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História Time web - Passado


Escrita por: Alchorrint

Capítulo 3 - Passado


A garota tocou a cabeça, sentindo a dor latejante. Seus dedos deslizaram entre os fios e algo quente escorria por ali, então, assustada, retirou a mão e analisou o sangue manchando as unhas. Respirando fundo, Peony umedeceu os lábios e caminhou para fora de seu quarto. Era uma daquelas noites de sexta-feira em que seu pai trabalhava até o amanhecer, então ela estava com um machucado no rosto e sozinha, deixada para se virar.

Não que ela não soubesse como.

Peony chegou ao banheiro e limpou com água corrente a parte que se localizava na testa. O corte mais para entre seus fios ela apenas limpou com uma toalha, não se incomodando tanto. Mas não estava bonito, e ela sabia, no fundo, que tinha de dar um ponto ou algo que pudesse fazer parar de sangrar.

Voltando ao quarto, posicionou os dedos no teclado e começou a bolar sua notícia. Ela ainda tinha poucas informações, mas já dava para escrever uma base, então adiantou-se. A garota apenas torcia com toda sua vontade que o fotógrafo tivesse conseguido alguma imagem. Acabando seu rascunho, enviou-o para Peter em um anexo e uma curta mensagem perguntando se havia alguma foto com ele.

Abrindo outra aba no navegador, pesquisou as notícias no Queens e acabou encontrando algum jornalista de plantão que já havia escrito sobre o ataque à Midtown, citando o homem encapuzado como um feiticeiro e citando o Homem-Aranha como o grande salvador dos pobres estudantes.

Com licença? Pensou a garota. Eu fiz mais do que ele.

Mas o que mais lhe chamou a atenção na reportagem era a foto que a acompanhava no final. Uma grande imagem de ótima qualidade com o herói e ela. Tirada bem no momento em que os dois haviam pousado no parque e ele a deixara só, para voltar a pé para casa. Vendo que a notícia já tinha diversos comentários, Peony soube que estava fodida.

[…]

— Você está bem? — Questionou a voz suave ao seu lado.

Peony levantou a cabeça do ninho que fizera com os braços e olhou na direção da voz, um tanto sonolenta por conta de seu majestoso cochilo. Bocejando sutilmente, rolou os ombros para trás e os olhos esverdeados finalmente captaram a imagem. E então ela se questionou se ele havia perguntado para outra pessoa. Olhando para trás, procurou qualquer outro aluno, mas todos estavam prestando atenção à aula.

Harry Osborn usava o cabelo puxado para trás com um toque de gel, apenas alguns fios rebeldes se recusando a permanecer no penteado, caindo sobre sua testa. Ele usava um suéter preto com a clavícula aparecendo, e Peony podia jurar que um suspiro saiu por seus lábios ao reparar em cada detalhe presente no outro.

               — Peony, certo? — Questionou o garoto, inclinando-se para trás. Ela assentiu, hesitante. — Você está bem?

Sem saber sobre o que se tratava, colocou no rosto um olhar desorientado, até o garoto indicar sua própria testa como referência.

               — S-sim — a garota disse, quase que em um sussurro. Um tanto confusa, passou os dedos pela franja e acabou tocando o curativo, sentindo a ferida abaixo das camadas de algodão, soltando um curto "ai" pela boca. — Isso não foi nada…

               — Não me diga que foi resultado daquela explosão inexplicável no refeitório ontem — Harry apoiou a cabeça na mão.

Engolindo seco, a garota hesitou novamente. Ninguém havia visto.

               — C-como você sabe? — Questionou preocupada.

               — Peter disse que vocês foram os últimos a sair. Aí aquele cara novo apareceu e salvou o dia — Harry sorriu, como se estivesse tirando sarro do fato. Em seguida, pegou o jornal da escola de dentro da bolsa e mostrou a primeira página, com aquela mesma manchete que a garota escolhera tão brilhantemente. — Eu também estava no apartamento dele quando você enviou o anexo.

A garota assentiu com a cabeça, aliviada por ele não ter visto a reportagem com sua foto, mas também pensando na relação de Peter e Harry.

