendo escândalo. – Rosnando feito um rottweiler, as palavras saiam de mim lentamente. – As coisas, daqui por diante, vão ser do jeito que eu quiser, goste você ou não.
- Você tem certeza disso? – Keana ficou de pé e estufou seu peito em desafio. Ocorria um duelo feroz entre nossas retinas; estávamos tão próximas que eu podia escutar seu coração pulsar.
“A raiva é uma víbora enroscada na árvore, esperando a hora de atacar; é a que te induz a comer o fruto proibido, a que te ludibria a fazer o que não presta. Tenha muito cuidado com a raiva”, ouvi meu pai falar em meus pensamentos, e por isso, achei melhor me afastar logo dela.
- Sim. – Pontuando isso, lhe dei as costas e segui em direção a porta.
Entretanto, ela agiu rápido e segurou em meu braço, fazendo-me congelar os passos.
- Não ouse me dar as costas, Lauren.
Antes de agir, Keana certamente não calculou que fosse essa a hora do pavio chegar ao fim e a bomba explodir. Todavia, cada ação corresponde a uma reação. E a minha foi das piores.
Eu perdi a cabeça.
No que ela segurou meu braço, meu corpo foi tomado por uma força desconhecida, talvez de outro mundo. Talvez do inferno. Tal força essa que me fez voltar em sua direção e, não tendo mais controle dos meus atos, vi meus dedos se fecharem grosseiramente ao redor do seu maxilar. Segurando-a pelo rosto, puxei-a para perto de mim, somente para olhá-la de perto enquanto dizia:
- Ouse encostar em mim novamente e eu te arrebento.
A vi engolir seco e me senti bem com isso. Ela tinha seus olhos bem abertos devido ao susto e ao medo, mas ainda assim não quis ficar por baixo. Mesmo intimidada, ela quis replicar.
- É mesmo meritíssima? – Seu timbre tão venenoso, por pouco não me assustou. Keana parecia uma serpente sibilando ferozes palavras humanas. E como ponto auge de sua provocação, parecendo determinada a me fazer perder totalmente a sanidade, ela bateu teatralmente em seu rosto para rosnar logo em seguida, com um sorriso perverso nos lábios: – Então me bate, Lauren!
Respirei profundamente, tentando acalmar o diabo que me instigava a fazer o pior.
- Não me provoca, Keana. – Praticamente implorei, ciente de que aquilo não ia prestar.
- Se não tem coragem, me solte logo! – Vociferou ela, enfurecida. Seus olhos enérgicos violavam as leis da física, lançando verdadeiras ondas elétricas em minha direção. Ela estava vermelha, da cor da luxúria, da cor da raiva, da cor de tudo que é perigoso, assustador e destrutivo.
Meneei negativamente com a cabeça, indicando que eu não a soltaria.
- Lauren, se você não me soltar, eu vou gritar! – Advertiu, achando que ia me intimidar.
- Gritar? – Trouxe seu rosto para bem perto do meu ao perguntar. Estava sentindo satisfatório demais tê-la ali, sob meu controle. – Por que, se eu ainda não te dei motivos para isso?
- Lauren! Me solta!
Sorri escarnecendo de sua fraqueza, quando ao se contorcer, tentando se livrar do aperto proporcionado por meus dedos em seu maxilar, ela não obteve sucesso algum. De repente, a rainha das intrigas, a tão poderosa Keana, estava imobilizada, tendo apenas sua língua de víboras como defesa. Sempre soube que era mais forte que ela, mas nunca pensei em usar minha força como defesa. Mas só até aquele instante. Só até descobrir que usando minha força eu a venceria.
- Eu estou cansada dos seus escândalos. Cansada das suas grosserias. Cansada de você.
Os cães infernais choramingariam de medo caso se deparassem com meus rosnados naquele instante. Ao mesmo tempo em que soltei as palavras, dei longos passos para frente, só parando quando suas costas colidiram levemente contra a parede fria. E conforme as palavras posteriores foram sendo pronunciadas na tonalidade que só o diabo usa, meus dedos foram se fechando mais e mais, apertando com ainda mais força. Aquilo certamente deixaria marcas nela.
- Eu fiz de tudo por você. Fiz de tudo para ser uma ótima esposa, para ser o melhor para você, para te dar o melhor. Mas parece que todos os meus esforços foram em vão, que lutei atoa. Então, talvez eu deva começar a ser um monstro que te maltrata, te bate e te deixa cheia de cicatrizes, porque talvez assim, você me ama novamente. Ou talvez eu deva te deixar de uma vez.
