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História Trégua Suspensa - What's missing


Escrita por: caulaty

Capítulo 11 - What's missing


Kyle Broflovski gostava de sua vida. Os cinco anos investidos em faculdade de jornalismo contribuíram para que ele construísse uma carreira estável escrevendo para colunas de jornal e revista, em especial fazendo análises críticas de assuntos políticos e sociais. Amava o que fazia e era bom nisso, afinal, sempre fora bom com as palavras e sentia uma satisfação imensa em dar a sua opinião a respeito de tudo. Era uma pessoa inteligente, cuja opinião era extremamente respeitada profissionalmente e em seu meio de convivência. Falava muito bem, escrevia muito bem, tinha uma formação decente. Seus pais estavam orgulhosos, e apenas Jeová saberia o quanto isso era importante para ele, visto que a cobrança sempre foi rígida na residência dos Broflovski. E suas relações familiares eram saudáveis; discordava terminantemente da visão de mundo capitalista de seu pai, mas conseguiam preservar uma admiração mútua apesar de qualquer coisa, porque Gerald não era um homem difícil de lidar. Kyle tinha um gênio muito mais parecido com o de sua mãe, que ligava dia sim, dia não, apenas para se certificar de que ele estava bem. Jantava com seus pais toda semana, e almoçava com eles todo domingo, extraindo muito mais prazer da companhia dos dois agora que não morava mais com eles. Gerald sempre tinha uma bugiganga nova para exibir, geralmente comprada pela internet, porque desde que ele descobrira as maravilhas do mundo virtual, criara uma compulsão por compras online. E Sheila insistiria que ele levasse comida para casa, o que já não era mais necessário há quase dez anos, porque Kyle cozinhava muito bem. Muito melhor que ela, inclusive. Sheila jamais poupava-lhe de um sermão sobre como ele precisava de mais alimentos kosher em sua vida, e como ele jamais poderia renunciar a sua fé.

Ele também tinha uma vida espiritual muito satisfatória. De fato, com vinte e tantos anos, havia se afastado um pouco da doutrina – algo que sua mãe fazia questão de mencionar até hoje -, porque aquilo perdera o sentido para ele. Mas depois de eventos bastante obscuros em sua vida, ele encontrou o caminho de volta à própria fé e agora ia à sinagoga todo sábado. Kyle acreditava em Jeová, mas não acreditava que rezar resolveria todos os seus problemas. A fé e a consciência do próprio esforço tornavam sua vida muito mais leve e quaisquer coisas que acontecessem fora do seu controle eram vistas com otimismo e paciência, porque ainda que fosse uma pessoa controladora, Kyle tinha bastante sanidade. Uma cabeça boa. E ele era grato por isso.

E Kyle Broflovski tinha um relacionamento saudável.

Eric Cartman não era, nem de longe, nem em um milhão de anos, a pessoa com quem ele acreditava que escolheria passar a vida. Ele ainda não tinha certeza absoluta de que Eric podia ser essa pessoa, mesmo agora que eles mantinham as escovas de dente uma ao lado da outra. Por algum motivo, Kyle sempre acreditou que esse fosse um passo muito importante a se dar em uma relação. Ele pensou muito antes de fazê-lo. Havia algo em Eric que sempre o excitara, que o entusiasmava e era quase impossível de resistir. Stan sempre falava sobre como Kyle tinha um fogo dentro de si que Cartman alimentava desde que eles eram crianças: o ruivo adorava uma discussão calorosa. Por mais que ele negasse, Kyle sabia, no fundo, que era verdade. Ele adorava sentir o sangue esquentando, amava a liberdade de gritar tudo o que quisesse na cara de alguém que retribuísse da mesma forma, alguém que não fugisse. Kenny não era essa pessoa, nunca foi. Quando ele incitava uma discussão, o loiro tinha o hábito de passar o braço em torno dos ombros dele e rir. Kyle precisava admitir, ele gostava muito mais da pessoa que era na época, perto de Kenny, do que da pessoa que ele era perto de Eric Cartman. Mas eles compartilhavam algo real que apenas eles entendiam, e Kyle não exigia que mais ninguém tentasse compreender. Depois de três anos de relacionamento, ele não precisava mais recorrer a gritos para bater de frente com Cartman; descobriu formas muito mais sutis de alimentar o ego másculo delicado do homem. Havia um tom de manipulação na forma com que ele falava manso e alisava os braços fortes de Cartman enquanto ele estava puto da vida com o que quer que fosse, mas funcionava bem para os dois.