               — O artigo ficou bem legal, já pensou em participar dos concursos do Clarim Diário? — O garoto guardou o jornal e inclinou-se na cadeira.

               — Já participei de alguns, mas eles preferem pessoas formadas… eu sou só uma estudante — Peony deu de ombros. — E aquilo era apenas um rascunho.

E não era mentira. A morena já enviara diversos de seus artigos para o editorial, tentando se sobressair em algo, mas ninguém parecia se interessar pelo que escrevia. Peony não podia evitar se sentir uma fracassada toda vez que recebia um "agradecemos pela participação". Mais lhe parecia um soco no estômago.

               — É uma pena — afirmou ele. — Ficou realmente bom. Mesmo para um rascunho.

Sorrindo, a garota tentou agradecer, mas seu professor de história acabara adentrando a sala e cortando sua balbuciação. A garota ficou um tanto decepcionada, mas mesmo assim, ainda tinha o coração aquecido para se contentar.

Logo que o sinal tocou, Peony ajeitou suas coisas e levantou-se, pegando o celular para ver as mensagens recebidas e percebeu que havia um novo e-mail, vindo da Sra. Carson, pedindo para que todos do editorial a encontrassem durante o período do almoço. Como o refeitório estava interditado, todos os alunos se direcionavam para fora da escola, indo almoçar em restaurantes próximos, mas Peony tinha seu almoço consigo.

Assim que pisou no corredor, foi como se as conversas tivessem cessado por alguns instantes. Seus olhos esverdeados rodaram pelo cenário, analisando cada rosto que a encarava de volta. Essa situação havia começado no momento em que ela chegou na escola, e a garota tinha total noção de que era por culpa da foto. Revirando os olhos, caminhou em direção ao editorial e abriu a porta, fechando-a com raiva atrás de si.

Todos saltaram de suas cadeiras com o barulho. Peony mordeu o interior da bochecha e sentou-se na única cadeira de sobra, deixando a bolsa ao lado, no chão. Cruzando os braços, percebeu que até ali as pessoas a encaravam, e respirou fundo.

               — Vocês perderam algo na minha cara? — Questionou e todos desviaram os olhares.

A Sra. Carson ainda não estava lá, então os alunos focavam em tarefas diferentes, como artigos que tinham para finalizar ou até mesmo em comer um tanto antes da reunião. A porta abriu-se mais uma vez, revelando o garoto desajeitado que segurava a câmera com uma mão e alguns envelopes na dobra do braço, mais um sanduíche na boca, e então sentou-se ao lado da jovem. Peony evitou olhá-lo, sabendo que poderia ser mais um de seus infames espectadores, mas, para sua sorte, ele permaneceu quieto, comendo o sanduíche.

               — Desculpem-me pela demora — a Sra. Carson adentrou a sala, fechando a porta atrás de si e aproximando-se da mesa com os vários arquivos em mãos.

Peony pegou pelo canto dos olhos Cindy Wyatt fofocando com Magda Washington, lançando os olhares venenosos, e até invejosos — se fosse para Peony ser bem sincera. A garota tentou evitar, mas ainda assim, lhe afetava o fato das pessoas estarem comentando sobre algo que havia sido um mal-entendido.

               — Vocês já devem saber o porquê de eu estar convocando essa reunião e tirando alguns minutos de seus almoços — a mulher cruzou os braços e colocou uma folha impressa ao centro da mesa, sentando-se em seguida. Peony esticou o pescoço para ver de que se tratava e respirou fundo, vendo que era aquela matéria com sua foto junto do "herói" impressa. — Bom, espero que tenham lido isso, ou ao menos visto algo online sobre este sujeito, já que eu pedi. Não sugiro muitos desafios, mas achei que seria interessante trazer algo novo para vocês. Então eu tive uma grande ideia de montar um concurso.