“Muito cuidado com a raiva”, eu escutava a voz do meu pai se repetir dentro de meus pensamentos incinerados pela ojeriza. “Tudo que por ela tem início, em desgraça tem seu fim”.
Todavia, por mais que sua voz berrasse a verdade dentro de mim, eu simplesmente não conseguia voltar a habitar em meu corpo. Uma vez tendo aberto passagem para a ira – que antes sempre esteve contida e escondida dentro de mim, esperando a hora de atacar –, agora eu simplesmente não tinha mais controle de mim. Perdendo a cabeça, lá se foram os meus princípios.
- Lauren... – Keana folegou, derramando algumas lágrimas. – Você está me machucando.
- É mesmo, Keana? – Gargalhei teatralmente, forçando seu corpo mais contra a parede. – E nas vezes suas palavras me machucaram, você pensou na dor que eu senti? Você não parecia se importar comigo nas vezes que me insultou verbalmente, então, porque eu deveria me importar com a dor que você está sentindo agora, quando você vem me ferindo há tempos com suas brigas?
- Me solta...por favor... – Suas mãos vieram de encontro a minha, usando de todas as forças que tinha para desfazer aquele aperto. O que claramente foi em vão. – Lauren, me solta...
Num mesclado de medo e dor, os olhos castanhos de Keana estavam prestes a saltar de suas órbitas e derramavam grossas lágrimas. Em anos de casamento, esse estava sendo o primeiro momento em que eu me dava conta do quanto ela era menor e mais fraca que eu. Ela estava parecendo uma criança indefesa perante a força que eu exercia sobre ela usando apenas uma mão.
A balburdia que acontecia dentro de mim era tão grande, que eu sequer estava sabendo distinguir exatamente o que estava sentindo. Sabia que estava com raiva – e muita –, mas também sabia que não era só isso. A sensação que eu tinha era de que havia uma faca de aço cravada em minha traqueia, me impossibilitando de respirar, fazendo-me sangrar. E eu sangraria até a morte.
De súbito, um estalo me ocorreu, trazendo-me a consciência de volta ao corpo.
Quando me dei conta do que estava fazendo, senti vergonha. Que direito tinha eu, de violar sua pele dessa forma? A que nível de tirania me deixei levar ao ponto de cometer esse ato? Fiz todas as palavras dos meus pais perderem o valor quando, sendo uma cretina, quase a agredi. E, de todos os monstros que um dia enjaulei e jurei nunca me igualar, naquele momento, fui pior.
Afrouxei meus dedos e me afastei o máximo que pude dela. Respirando irregularmente, meu peito subia e descia rapidamente, assim como o dela. O que nos diferenciava era o fato de que, no meu caso era a raiva que fazia meus pulmões trabalharem em dobro, e no dela, era medo. Eu desconhecia minha própria força, minha própria raiva. E, honestamente preferia ter morrido sem conhecer esse lado desumano e tirânico que habitava silenciosamente dentro do meu coração.
No outro extremo do quarto, perto da janela, fiquei imóvel, tentando me sentir novamente.
O silêncio entre nós era tão sombrio quanto a escuridão que rondava o nosso quarto. A luz do sol parecia ter evitado aquela direção, temendo ser testemunha de mais uma desgraça diária.
Mantendo a distância segura, imposta por mim quando me afastei, nossos olhos quiseram se encontrar. Qualquer ser de impaciência suprema não aguentaria esperar pelo encontro de nossas retinas, que demorou segundos a acontecer, mas aconteceu. Não era para termos chego a esse ponto, mas estava na hora de reverter logo essa nossa situação. Ela me direcionou seus olhos castanhos cheios de lágrimas, e eu abrandei minhas chamas raivosas para mostrar arrependimento.
Hasteei a bandeira de trégua, porque era o correto a se fazer e, parecendo também disposta a findar aquela briga – que não era nem para ter começado –, mesmo temerosa, ela se aproximou.
Eu costumava ver Keana como meu porto seguro, o lugar onde minha alma encontrava repouso. Eu a venerava não só por ela ser minha esposa, mas porque ela parecia ter sido feita sob metidas para mim. Ela tinha o dom de acalmar meu coração e só de me olhar, eu já me sentia a pessoa mais amada do mundo todo. Keana era a criatura por trás de todas as minhas grandes conquistas, porque era ela minha motivadora, sempre me incentivando a nunca desistir dos meus sonhos. Lembro-me de como era bom vê-la sorrindo, do quanto me sentia em paz escondida em seus braços. E, repentinamente, parecia que meu próprio refúgio estava a me rejeitar. Sua inesperada mudança de atitude me deixou perdida, correndo em círculos, sem saber para onde ir.
