[Micaela]
–Não! Por que EU tenho que fazer isso? – recusei, indignada, pela décima vez seguida desde que minha mãe aparecera ali com uma tigela contendo um bolo feito por ela e insistindo para que eu o levasse aos novos vizinhos.
–Anda, Micaela, vamos ao menos ser simpáticas com eles. – disse e eu bufei, fingindo ignorá-la, prestando atenção á tela do notebook em meu colo.
–Eu já disse que não vou fazer isso e você NÃO vai me obrigar!
Bati na porta do apartamento deles, mordendo o lábio inferior imaginando as possíveis piadas de Ezarel ao ver-me ali, com um pote nos braços e ainda vestindo o pijama: calça comprida de tecido rosa, blusa de manga longa branca com um urso rosado na frente e rodeado de coraçõezinhos. Ser vista daquele jeito seria vergonhoso, minha mãe poderia ao menos ter me deixado mudar a roupa.
Depois de alguns segundos sem resposta insisti outra vez, sendo tomada por um pequeno alívio quando percebi que ninguém atendia.
Sorri como se tivesse vencido algo e estava com a mão na maçaneta da porta de meu apartamento quando a dos meninos é aberta e Valkyon aparece, camisa regata e bermuda estampada como as calças militares, o cabelo prese por um rabo-de-cavalo baixo e pela respiração ofegante eu o interrompi em algum tipo de traino.
Corei e desviei os olhos de sua pele morena exposta, os músculos definidos e os olhos cor de mel que me fitavam curiosos.
–Micaela... O que foi? – ele perguntou e saiu, fechando a porta atrás de si e escorando-se nela.
Limpei a garganta recuperando a compostura e ignorando o constrangimento por estar sendo vista com aquela roupa; estendi o pote para ele.
–Minha mãe, ela... Bem, fez isso e pensou que, sei lá, vocês poderiam gostar e... – deixei a frase morrer no ar, sem saber mais como continua-la e achando que iria explodir de vergonha.
Ele me pareceu pego de surpresa por um tempo também e logo depois aceitou o bolo, parecendo ignorar minha roupa ridícula para a situação. E eu o agradeci por isso.
–Hm, bem, obrigado. – disse e abriu a porta de seu apartamento, ficando um tempo parado a segurando assim – não quer entrar? Vou colocar em algum lugar e te devolvo o pote...
–Ah! Não, não pre... – não completei a fala e ele já tinha entrado, deixando-me para trás.
Fiquei um tempo estagnada onde estava, sem saber ao certo como agir, até que conclui que ir embora seria muita falta de educação e entrei, hesitante, sem conseguir me mover para além de seis passos adentro.
Enquanto Valkyon mexia em algo que tilintava na cozinha, observei atentamente ao meu redor, surpreendendo-me pelo fato de o lugar ser organizado e ainda abrigar três caras com mais de dezesseis anos.
Foi quando notei a falta de Ezarel e suspirei aliviada por não precisar ser alvo de nenhuma piada sua.
A vantagem de se morar em uma estrutura grande com apenas dois apartamentos construídos nela, era que estes eram bem grandes, por isso o espaço para a sala de jantar e estar, e os três quartos... Espiei para o que estava com a porta aberta, revelando um daqueles sacos de pancada pendurado pelo teto usado por lutadores.
–Aqui está. – disse Valkyon de repente á minha frente, sobressaltando-me.
Peguei o pote de volta, agradecendo baixinho, ainda olhando para aquele quarto. Aqui me lembrava da época quando...
Valkyon seguiu meu olhar.
–Você gosta de lutas? - perguntou seguindo meu olhar e senti como se tivesse sido pega bisbilhotando o que não devia.
–Ahn... É, bem, é que e-eu... - parei sem saber mais o que estava dizendo. Não gostava de falar sobre aquele detalhe da minha vida.
Seu olhos se estreitaram sobre mim.
– Você sabe lutar então?
Mordi o lábio inferior contendo um sorriso sem graça.
– Mais ou menos...
Colocou a mão em meu cotovelo e levou-me ate o cômodo. Chegando lá atá esqueci que deveria estar encabulada por entrar onde não deveria.
O saco de pancadas estava lá, assim como uma estante cheia de troféus dos mais diversos tamanhos e títulos; a parede marrom coberta de diplomas enquadrados com nomeações que não consegui ler e várias medalhas do bronze ao dourado.
Cheguei mais perto e fitei um dos prêmios, boquiaberta.