"Trata-se de uma pesquisa prática, para que vocês saiam mundo afora e procurem como verdadeiros jornalistas. Quero que estejam nas ruas e cacem o sujeito com seus olhares vorazes e curiosos, quero matérias, quero tudo sobre ele. E sei que são capazes, senão jamais estariam aqui. Além disso, como uma pequena motivação, o grupo que conseguir montar uma matéria sólida primeiro terá uma carta de recomendação escrita por mim para qualquer universidade que quiser entrar. Vocês têm o prazo de até dois meses."

Um grande murmúrio começou a se formar no local e Peony sorriu cínica, retirando o celular do bolso e verificando algumas anotações que havia feito no dia anterior, após ter sido deixada no parque. A Sra. Carson deixou a sala sem atender as dúvidas e todos começaram a aumentar os tons, parecendo pessoas desesperadas.

               — Peony — chamou um garoto que trabalhava na coluna de esportes. A garota não lembrava de seu nome, e não achou que valia a pena retirar o olhar do celular para prestar atenção nele. — Você tem que nos ajudar… todos sabemos que você estava com ele ontem.

               — Minhas fontes são exclusivas — disse a jovem, dando de ombros. — Busque pelas suas.

               — Megera — disse por baixo da respiração, mas a garota escutou.

               — Dá um tempo, cara — soou uma voz ao seu lado, antes que Peony pudesse responder.

Virando-se, percebeu o fotógrafo impaciente, encarando o garoto da coluna de esportes. A garota trocou seu olhar para o outro e arqueou uma sobrancelha, desdenhosa.

               — Boa sorte — desejou e o garoto saiu impaciente da sala.

Peter ajeitou-se na cadeira e respirou fundo, olhando para frente. A garota inclinou-se para trás e passou a encará-lo com cuidado para não parecer assustadora. Ele, por outra via, parecia focado em não a olhar. Todas as outras pessoas haviam deixado a sala, sobrando apenas os dois.

               — Aquele cara é um babaca — disse Peter, mordendo o lábio inferior, ainda sem olhá-la.

               — Ainda bem que não me preocupei em decorar o nome dele — riu a jovem e o garoto juntou-se. — Obrigada.

               — Não há de que — o garoto lhe lançou um curto olhar por cima do ombro e desviou rapidamente. — V-você está bem depois de todo aquele tumultuo ontem?

               — Sim, só ganhei um arranhão, nada que vá me afetar — apontou para a testa com o curativo colado.

               — Como você conseguiu o machucado?

               — Hm… foi culpa daquele cara que se passa por herói — a garota revirou os olhos. — Ele tentou me ajudar e acabou me atirando contra o balcão do refeitório. Qual é, ele se veste em pijamas e óculos de mergulho e ainda acha que pode salvar o mundo?

               — Eu acho as roupas dele bem legais.

               — Você é um grande fã, não? — Peony cruzou os braços acima da mesa, curiosa.

Peter pareceu congelar. Passando as mãos sobre o suéter cinza, afastou as migalhas de pão do sanduíche que comera anteriormente.

               — P-por que você diz isso?

               — Ontem você também o defendeu — afirmou a jovem. — Mas não te culpo. Aliás, quase todos nessa escola o idolatram.

               — Você não gosta de super-heróis?

               — Não fazem muita diferença em minha vida — Peony umedeceu os lábios e sorriu de canto. — Prefiro focar nas coisas reais.

               — Como…?

               — Não sei. Guerras? Algo que me dê uma boa reportagem — disse Peony ao se levantar, pegando sua bolsa. — Você pensou em minha proposta?

O garoto ajeitou-se na cadeira, colocando as mãos entrelaçadas acima do colo e soltando um longo suspiro, sem olhar na direção dela. Alguns segundos depois, mordeu o lábio inferior e respondeu-a:

               — Sim e… achei melhor não aceitar — olhou-a de relance e desviou rapidamente.

               — O quê?! Não… Qual é, Petrus — a garota soltou a bolsa e sentou-se novamente, aproximando-se dele.

               — Está vendo?! Você mal se lembra do meu nome!

               — Não é minha culpa — defendeu-se, desdenhosa. — Minha memória é ridiculamente fraca. Me dê um motivo real.

               — Eu só… tenho dever de casa — Peter cruzou os braços.