Senti que precisava chorar, mas não conseguia. Tinha tanta coisa entalada em mim, mas nada conseguia expressar. Estava vivendo um realístico congestionamento sentimental. Foi então que, parecendo ter entendido o conflito em que me encontrava, inesperadamente, ela me abraçou.
Ela havia me enlaçado pelo pescoço e sua cabeça repousou em meu peito. Demorei a reagir, mas não tardei em me agarrar ao seu corpo. Meus braços rodearam seu tronco, fazendo-me sentir o quanto ela era delicada e pequena. Miserável era uma palavra leve para definir como me senti ao me dar conta que, por muito pouco, eu não tinha machucado de verdade essa mulher.
Senti seu perfume me invadir de forma estranha. Ao mesmo tempo que seu cheiro parecia unguento para minha carne que havia sido dilacerada pela culpa, também era corrosão a me doer. Ao que minhas mãos invadiram sua blusa, permitindo meu tato de sentir a textura da pele tão delicada e macia de suas costas, me senti uma verdadeira fera de aparência assustadora e dentes afiados, que havia tido a crueldade de ousar machucá-la. O remorso me esfaqueava a sangue frio.
A muralha de pedra, erguida em areia movediça, desabou sem alarde algum e foi engolida pelo próprio solo que a mantinha de pé. Minhas lágrimas, que pelos olhos escorriam calmamente, dentro de mim pareciam mover o furacão que tornara a tempestade interna ainda mais destrutiva.
Eu, que antes me sentia em paz em seus braços, experimentava agora aperto desesperador do fim. Parecia uma despedida, que havíamos chegado ao fim da linha, depois de anos juntas. E pensar nisso foi o que me fez – literalmente – entrar em pânico. Se antes eu chorava silenciosamente, agora, a tempestade havia eclodido e trovoava os soluços da dor por mim sentida.
Keana segurou meu rosto entre suas mãos quentes e me forçou a olhar em seus olhos. Eu estava com muita vergonha de olhá-la, mas o fiz porque ela parecia ter algo muito importante a me dizer. E, foram segundos quase eternos de olhares que falavam mais do que todas as palavras do mundo têm a capacidade de expressar, até que ela decidiu finalmente se manifestar. Mas para minha surpresa, não foi com palavras sonoras, e sim, com seus lábios vindo de encontro aos meus.
Sua atitude, que deveria em mim ter agido como cura, na verdade me causou repúdio.
Abominável quanto os crimes mais hediondos e pérfidos, era como soava aquela união. Sentia-me nadando em uma poça de lama, me sujando mais e mais a cada fragmento de olhar, a cada instante em que deslizava minhas mãos sobre sua pele. Aquilo ao mesmo tempo que parecia bom, faziam-me sentir repulsiva, porque estávamos descontando nossas frustrações uma na outra, de uma forma que aos olhos dos homens, parecia ser inofensiva e era vista como “fazer as pazes”.
Se eu deveria ter me sentido em paz, certamente algo deu muito errado nesse percurso, tanto é que houveram apenas lágrimas antes, durante e depois. Quando acabou e ela se deitou ao meu lado, senti meu coração ser devastado por um furacão, que saiu carregando tudo de bom que havia em mim; senti que havia sido violada com meu consentimento; me senti imunda e asquerosa. Aquilo havia sido um erro, nós sabíamos, mas nenhuma fez questão de evitar o crime.
***
Atordoada, foi assim que eu estive por todo o café da manhã. E foi esse estado de espírito que me fez ficar um tanto abismada com a capacidade que Keana tinha de fingir que nada estava acontecendo. Assim que sentamos a mesa, ela tratou de se desculpar com nossa filha pelo ocorrido na noite anterior e logo as duas engataram em assuntos aleatórios, que não fiz questão de escutar.
Quem nos visse ali, até acreditaria que éramos uma família feliz e equilibrada.
Estava tão enjoada, que foi um verdadeiro duelo de titãs engolir minha torrada com geleia. Se falei cinco frases durante todo o café, foi muito. A cada palavra pronunciada, era um órgão que eu comprimia com todas as minhas forças tentando não vomitar. Meu estomago dava voltas e eu estava – literalmente – febril; tanto que ao trocar de roupa, vesti dois moletons bem grossos.