De qualquer forma, o que eles tinham não era sustentado apenas por discussões, gritos, manipulação e sexo agressivo para resolver quem tinha razão. Ele amava Eric Cartman, tinha certeza disso. Amava a forma com que aquele homem grande o abraçava por trás de surpresa enquanto ele lavava a louça do jantar. Amava como Cartman tinha uma temperatura corporal muito elevada, e quando eles se deitavam há noite para dormir, Eric deixava que Kyle colocasse os pés gelados entre as pernas dele para esquentar. Xingava um pouco, é claro, mas sempre deixava. Amava como Cartman prestava atenção nele, nos detalhes pequenos. Um exemplo básico disso era como, mesmo implicando e falando mal do queijo branco que Kyle adorava, ele nunca se esquecia de comprar, mesmo sem que o ruivo pedisse. Cartman cuidava das injeções de insulina dele constantemente, com um ar casual de quem não se importa tanto assim, dizendo coisas como “ou eu cuido, ou você se mata, seu retardado.” Era um cuidado um tanto controlador, porque esse era um dos defeitos mais evidentes de Eric. Até mesmo a forma despretensiosa com que ele envolvia o ruivo debaixo do braço enquanto eles conversavam com outras pessoas, e cheirava o pescoço dele, mordiscando a orelha, mostrando ao mundo inteiro a quem Kyle pertencia. Era um homem possessivo, ciumento, descontrolado. Kyle o amava por isso.

Eric tinha muito dinheiro. Ganhava quantidades absurdas, e provocava o namorado regularmente dizendo que Kyle só estava com ele pelo dinheiro, porque era um judeuzinho avarento. E o ruivo respondia gargalhando, porque de verdade, o orgulho nunca o permitiu explorar isso. Ele não deixava que Cartman pagasse nada para ele, o que se tornava outro motivo cotidiano de discussões, especialmente depois do segundo ano de relacionamento, em que eles resolveram morar juntos. Kyle já tinha comprado um apartamento pequeno aos 25 anos, porque isso fazia parte do plano de vida responsável que seus pais lhe ensinaram, e por mais que Cartman insistisse que ele deveria vender, Kyle manteve o apartamento intocado. Era extremamente conveniente porque ele tinha um lugar para ir quando as brigas chegavam ao ponto de eles não suportarem estar no mesmo ambiente. Ele precisava de um canto que preservasse a privacidade e as coisas das quais ele não queria se desfazer, mas também não queria levar consigo quando fez a mudança. O apartamento em que eles moravam deveria ter, no mínimo, o triplo do tamanho. Tudo era milimetricamente mantido no lugar porque Cartman era quase tão metódico quando Kyle em termos de organização.

Uma das coisas que Kyle mais gostava naquele relacionamento era sua sogra.

Por mais que, enquanto criança, ele mesmo tivesse participado das piadinhas sobre “a puta da cidade”, Kyle cresceu para compreender que Liane Cartman era uma das pessoas mais doces desse mundo, e ele não admitia mais que ninguém dissesse uma palavra sobre ela ou a forma que ela escolhesse viver. Isso também valia para o filho dela. Eric amava sua mãe, é claro, não havia dúvida a esse respeito, mas não poupava palavras bruscas a respeito dela. Liane e Kyle criaram um laço muito forte porque ambos compreendiam a mente complicada de Eric, e frequentemente a mãe tomava responsabilidade pela educação questionável que ofereceu. Kyle acreditava que ela tivesse passado a vida inteira tentando compensar a ausência paterna, e por isso Cartman nunca aprendeu a ouvir “não”.

Todas as terças-feiras, Liane ia até a casa deles para tomar café com o genro, porque às terças-feiras Kyle trabalhava em casa. Cartman raramente estava em casa durante a tarde. Liane não trabalhava mais, porque o filho fazia absoluta questão de sustentá-la, como se isso pagasse uma espécie de dívida que ele sentia. Cartman sabia como a mãe tinha trabalhado em dois empregos durante toda a infância dele, e com todos os seus defeitos, ele era extremamente grato a ela.

Durante aquela tarde em que a neve caía incessantemente, Liane Cartman estava sentada à mesa da sala de frente para uma janela enorme, com uma vista maravilhosa das montanhas de South Park. Ela levava uma xícara de porcelana aos lábios e falava sobre o natal. O café de Kyle não era particularmente bom, provavelmente porque o ruivo não bebia café, apenas chá, mas ele se esforçava e Liane jamais reclamou. Cartman sim, reclamava constantemente do café fraco dele. Mas Kyle não pensava nessas coisas enquanto contemplava o nada, segurando o rosto com a mão, analisando mentalmente a própria vida. Liane dizia algo sobre como gostaria que os meninos passassem a noite de natal na casa dela, já que a família Cartman toda viria visitar, e entendia que os pais de Kyle não celebravam o natal, mas que seriam muito bem vindos para ir também. Quando percebeu que o rapaz não ouvia uma palavra, ela colocou a xícara no pires e estreitou os olhos.

Foi então que seu filho saiu do quarto, arrumando a gravata, segurando uma porção de papéis amassados embaixo do braço, jogando-os em uma maleta que estava aberta sobre a bancada da sala, fechando-a agressivamente. Junto com ele, veio um cheiro delicioso de shampoo ou sabonete: Eric era uma dessas pessoas que saem do banho e deixam a casa inteira cheirosa. Kyle piscou como se saísse de um transe ao ouvi-lo se aproximando. Recebeu um beijo breve no topo da cabeça.

-Eu preciso ir. Vou chegar tarde, não me espere acordado. – Eric disse a ele, mas Kyle não reagiu.