               — Corta essa — bufou a jovem, revirando os olhos. — Você não quer uma carta de recomendação?

               — Eu não sei — o moreno chacoalhou a cabeça e passou a mão pelo topete na intenção de ajeitá-lo. — Só…

               — Por favor, cara. É uma ótima oportunidade — ela inclinou a cabeça para o lado, sabendo que teria de apelar para a chantagem emocional. — Eu sei que sou uma pessoa cruel na maior parte do tempo e muitas pessoas não gostam de mim. Percebe? Eu não tenho muitos amigos, estou sempre só, e minha única companhia são os artigos que eu corrijo todo dia com toda minha dedicação… Meu coração se encheu de alegria quando eu imaginei toda uma reportagem sobre esse novo herói. Sempre quis essa carta de recomendação e agora…

Os olhos do garoto se arregalaram e Peony percebeu que estava começando a dar certo.

               — Tudo bem, tudo bem — Peter cedeu. — Eu faço o trabalho com você.

De repente, a postura de Peony mudou e a garota trocou a expressão triste por uma totalmente iluminada e sorriu, levantando-se novamente.

               — Te vejo depois do sétimo período. Tchau!

Saindo da sala com passos apressados, Peony apenas olhou por cima do ombro para encontrar Peter desamparado, com confusão expressa no olhar. Sorrindo para si mesma, seguiu para os corredores, com a maçã em mãos e vitória na aura.

[…]

Seguindo o corredor, derrotada pela aula de física, Peony caminhava corcunda enquanto seus olhos seguiam cada traço do piso que revestia o chão. Murmúrios circulavam ao seu redor, e ela os ignorava, imaginando que seriam sobre o refeitório, o Homem-Aranha ou sobre a foto.

Chegando perto da secretaria da escola, percebeu a televisão do balcão ligada e vários alunos assistindo de longe, através do vidro, tumultuando o corredor. Incomodada, a garota aproximou-se com a curiosidade dominando seu peito. Erguendo o rosto e empurrando as pessoas que a rodeavam, analisou a tela com cuidado e percebeu algo inédito: prédios empresariais destruídos em Forest Hills, fumaça fundindo-se ao ar e pessoas desesperadas. A garota sentiu o peito se apertar e um calafrio percorrer sua espinha. Sentiu que desmaiaria, por algum motivo desconhecido.

Caminhando para trás e tropeçando em seus próprios pés, caiu, mas não colidiu com o chão. Um par de braços segurou-a e, ao levantar o rosto, percebeu que era o fotógrafo. Ele ajudou-a a se levantar e arqueou uma sobrancelha.

               — Você está pálida. Está tudo bem? — Questionou e ela negou com a cabeça.

               — Tudo ótimo — passou uma das mãos pelo rosto e percebeu que suava frio. Um enjoo parecia fazer um grande nó em seu estômago. — Escute, Peter, essa é uma ótima oportunidade para irmos atrás do Homem-Aranha.

               — Eu não posso agora — disse ele, desviando o olhar novamente. — Preciso v-voltar para casa…

               — Mas eu preciso de sua ajuda!

               — Eu sei, só não… agora.

               — Que seja — ela revirou os olhos e ajeitou a mochila no corpo. — Eu vou atrás.

               — É perigoso lá, Peony!

               — Você acha que eu não sei?

Ignorando o garoto, a jovem saiu em disparada. As ruas que foram filmadas e passadas na televisão eram próximas à escola, na avenida principal do Queens. Peony correu para fora da escola e ajeitou os sapatos, sabendo que seria uma longa caminhada.

Chegando perto da esquina que dobrava com a avenida, Peony escutou vários trovões e sua visão fora iluminada com diversos raios. O cheiro de fumaça adentrou suas narinas e ela sentiu aquela sensação ruim novamente, só que dessa vez, pior. Sua cabeça começou a doer, como as agulhadas que costumava sentir atrás dos olhos, subindo até o topo. Não podendo se mover, caiu de joelhos e posicionou uma mão sobre o asfalto e a outra sobre os olhos, pressionando a testa na esperança de doer menos.