Se antes de chegar em casa eu estava leve feito uma pluma, meu espírito agora pesava toneladas. Sou capaz de afirmar que existia uma nuvem tempestiva pairando sobre minha cabeça.
Como tinha previsto, já que Keana não havia tido tempo para se maquiar, a marca da ponta dos meus dedos em seu rosto não passou despercebida por nossa filha. Entretanto, Lucy foi muito discreta, fez questão de abstrair e fingir que não havia reparado; até porque a mensagem que ela havia enviado para o meu celular tinha sido clara, nós duas conversaríamos sobre tal fato.
Até cogitei levar minha filha até o colégio, como Keana havia pedido, mas depois da mesma ver minha temperatura e contatar que eu estava quase que literalmente queimando de febre, essa tarefa ficou para ela. Lucy, parecendo comovida com meu estado, não criou caso em ser levada pela outra mãe – o que normalmente era motivo forte para uma terceira guerra mundial.
- Você vai ficar bem sozinha? – Keana perguntou, pondo a mão no meu ombro.
Eu estava sentada em nossa cama, encarando o chão como quem assiste um filme de ficção científica interessantíssimo. E estava tão distraída, perdida em pensamentos sem forma que, quando senti sua mão, dei um pulinho com o susto – tal ato que roubou dela um riso frouxo.
- Sim... – Minha voz se arrastou rouca. – Logo estarei melhor.
Keana me avaliou por completo antes de assentir.
- Seu problema deve ser sono, tente dormir um pouco. – Argumentou já saindo do quarto.
Nada respondi, afinal, eu sabia que meu problema não era esse.
De minha febre até o enjoo, eu tinha total conhecimento de eram reflexos de toda a confusão que eu havia me metido. Era meu corpo avisando que algo estava muito errado comigo. Muitos não acreditam nisso, mas quando nossa mente vai mal, o resto do corpo começa a ir pior ainda. Somos uma engrenagem meticulosamente calculada que, quando algo deixa de funcionar perfeitamente, o resto da engrenagem começa a dar defeito também. E, uma vez que meu psicológico estava literalmente uma bagunça, meu corpo tinha de expressar isso de alguma forma.
Embora eu tivesse engolido a seco minha briga com a Keana e nossa “reconciliação” – que por sinal, estava sendo a causadora da reviravolta em minhas entranhas –, eu não podia simplesmente desconversar e dizer que estava tudo bem. Primeiro, porque seria uma mentira deslavada. Segundo que, bastava olhar para minha cara para saber que alguma coisa estava errada.
Eu estava transpirando remorso.
E por essas questões, fui obrigada a transferir minhas audiências da manhã para a parte da tarde, mesmo sabendo que enfrentaria problemas com meu sono. Mas, como isso era culpa minha, eu encararia a consequência dos meus atos, na mesma audácia que tive ao cometer. Por fim, tendo a manhã livre, esperei Keana sair para trabalhar para ligar para Veronica e pedir que ela visse ao me encontro, pois sentia que estava à beira de um colapso nervoso. Eu precisava desabafar sobre o que havia acontecido, precisava de um conselho e talvez, de um longo sermão.
Em sua espera, deitei em minha cama e liguei a TV.
Por seguidas vezes ponderei a possibilidade de ligar para o meu pai e desabafar sobre que aconteceu, porque dentro de mim, eu sabia que, embora fosse ficar muito decepcionado comigo, ele saberia exatamente o que me aconselhar. Entretanto, deixei para pensar sobre isso mais tarde.
O choro me subia e descia queimando a garganta.
Eu precisava chorar, precisava colocar para fora toda aquela sensação de sujeira e todo aquele remorso. Porém, não estava conseguindo. Por vezes tentei me concentrar, mas não derramei uma lágrima sequer. O choro entalado em minha garganta me estrangulava cruelmente.
- Eu espero que seja algo MUITO importante, Mortícia contrabandeada do Paraguai.
A voz de Veronica surgiu de repente preenchendo meu silêncio, feito o canto dos anjos. Em seguida ouvi a porta da sala ser fechada e seus passos pesados seguindo em direção a escada.
- Aonde você está, cabrita desalmada? Como ousa me tirar da cama tão cedo, desgraça!
Meu estado era crítico, mas isso não me impediu de rir.
- Estou no quarto! – Exclamei elevando algumas oitavas.
Não demorou dois segundos para que ela entrasse em meu quarto.