– Esse é o primeiro lugar no Campeonato Juvenil de cinco anos atrás?
Ele se pôs ao meu lado e analisou o objeto dourado com a miniatura de um garoto só de bermuda derrubando outro. O nome de Valkyon gravado na base.
– Assistiu a esse campeonato?
– Se assisti? - falei quase em êxtase - Eu fiz parte da seleção feminina! Então era de você que falavam quando... - me interrompi com seu olhar curioso e surpreso em mim.
– PARTICIPOU?
Corei de novo e retomei a compostura.
–Bem... - mas já estava feito, não tinha mais como mentir - Faz um tempo, sim.
Esperei uma chuva de perguntas, mas tudo que ele fez foi se distanciar alguns passos de costas e meus olhos o acompanharam, curiosos.
– Me mostre como luta. - ele disse, um meio sorriso ameaçando surgir em seus lábios.
Aquilo me pegou de surpresa.
– Como?
Valkyon cruzou os braços.
– Me mostre como lutou nesse campeonato. - ele apontou com o queixo para o prêmio agora atrás de mim, e olhei ora deste ora para o garoto, sem saber ao certo como reagir.
– Já faz muito tem. E-eu nem sei mais como se luta.
Por um segundo ele pareceu desapontado. E aquilo mexeu comigo mais do que deveria. Já desapontei gente demais ate chegar ali, e repetir o mesmo erro...
Bufei irritada comigo mesma por estar sentindo-me assim, mas ao mesmo tempo alguma coisa me dizia que eu queria voltar para aquilo.
– Eu não me lembro, sério. Nem o básico sei mais...
Ele ponderou por alguns instantes e apertei a ponta de meu cabelo comprido, procurando um jeito ou de continuar a conversa ou de me despedir.
– Se ainda tiver interesse posso te ajudar a lembrar.
Parte de mim quase gritou de alegria, mas a outra, que era a dominante, me fez negar freneticamente com a cabeça.
– É serio, obrigada, mas mesmo assim...
Valkyon revirou os olhos e me arrastou pelos ombros até ficar cara a cara com o saco que ele usava para treinar; o revestimento de couro verde escuro desbotado de tanto uso.
Fiquei encarando aquele objeto sem saber o que fazer.
– O que faço? - perguntei por fim.
– Bata nisso dai. - falou como se fosse a coisa mais óbvia e simples do mundo.
Engoli em seco e ergui os punhos, colocando um pé a frente, esforçando-me para lembrar das aulas que tive quando menor. E então bati duas vezes, sentindo os ossos doerem, o equipamento mal saindo do lugar.
Sacudi a mão como se isso fosse afugentar a dor mais depressa e evitei olhar para Valkyon, envergonhada.
–Viu? – falei quando a dor diminuiu – Eu disse que...
Antes que terminasse de repetir aquela frase ele estava com as mãos fortes apertando-me pela cintura, o gesto repentino deixando meu corpo paralisado e submetido á ele que virava-me um pouco para o lado; prostrou-se atrás de mim e seus braços fortes me rodearam, segurando em meus pulsos e erguendo meus braços do jeito certo. Meu rosto imediatamente incendiou-se, assim como o restante de mim.
–Bata no centro, assim. – falou para mim e moveu seu corpo para que o meu o acompanhasse, inclinando o peito sobre minhas costas e levando meus braços para frente, o equipamento recebendo um impacto menos vergonhoso dessa vez; sorri, orgulhosa de mim mesma, mesmo não sendo eu quem tivesse de fato feito aquilo.
–Viu? – falou e afastou-se de mim, cruzando os braços e se apoiando na estante de troféus – Você não é tão ruim, só está... Enferrujada.
Eu ri e ele me acompanhou; por fim apontou para a estatueta que ganhara no Torneio Juvenil e me fitou.
–Não me lembro de você nas finais; em qual nível perdeu?
Todo meu bom humor se esvaiu e desviei o rosto, sem saber como dizer á ele meus problemas da época que me fizeram, na verdade, desistir de muita coisa, incluindo o torneio. Sendo sincera, eu não queria que ele soubesse de nada, e a ideia de mentir estava se tornando difícil para mim ultimamente.
–B-bom... Eu... É... Complicado. – gaguejei, a voz diminuindo um tom a cada palavra e Valkyon percebeu meu desconforto.
–Tudo bem se não quiser me falar. Podemos mudar de assunto.