Um gemido de dor escapou pelos seus lábios e algo muito estranho ocorreu em seguida. Sua mente ajustou-se em uma cena diferente, ainda mais porque seus olhos estavam fechados e repletos de escuridão, e este novo espaço era claro. A jovem estava parada no centro da mesma avenida e estava vestida diferente. Suas costas doíam e ela tinha no mínimo uns três cortes no rosto. A imagem era como se fosse em terceira pessoa, parecia cena de um filme, muito bem dirigido. Suas vestes não eram suéteres e jeans como as normais, eram feitas para combate. Ela sabia disso pois seu pai tinha roupas assim guardadas em um velho baú, só não do mesmo jeito e das mesmas medidas.

Peony estava coberta por uma blusa de couro dourado, com suas mangas longas, um capuz, e um decote cruzado por fios pretos, da cor de suas calças. As botas combinavam com a blusa, reluzindo com os raios incessáveis. E, cobrindo seu rosto, estava uma grande máscara negra, as rendas caindo-lhe delicadamente sobre a pele de porcelana. Suas mãos estavam fechadas em torno de um bastão com duas lâminas; uma em cada ponta, e duas cintas cruzavam seu peito, levando alguns frascos de plástico preto que ela não sabia dizer o que eram.

E ela estava ali, em posição de ataque, com alguém do seu lado. Uma figura vermelha e azul, mas não parecia ser o mesmo herói que ela havia visto. Seu traje era dez vezes melhor, senão ainda mais. A máscara não era feita com um gorro surrado e óculos de mergulhador, e sim, uma espécie de couro sintético com lentes tecnológicas. Algo lhe dizia que era a mesma pessoa que ela conhecera, mas não tinha certeza se sua mente estava pregando uma peça. Não podia ser.

Ela olhou para ele e acenou com a cabeça, caminhando para a frente antes de começar a correr em direção à uma grande massa escura com chamas verdes que se encontrava no centro da avenida, rodeada de viaturas e espectadores.

A cena sumiu da frente de seus olhos e sua visão estava escura novamente. A dor havia cessado, como mágica, e a jovem levantou o olhar sentindo um cansaço inexplicável. Olhou para baixo, procurando pelas roupas personalizadas, mas acabou encontrando as calças de pijama e a camisa larga com um gato azul estampado. Suas pernas tremiam um tanto, e ela sentiu-se… confortável? Assustada, sentou-se e percebeu que estava em sua cama. Nada de ruas, tempestades ou Homem-Aranha em uma roupa que não parecesse um saco de batatas.

Ofegante e com suor escorrendo na nuca, a garota levantou-se da cama lentamente, tocando o rosto e sentindo-o liso, sem cortes. Seus dedos se arriscaram a subir até as têmporas, na esperança de sentir a máscara, mas a resposta fora negativa. Confusa e desamparada, Peony caminhou lentamente até a porta de seu quarto. Quando estava prestes a puxar a maçaneta, a imagem de seu pai apareceu, iluminada pelas luzes do corredor atrás de si. Em suas mãos, um prato de sopa.

               — Sente-se, Pey — pediu e ela encarou-o. — Você não está em bom estado para ficar de pé.

               — Eu estou me sentindo bem, pai.

               — Não, você vai voltar para a cama e fim de conversa — disse o homem ao acender a luz do quarto. — Eu sabia que tinha que ter te levado ao hospital quando vi o curativo.

A garota congelou apenas de ouvir a palavra. Os calafrios voltaram, com menor intensidade, mas ainda assim quebraram algumas barreiras de defesa que a jovem ainda tinha dentro de si. A verdade era que ela não pisava em um hospital há mais de dez anos. Evitava até enfermarias, ou qualquer local com paredes brancas e iluminação extrema. Não era o tipo de ambiente que lhe trazia conforto.

               — Nada de hospitais — disse ela, recompondo-se e reconstruindo a barreira de defesa.

               — Então volte para a cama — o homem ordenou e ela revirou os olhos.