Ao me encontrar deitada na cama, em posição fetal, Veronica parou e me analisou meticulosamente por alguns instantes. Com as mãos na cintura, ela meneou negativamente com a cabeça, parecendo ter lido meus pensamentos. E com sua aparição, as correntes que prendiam meu choro caíram por terra e, bastou associar sua presença ali, para eu cair em prantos em seguida.
Não me lembro de sentar, mas quando dei por mim, estava recostada na cabeceira, abraçada com meus joelhos, chorando feito uma criança que acabara de cair e ralou o joelho. Em meio aos meus soluços e com muita dificuldade, fui lhe contando o que havia acontecido, desde a noite anterior, até aquela relação de corpos que estava a me causar náuseas apenas em lembrar. Quando consegui findar o desabafo, mantive-me de cabeça baixa, envergonhada com meus atos.
Sequer precisei olhá-la nos olhos para saber que estava furiosa. Como Veronica havia se sentado à beira da cama, bastou observar rapidamente o movimento frenético de suas pernas e ouvir o som pesado de sua respiração para constatar essa evidência. Furiosa era pouco para definir.
O silêncio passeava entre nós, ampliando a tensão que já era grande. As reviravoltas do meu estômago estavam ficando ainda mais intensas devido a ansiedade do que ela poderia dizer.
- Você... – Veronica precisou limpar a garganta para continuar a frase. – Bateu nela?
- Não! – Apressei-me em negar. – Só segurei em seu rosto com força.
- Isso é uma agressão, Lauren. – Ela pontuou, já não tão amigável quanto antes. Depois de respirar profundamente, a conclusão veio sem piedade alguma. – Você agrediu a sua esposa.
- Eu não a agredi, só a segurei e...
- Para de tentar mascarar seu erro, Lauren! – A voz de Veronica veio cortando minhas palavras em um brado furioso, que me fez arregalar os olhos em total espanto. Ela nunca havia usado esse tom comigo. – Você não foi mulher na hora de ser covarde? Seja mulher também na hora de assumir que fez merda. Não basta ter sido covarde uma vez, vai ser pela vida toda agora?
Fechei a cara imediatamente, mesmo estando errada. Ser chamada de covarde, embora minha atitude com Keana tenha me posto nessa condição, não havia me agradado nem um pouco.
- Muito cuidado com o que fala, Veronica.
Minha advertência apesar de grosseira e fria, só teve efeito em fazê-la rir ironicamente.
- Ou o que, Lauren? – Seu olhar ficou sisudo e cheio de sarcasmo. – Vai me bater também?
Engoli seco, incapaz de rebater aquelas palavras.
Veronica tinha seus olhos escuros indo bem fundo nos meus. Suas sobrancelhas unidas em uma carranca séria, transformavam seu semblante em algo sombrio de se olhar. Eu já esperava que essa seria sua reação, mas confesso que não estava pronta para encarar sua fúria, mesmo sabendo que era necessário, uma vez em que eu precisava da sua ajuda para saber como proceder.
O silêncio tomava amplitudes catastróficas até que ela o rasgou sem dó.
- A Lucy viu alguma coisa? – A pergunta de Veronica veio abafada, pois ela estava esfregando seu rosto no mesmo momento. Impaciência e raiva era o que mais sentia em seu tom.
- A marca da ponta dos meus dedos no rosto da Keana. – Respondi em murmúrios.
Era um vexame muito grande falar esse tipo de coisa em voz alta, uma vez em que julguei inúmeros homens por agredirem suas respectivas esposas. De repente, eu me via igualada a eles.
- Ela disse alguma coisa? – Vero tornou a entrevistar-me.
- Disse que conversaríamos depois, mas pareceu não estar muito abalada.
Minhas palavras a fizeram rir, só não entendi porquê.
- Vamos por partes. – Ela começou. – Quer sinceridade ou que eu minta para te agradar?
Nossa amizade era demarcada pela sinceridade, costumávamos ser muito verdadeiras uma com a outra, mesmo que isso pudesse machucar. Porém, como em alguns momentos da vida a verdade se torna inconveniente demais para se escutar quando não se está pronto, havíamos aderido a essa “modalidade” de diálogo, digamos assim, onde optávamos pelo que queríamos ouvir. Quando escolhido “mentira para agradar”, era dito de forma intensamente sarcástica e venenosa. Mas quando a verdade entrava em jogo, sinceramente, preferia ter escolhido a mentira.
- Seja sincera... – Falei, sentindo por antecipação a dor das palavras que ainda não haviam sido pronunciadas. Com efeito, Veronica deu os ombros, como se para dizer: “Boa sorte, querida”.