Sorri agradecida a ele e assenti, a respiração até mais leve agora.
–Mas, - continuou – se ainda tiver interesse, posso te ajudar... – ele apontou para o saco – Você sabe, a te treinar ou algo assim.
Aquilo não deveria me animar, mas o fez. Acho que a ideia de passar uma tarde que não fosse sozinha era o suficiente para me fazer concordar com qualquer coisa.
Alguém pigarreia á porta de repente, atrapalhando o clima leve entre nós, e Nevra estava escorado no batente na porta, fuzilando Valkyon; e então seu olhar incriminador pousou em mim, analisando-me de cima a baixo, parecendo desaprovar minha vestimenta e um leve rubor me tomou as bochechas.
–Espero TER atrapalhado o momento de vocês.
Falou claramente irritado e entrou, puxando-me pelo pulso.
Olhei para Valkyon antes de ser arrastada para fora, este acenando e sorrindo para mim como se aquilo fosse tudo normal. Poderia ser para ele, mas para mim não.
–Pode, por favor, me soltar? – perguntei quando saímos do apartamento, carregando minha voz com o máximo de sarcasmo que conseguia elevar sobre a surpresa.
Nevra me soltou e no mesmo instante fechou a porta com força, vindo até mim antes que eu sequer tivesse tempo para piscar e colocou-me contra a porta do meu apartamento, os braços mais uma vez ao lado de minha cabeça, sua respiração misturando-se com a minha, e meu coração batia tão alto que eu tinha certeza de que Nevra podia ouvi-lo.
– Não tem que ficar sozinha no quarto de outros garotos. – falou para mim e ergui uma sobrancelha, esperando ter deixado claro não estar entendendo nada daquela situação.
–E o que exatamente isso teria a ver com você? – perguntei, engolindo em seco sem gostar da ideia de ter sido ríspida. Nevra fuzilou-me com o olhar, como se fosse culpa minha.
–Não gosto da ideia de vocês ficarem se encontrando num quarto enquanto estou fora. – resmungou entredentes e soltei um gemido de indignação.
Valkyon fora a única pessoa em anos com quem consegui conversar sem sentir vontade de sair correndo para me esconder debaixo das cobertas. E Nevra tentar impedir que eu falasse com ele realmente me tirou a paciência.
–Sinto informar que não sou nada sua a não ser aluna, então, se não for em relação á escola, você não pode se intrometer em nada da minha vida. – meu rosto queimou com minha própria grosseria, mas engoli aquilo, tentando convencer a mim mesma de que ele precisava ouvir aquilo antes que me monopolizasse sem motivo.
O negro de seu olho me encarou surpreso por alguns instantes, mas logo seu sorriso torto pintou-lhe os lábios e o brilho malicioso de seu olhar retornou. Como um predador brincando com sua presa.
Essa semelhança me fez engolir em seco.
Ele pareceu tirar o resto de distância que havia entre nossos rostos, fechei os olhos com força sem saber ao certo o que ele faria. Logo ele estava em meu ouvido, rindo baixinho.
–Vou te dar um conselho – murmurou e movi a mão procurando a maçaneta da porta quando uma de suas mãos saiu de perto de minha cabeça e desceu de leve pela lateral de meu braço, pousando em minha cintura -, não abaixe mais sua guarda depois de hoje.
Um calor percorreu meu corpo com seu hálito quente roçando meu ouvido e finalmente havia achado o metal frio da maçaneta, a girando. Ele deve ter percebido e se afastou de mim, deixando-me entrar, sorrindo abertamente.
A última coisa que vi antes de bater a porta foi seu sorriso, perigoso e encantador.
[Valkyon]
Encarei aqueles prêmios sobre a estante quando ela foi embora, atirando um deles na lixeira ao lado.
Eram todos falsos, conseguidos em qualquer lugar por Ezarel e mais alguns de sua guarda para que pudéssemos nos disfarçar devidamente naquele mundo.
–Você viu, não viu? - Nevra perguntou de repente á porta.
Peguei o troféu do torneio que chamara a atenção de Mycaela e o atirei no lixo, desconfortável por mentir para ela, mesmo com a possibilidade da garota ser uma humana.
–Nunca vi o símbolo da Casa antes, posso ter me enganado.
Nevra estalou a língua e saiu, indignado.
Mas não era preciso ser um expert no assunto para saber que aquilo nos olhos dela era sem dúvida o símbolo que procurávamos.
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