Peony sentou-se na cama e enfiou-se debaixo das cobertas azuis, encostando-se nos travesseiros que estavam amontoados atrás de si. Dustin caminhou em sua direção, equilibrando a sopa nas mãos e tomando cuidado para não deixar cair um único pingo. O homem sentou-se à beira dos edredons e entregou-lhe a vasilha. A jovem sorriu de canto e começou a brincar com a colher entre as cenouras mal cortadas.

               — O que aconteceu… digo, o houve comigo? — A jovem levantou o olhar e o homem torceu a boca.

               — Você desmaiou na aula de física — respondeu ele, cruzando os braços acima do suéter cinzento que antes já fora preto, e agora estava repleto de fios saltando.

Fazia sentido. Aquilo tudo fora um sonho criado a partir de um desmaio. Nada de raios, chamas ou fantasias de heróis.

               — Que estranho.

               — A enfermeira da escola me ligou. Disse que um garoto de sua sala te levou até lá, você estava inconsciente — Dustin colocou os braços atrás de si para inclinar-se.

               — Ela disse quem foi? — A jovem pôde jurar que sentiu um desconforto em saber que alguém teve de ajudá-la.

               — Ele tinha um nome estranho. Clash, Dash… não consigo me lembrar — o homem passou a mão pelos fios bagunçados de cabelo.

Flash Thompson, pensou Peony. Que babaca.

A garota começou a negar com a cabeça lentamente enquanto seus dedos circulavam a colher, brincando com a sopa. Seu pai encarou-a com cuidado, sabendo exatamente o que ela estava pensando. Para Dustin, Peony sempre fora uma garota fechada em relação à muitas coisas, mas ele conseguia lê-la como uma receita de bolo. O homem colocou a mão sobre seu ombro e sorriu de canto.

               — Não se culpe por isso — confortou-a. — Não tem problema algum em ter seus momentos de fraqueza.

Ela respirou fundo e colocou a sopa sobre a cômoda ao lado, puxando os joelhos para perto de si enquanto posicionava uma mão sobre a testa.

               — Eu nem me lembro de como aconteceu…

               — Não tinha nada que você podia fazer a respeito.

A garota assentiu lentamente e olhou para o pai, abrindo um curto sorriso.

               — Você é forte, Peony — o homem inclinou-se, beijando a testa da jovem, logo acima do curativo. — Forte e teimosa. Igual a alguém que eu costumava conhecer.

Ela sorriu novamente. Seu pai deixou o quarto e fechou a porta atrás de si, fazendo apenas barulhos com os passos pesados sobre o carpete.

Peony sabia de quem ele falava, e não era de sua mãe. Dustin costumava comentar sobre sua antiga parceira de trabalho, a qual ele tratava como uma irmã. A mulher era vaga na imaginação da garota, ela apenas sabia que ela era uma das melhores lutadoras com quem seu pai já trabalhou, e que tinha uma agilidade inacreditável. Então sentia-se honrada toda vez em que acabava sendo comparada a ela.

A garota pegou a sopa na cômoda e começou a tomá-la, mordendo os pedaços desproporcionais de cenoura que boiavam no caldo de frango. Logo que terminou, levantou-se da cama e caminhou para fora. Ela não precisava de seu pai para levar a vasilha até a pia. Caminhando para fora de seu quarto, se deparou com o corredor ainda iluminado, e algo que ela não costumava ver com tanta frequência: o sótão aberto.

Curiosa, deixou a vasilha sobre uma mesa de canto e deu passos lentos até chegar perto da escada que levava até o andar oculto. Um dos pontos proibidos para Peony. A garota acabou chutando uma caixa que não havia notado anteriormente, já que seu foco estava no teto. A morena agachou-se, vendo a velha caixa de papelão com as bordas rasgadas. Havia uma anotação na frente em caneta preta, com uma escrita bonita, que com certeza não era de seu pai. Ali lia-se: "decorações de natal".