- Até quando você pretende levar isso adiante, Lauren? – A pergunta veio retórica e suave, mas o pior ainda estava por vir e eu sabia. Veronica tinha o hábito de falar muito baixo quando estava dialogando com muita seriedade sobre algo, e talvez fosse essa sua tonalidade que estivesse me fazendo verter em calafrios. Ou talvez fosse a forma na qual ela estava me olhando. – Será que você não percebe que essa situação já passou dos limites? Ou você está esperando entrar em depressão para resolver? Ou pior, está esperando Lucy ficar doente e em depressão para resolver?
Houve uma pausa, que só aconteceu para ela se ajeitar na cama e sentar sobre suas pernas.
- Outra coisa, meritíssima: – Vi seus olhos soltarem raios ao que ela citou sarcasticamente aquele “adjetivo”. – Não sei se você faltou essas aulas da faculdade, mas agressão não é só encher a cara do outro de porrada. A partir do momento em que você fere a moral e os valores do outro, é agressão. A partir do momento em que você violou a pele dela propositalmente, você a agrediu. E honestamente, eu esperava essa covardia de qualquer pessoa, menos de você.
Socos doeriam menos que suas palavras, mas eu nada ousei dizer.
- Eu estou muito decepcionada com você. – Fechei os olhos por segundos, sentindo meus órgãos serem esmagados por aquela frase tão cruel. – Nunca pensei que veria você baixar tanto seu nível dessa forma... – Veronica começou a falar apressadamente. – Porém, você é grandinha, vai saber digerir isso e vai sair ilesa. Seu nojinho da transa que tiveram vai passar, porque você sabe que é culpa única e inteiramente de vocês. Vocês procuraram isso. Vocês duas enfiaram sei lá aonde os votos que fizeram quando se casaram e agora estão pagando o preço disso. Se está se sentindo suja, é bem feito. Espero que isso te sirva de lição, sua acomodada! Espero que aprenda.
Veronica estava vermelha, a veia no meio de sua testa se sobressaia.
- Eu só não acho justo que vocês duas obriguem a Lucy a conviver com isso. – O despejo de palavras prosseguiu, ainda mais baixo e intimidador que antes. – O egoísmo de vocês está sendo tão grande, que nem mesmo você, que sempre foi sensata, está sendo capaz de perceber o que vocês estão fazendo com a vida dessa garota. – E foi aí que a Veronica perdeu totalmente a compostura e o controle de seu tom de voz. – Acorda para a vida, Lauren! Esse casamento já acabou faz tempo. E não ouse me dizer que ama a Keana, porque isso é mentira e você sabe disso. Tanto é que se sentiu suja por transar com ela. Acorda, antes que você destrua a vida da sua filha.
O ponto final veio e por não ter o que responder, mantive o silêncio.
[...]
Depois de ter sido sincera ao extremo, Veronica se recompôs e voltou a se comportar como minha amiga. O clima ainda era um pouco tenso, mas como ela sabia que eu precisava de tempo para processar tudo que havia sido falado, tentou o máximo possível descontrair os ares. E realmente, assimilar tudo aquilo não foi fácil. A digestão das palavras perdurou por toda a manhã.
Em contrapartida, eu já não me sentia tão pesada e febril como antes. Falar sobre aquele assunto, mesmo que tendo como consequência escutado o que escutei, havia me feito muito bem. Então, já mais tranquila, consegui alimentar adequadamente, e depois nós saímos para resolver algumas pendencias. Existiam algumas coisas que eu precisava fazer nesse dia. Coisas inadiáveis.
Depois de tudo resolvido, nós almoçamos juntas e cada uma seguiu para o seu lado. Na despedida, pedi que ela conversasse com Lucy e tentasse ajuda-la com esse problema, e só quando ela foi embora que me lembrei de um detalhe: Eu havia me esquecido de perguntar sobre Camila.
Mas isso eu faria com calma, porque eu tinha muitas perguntas a fazer sobre o assunto.
Já em meu escritório, eu tomava o milésimo cafezinho daquela tarde, enquanto lia – duelando contra meu sono – o processo de minha próxima audiência. O caso era denso, cheio de entrelinhas, como sempre são os crimes hediondos, então, eu tinha que prestar bastante atenção em tudo que estava lendo, pois até uma vírgula tinha um peso a acrescentar. Porém, a leitura estava sendo uma missão quase impossível para minhas retinas cansadas devido à noite em claro.
Cada piscar de olhos me proporcionava um sonho diferente.