Peony deixaria aquilo passar em qualquer outra ocasião, mas não antes de perceber que, quando havia chutado a caixa, um longo lenço preto com bordados verdes saltou para fora. A garota levantou-se rapidamente e olhou para a escada, tentando enxergar seu pai. Ela não o viu, mas escutou a televisão ligada e sons de uma cerveja sendo aberta, e então voltou a atenção ao lenço.

Ela o puxou para fora da caixa e passou a seda entre os dedos, tocando os bordados com a outra mão. Por um momento, Peony sentiu um calor em seu peito, como se aquilo fosse certo, destinado a ela. A jovem aproximou o tecido do nariz e cheirou-o, sentindo um fundo de uma essência cítrica, como um perfume antigo, e sentiu o lenço em sua bochecha, aninhando seu rosto a ele. Um flash de memória surgiu-lhe no fundo da mente; a imagem de sua mãe rodando a echarpe no pescoço e borrifando perfume.

A garota quis se agarrar à memória, mas logo sua mente resolveu se desfazer dela. Peony quis mais daquilo, mais daquela sensação, então abriu as bordas da caixa e deparou-se com um amontoado de itens que ela nunca havia visto antes. Ali dentro haviam fotos, esmaltes, acessórios, pingentes, moedas, selos, livros, cadernos e papéis dobrados. A garota não pôde evitar deixar escapar um sorriso pelos lábios rosados. Cheirando o lenço mais uma vez, decidiu que era a hora de ver o resto.

Ali, no meio do corredor, era arriscado demais. A jovem pegou a caixa e levou-a até seu quarto, fechando a porta atrás de si. Àquela altura, seu pai já devia ter caído no sono, então ela teria a noite inteira para vasculhar. Sentando-se na cama, colocou a caixa em sua frente e respirou fundo, sabendo que seria um grande passo em sua vida. Peony odiava sentir como se estivesse traindo a confiança de seu pai, mas ela tinha de saber a verdade.

Seus dedos tocaram as folhas dobradas primeiro, abrindo-as e soltando poeira no ar. Ali estavam antigas cartas que sua mãe recebera de alguém. As letras não estavam em inglês, e encontravam-se em uma língua que Peony nunca havia visto em sua vida. Franzindo o cenho, continuou a procurar outras coisas. Pegou o primeiro caderno, de capa marrom, e o abriu, revelando páginas lotadas em textos, provavelmente escritos em nanquim.

As palavras eram lindas, delicadas e a caligrafia, perfeita. Peony sentiu-se bem sabendo que sua mãe também tinha amor pela escrita, e resolveu que passaria seus próximos dias lendo cada um daqueles textos que havia encontrado. Os outros cadernos eram iguais, repletos de textos e poesias, às vezes, alguns rabiscos, mas apenas raramente.

A próxima memória que encontrou foram os selos, e ela sorriu ao passar os dedos pelas dobras laterais. Os livros eram antigos, alguns de Sylvia Plath, outros de Oscar Wilde, e, para sua surpresa, alguns de Allan Poe. Ela nunca imaginou que sua mãe pudesse ter tanto bom gosto para literatura, e sentiu-se orgulhosa por ter puxado essa característica.

Peony respirou fundo após algum tempo, seu nariz já coçando pelo excesso de poeira que se encontrava em sua roupa e mãos. A caixa agora estava quase vazia, se não fosse por um pequeno embrulho que restara, sendo deixado por último. A jovem encarou-o durante alguns segundos, ansiosa, e pegou-o em mãos. Era um embrulho preto com fita dourada, e tinha um pequeno bilhete junto, em papel envelhecido e tendo a mesma letra que se encontrava nas cartas.

Ela colocou o bilhete de lado e seus dedos já se encontravam nas extremidades do laço, aguardando para desfazê-lo. Foi quando a racionalidade assumiu o comando e ela percebeu que não tinha o direito de mexer naquele embrulho. Era um presente para sua mãe, algo que não era dela, e não deveria ser aberto por ela. Peony negou com a cabeça. Ela havia aprendido tanto sobre a mulher que lhe dera a luz apenas em uma noite. Anos sem saber nada sobre e agora sabia que sua mãe gostava de ler, escrever, colecionar selos e moedas… Aquilo já era um abuso de sua privacidade.