Quando as letras começavam a se embaralhar de novo e minha vista a perder o foco, tive de pausar a leitura para tomar outro café – embora fazer isso já não estivesse obtendo resultados. Sou capaz de acreditar que, àquela altura do campeonato, depois de passar café fresco por mais de duas vezes, 99% do líquido do meu corpo era contido apenas de cafeína. Acho que se eu fizesse um exame de sangue, de minhas veias sairia café bem preto e forte ao invés de sangue vermelho.
No justo e exato momento em que ia retomar a leitura, ouvi batidinhas em minha porta.
- Entra. – Eu disse elevando uma oitava.
- Lauren? – Alessia colocou a cabeça para dentro da porta, lançando-me um olhar um tanto estranho. Olhei-a, deixando as folhas que segurava pousarem sobre a mesa. – Está ocupada?
Ponderei por alguns instantes.
Olhei para as folhas, depois para o meu café.
- Mais ou menos, por que? – Entrelacei minhas mãos sobre a pilha de folhas.
- Tem uma moça aqui... – A secretária hesitou, pois sabia muito bem que eu não atendia ninguém, afinal, o que mais aparecia eram advogados querendo me comprar para ganhar um caso. No entanto, parecendo muito incomodada com algo, prosseguiu. – Ela deseja muito falar contigo.
- Sobre? – Arqueei uma sobrancelha, pronta para dizer não.
Alessia fez menção em falar, seus lábios até mesmo se abriram, mas antes que sua voz tranquila pudesse soar, outro timbre se sobrepôs ao dela, falando firme, porém de forma acanhada.
- Sobre Camila.
Por trás do corpo de minha secretária, surgiu uma mulher de postura simplista e olhar modesto; era baixinha, de cabelos curtos e tingidos de loiro, rosto fino e traços bastante familiares.
Eu a conhecia de vista. Era a funcionária da cafeteria, a que me entornara café.
Espremi meus olhos entre pálpebras, buscando compreender o que a moça da cafeteria tinha a ver com Camila, até que as similaridades em fisionomia se uniram na minha mente retardada pelo sono. E, antes que ela pudesse se apresentar, eu já sabia que era a mãe de Camila.
- Eu sou a mãe dela. – Anunciou a mulher. Como eu já previa. – Precisamos conversar.
O semblante da moça não expressava nada muito além de preocupação e cansaço. Sua voz até se espalhava pelo escritório com resquícios de seriedade, porém, ela não transparecia estar envolvida por nenhum sentimento negativo. Ela apenas estava ali, parada, agarrada em sua bolsa marrom presa ao ombro, ao lado de Alessia, esperando que eu dissesse ou fizesse qualquer coisa.
Limpei a garganta ao mesmo tempo em que respirei fundo; me pus de pé.
- Deixe-nos a sós. – Pedi, olhando diretamente para Alessia.
Alessia retirou-se e fechou a porta.
A moça permaneceu imóvel por um bom tempo, pairando seus olhos pelas paredes e estantes do meu escritório, analisando cada detalhe. Mas, quando voltou a si, manifestou-se logo.
- Eu me chamo Sinuhe. – Se apresentou, estendendo-me sua mãe direita.
- Prazer, senhorita. – Apertei sua mão de forma simples e suave. – Não vou me apresentar, porque sei que já sabe o meu nome. – Ela sorriu discretamente com minha frase. Findando o cumprimento cordial, usei minha mão para indicar a cadeira à minha frente. – Por favor, sente-se.
A mulher de meia idade se acomodou na cadeira, sentando-se encolhida, com as pernas bem juntas, pondo sua bolsa pousada em suas coxas, como se não quisesse ocupar muito espaço. Estava levemente corada ao redor do nariz, fazendo-me perceber de quem Camila havia puxado aquele traço acanhado. Ela não me olhava, seu ponto fixo eram suas mãos pousadas nos joelhos.
Eu tinha mais ou menos a ideia do que lhe havia feito vir até mim. Para falar a verdade, eu tinha dado a ela grandiosos motivos para esse feito. Sabia que meus atos seriam arriscados e poderiam causar repercussão negativa. E, muito embora soubesse de tudo isso, não me arrependia.
Sendo assim, me apressei em quebrar o silêncio.
- Ao que devo a visita? – Indaguei em voz serena. Sinu pareceu despertar de um devaneio, direcionando-me seu olhar vago, entristecido e preocupado. – Aconteceu alguma coisa com ela?