A garota colocou o pequeno embrulho de volta à caixa e encarou-o novamente, tentando convencer-se de que não se arrependeria da decisão. Após longos segundos de observação, começou a voltar todos os objetos na caixa, deixando apenas os cadernos, que ela viria a ler mais tarde.

Peony fechou a caixa e levou-a de volta para o corredor, deixando-a exatamente onde havia encontrado. Ajeitou da melhor maneira possível para que seu pai não percebesse. Até deixou o lenço afofado como antes. Suspirando, voltou para seu quarto e guardou os cadernos em sua cômoda, abaixo das camisetas do clube de literatura que ela havia frequentado no ensino fundamental.

Bocejando, voltou à cama e jogou-se sobre as cobertas, sentindo um objeto duro colidir com suas costas. Gemendo em dor, sentou-se e procurou pelo tal agressor, encontrando o inesperado:

O embrulho.

A jovem teve certeza de que havia guardado dentro da caixa. Confusa, encarou-o e pegou em suas mãos, analisando toda a superfície. Novamente, a tentação dominou sua mente. Uma vozinha na camada mais profunda de seu pensamento gritava para que ela puxasse logo a fita, mas sua racionalidade berrava ainda mais alto. Levantando-se da cama mais uma vez, caminhou em direção à porta.

Seus pés pareceram se enrolar um no outro e a jovem tropeçou, caindo e deixando a caixa cair para baixo da cama. Peony escutou passos rápidos se aproximando e ignorou o fato do embrulho estar longe de suas mãos. Na porta, a figura de seu pai surgiu com desespero no olhar, e ele pareceu aliviado de encontrá-la ali, o encarando.

               — Você… você quase me matou de susto — colocou a mão sobre o peito e respirou fundo. — O que houve?

               — Eu caí da cama, nada de mais — a jovem torceu a boca e colocou-se sentada.

Dustin não pareceu muito convencido, mas aceitou a desculpa e puxou a maçaneta para mais perto de seu corpo.

               — Me promete que vai dormir logo? — Questionou.

A garota assentiu com a cabeça e o homem sorriu.

               — Boa noite — desejou e fechou a porta.

Peony aguardou os passos sobre o carpete para colocar-se de bruços novamente. A morena olhou embaixo da cama e encontrou um objeto reluzente, ao lado da caixa aberta. Enfiando a mão fina no buraco, puxou o embrulho e a coisa que brilhava. A garota colocou o embrulho de lado, já que não tinha muito sentido em ficar apegada à uma caixa de presentes, e focou no brilho.

Era um colar, com um pingente de cubo. Em cada uma das faces, um símbolo diferente, lembrando a letra que se encontrava nas cartas. Ele não brilhava por conta própria, era apenas uma reflexão da luz ambiente. Peony sentiu uma sensação estranha, como um calafrio percorrer a espinha, mas era algo que lhe parecia familiar. Como se ela já tivesse sentido aquilo antes, ou como se alguém tivesse lhe descrito exatamente o que deveria sentir. A garota tracejou os detalhes esculpidos e arqueou as sobrancelhas.

A jovem torceu a boca, um tanto insegura do que havia pensado em fazer, mas mesmo assim o fez. Colocou a corrente sobre a cabeça, passando-a até o pescoço. Assim que o pingente pendia sobre seu peito, em contato com a pele clara, outro calafrio percorreu seu corpo e o inesperado aconteceu. Do fundo de sua mente, um som desconhecido soou, parecendo estar em outra língua, algo que ela nunca havia ouvido antes, não tendo semelhança com qualquer outra língua já existente.

Em seguida, várias daquelas vozes soavam, cada uma tendo um sotaque diferente, mas com o mesmo tom, e agora elas estavam cada vez mais familiares com outras linguagens. Ela havia captado o espanhol, latim, alemão, russo, até que seu corpo gelou por inteiro, nenhum músculo se movendo. A voz era clara, e definitivamente, não era sua.

Olá, Peony. 

 


Notas Finais


Espero que tenham gostado!


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