Nesse instante, fui submetida à uma análise meticulosa feita por seus olhos castanhos. Seu olhar foi bem fundo no meu, avançando meu verde sem cerimônias; depois, varreu todo meu rosto, capitou todos meus movimentos respiratórios e expressivos, parando em minhas mãos unidas sobre as folhas, no movimento frenético de vai-e-vem feito por meu indicador. Calada, ela deixou sem saber se estava ponderando o que iria dizer ou se estava apenas tentando me decifrar.
De forma sutil, ela retirou de sua bolsa um envelope pardo e deslizou timidamente até próximo as minhas mãos. O emblema do colégio carimbado em vermelho chamou minha atenção.
Quebrando o entrelaçar de meus dedos, tomei o envelope nas mãos e o abri, puxando a folha branca de dentro dele. Era uma espécie de notificação fiscal, confirmando o pagamento dos seis meses que restavam do ano letivo. Tal pagamento que fora sido efetuado e assinado por mim.
- Por que fez isso? – A voz de Sinuhe saiu baixa, intimidada sabe-se lá pelo quê.
Deixei a folha de lado e a fitei.
- Depende de como deseja encarar minha resposta. – Repliquei.
A mulher suspirou com dificuldade, parecendo exausta.
- Não posso aceitar que faça isso. Pegue seu dinheiro de volta, por favor.
- O que? – Minha voz saiu estridente e meu semblante fechou no mesmo ato. Seria possível acreditar que nuvens negras me cercaram. Recusava-me a crer que havia escutado aquilo.
- É muito dinheiro...não vou ter como te pagar...por favor....
Fechei meus olhos por segundos, sentindo meu rosto arder de raiva.
- Não quero que me pague por nada. – Rebati, ressaltando as tônicas em tom grave.
- As coisas estão difíceis, mas eu já tenho uma solução... – Continuou ela, ignorando totalmente minha irritação e minhas apalavras anteriores. – Já consegui vaga no colégio público.
Respirei fundo, esfregando minha testa, afim de acalmar a raiva que me alfinetava.
Depois de inspirar e expirar por repetidas vezes, estando já um pouco mais calma, tornei a encara-la, encontrando-a a admirar suas mãos, que apertavam seus joelhos. Seus olhos estavam envoltos por olheiras, sua vista cansada e vermelha. E, mesmo que suas palavras tivessem entrando em meus ouvidos como afrontosas blasfêmias, ela transbordava humildade. Discreta em suas vestimentas, simples em seus olhares, fez-me sentir péssima por ter sido um pouco arrogante.
Através de sua visível fragilidade emocional, encontrei o que ela fazia tanta questão de esconder. Entre camadas de acanhamento, exaustão e modéstia, encontrei a tão afamada soberba. Escondida feito uma víbora enrolada num galho árvore, disfarçada na voz baixa e no comportamento esquivo, lá estava ela, transformando uma simples ajuda em algo muito ofensivo.
Tudo bem que não era de sua culpa, afinal, deve ser muito difícil assumir uma derrota assim. No entanto, não era motivo para extremos. Eu apenas havia ajudado Camila a garantir uma boa qualidade em seus estudos, para que tivesse um futuro promissor, e assim, pudesse ajudar sua família. Nada fiz por pena, mas sim porque pensei no quão grande poderia ser o futuro de Camila.
- Eu não vou pegar dinheiro nenhum de volta. – Contra minha vontade, minha voz saiu incisiva. – Camila é uma menina inteligente, esforçada, tem um futuro brilhante pela frente. O que eu fiz não foi nada mais, nada menos, que dar a ela uma chance de crescer tendo bom estudo. Porém, se a senhorita enxerga erro nos meus atos, por favor, me mostre eles, porque eu não vejo.
- Eu deveria custear os estudos da minha filha...eu sou a mãe dela... – Seus olhos turvos de lágrimas em encararam. – Essa é a minha função de mãe e nem disso estou sendo capaz mais.
- Não veja meu ato como algo ofensivo... – Retomei a serenidade em minha voz. – Eu só estou querendo ajudar, porque assim como a senhora está passando agora, eu também passei por muitos momentos difíceis na vida. Eu não tive a sorte de ter alguém para me ajudar, mas isso não significa que eu não possa ser solidária. – Findei sentindo-me aliviada, mesmo sem muito porquê.
E parece que minhas palavras haviam a convencido, pois não houveram mais debates. Por todo o tempo posterior em que Sinuhe esteve em minha sala, conversamos amigavelmente sobre o que ela estava enfrentando e foi muito bom ter melhor conhecimento da situação, porque assim, eu poderia ajuda-la de verdade a vencer tal tribulação.
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