Ele tentou se livrar com um aceno para a mãe, mas o olhar de reprovação de Liane fez com que Eric, bufando, voltasse para beijar o rosto dela. Saiu às pressas, batendo a porta sem dizer mais nada. Liane limpou a garganta e apoiou os cotovelos sobre a mesa, unindo as mãos em frente ao rosto, observando o ruivo à sua frente.

-O que foi, querido? – Enfim perguntou.

Os olhos assustadoramente verdes de Kyle se voltaram para o rosto dela rapidamente, e durante apenas um segundo, ela pode enxergar o quanto a pergunta o desconsertou. Conhecia Kyle Broflovski desde que ele não sabia andar ainda, desde que era apenas um garotinho ruivo descabelado com um temperamento difícil, com sardas muito sutis que desapareceram com o tempo e dentes tortos que endireitaram. E sabia o que ele estava sentindo com uma intuição maternal.

-Nada. – Ele respondeu casualmente, alisando a toalha branca da mesa.

-O que ele fez? – Ela tentou, oferecendo um sorriso. Kyle precisou rir.

-Ele não fez nada. Ele é que está irritado comigo. – Explicou enquanto sacudia a cabeça, revirando os olhos brevemente para descartar a importância do conflito. – É bobagem.

-Seria porque o menino dos McCormick voltou?

Kyle franziu as sobrancelhas, procurando não encarar os olhos astutos de Liane, umedecendo os lábios inconscientemente.

-Como sabe disso?

Ela encolheu os ombros, e o sorriso doce jamais deixou seus lábios.

-É uma cidade pequena.

-“Menino”. – Ele repetiu com um sorriso genuíno, levando a xícara de chá aos lábios, dando um gole longo antes de prosseguir. – Minha mãe fala do mesmo jeito. Não importa o quanto a gente crie barba na cara, vocês continuam se referindo a nós dessa forma.

-Ele era um bom garoto, aquele. Eu sempre lembro de como vocês quatro eram inseparáveis... Mas acho natural que Eric não queira mais vê-lo. Meu menino sempre foi muito ciumento, nunca gostou de dividir os brinquedos. – Ela comentou com uma risadinha, mas logo sua expressão se tornou séria. – Não que você seja... Você me entende, docinho.

-Não tem problema. É bobagem dele, mesmo.

Kyle recostou na cadeira e suspirou fundo. Seus olhos abaixaram novamente, e ele deixou a xícara sobre o pires e cruzou os braços, como se tentasse se aquecer, não reparando como Liane continuava a estudar sua expressão. Ela e Eric tinham os mesmos olhos. Mesma cor de mel com manchas mais escuras em torno da pupila, e olhavam da mesma maneira observadora.

-Então por que você parece tão triste, docinho?

Ele não sabia responder. Porque não importava quantas vezes ele repassasse em sua mente todas as coisas boas de sua vida, quantos motivos ele tinha para se sentir feliz, quantas coisas satisfatórias ele havia conquistado, Kyle não conseguia se livrar desse sentimento de que faltava alguma coisa. Alguma coisa que sempre faltou, mas que ele só pôde perceber agora. Toda vez que fechava seus olhos, Kyle enxergava a fumaça do cigarro subindo, a respiração visível no ar gelado da noite, a luz alaranjada da varanda da casa de Stan, a voz rouca e os olhos azuis penetrantes o encarando. Kyle se lembrava do cheiro dele, mais do que qualquer outra coisa. E era como se Eric pudesse enxergar essas lembranças toda vez que olhava para ele.

Ele sentiu um aperto forte no peito ao erguer os olhos para sua sogra, uma mulher que ele tanto amava. Então apenas tentou sorrir e disse:

-Você quer bolo?

* * *

Stan fechou a parte de trás da caminhonete com força, depois bateu as mãos para se livrar do excesso de neve acumulada nas luvas. Ele detestava usar luvas. Fungou brevemente, sentindo um resfriado se aproximando, mas ele não tinha tempo para isso agora. Abaixou-se para pegar a caixa pesada no chão, erguendo-a nos braços antes de oferecer um sorriso ao loiro.

-É só isso?

Kenny voltava de dentro da casa com as mãos livres, esticando os braços para que Stan lhe desse a caixa cheia de livros, mas o homem se recusou, passando reto por ele. Os dois haviam levado duas horas para buscar todas as tralhas do loiro que estavam dividas entre a casa da irmã e a casa dos pais. Kenny não conseguia compreender o que tinha feito de bom nessa vida para merecer um amigo como Stanley Marsh, que o ajudou a organizar tudo o que ele queria trazer, encaixotar, colocar na caminhonete e levar até a própria casa. Stan não lhe ofereceu somente o sofá, mas sim um quarto inteiro. Bem, não exatamente. Sally e ele fizeram uma limpa no sótão, como faziam todo outono, então estava relativamente habitável e tinha todo o espaço do qual Kenny precisaria.

Em partes, era um alívio. Stan e Sally o deixavam muito mais confortável do que a própria irmã, por mais que Karen se esforçasse de todas as formas. Ela chegou a soar um tanto ofendida (ou magoada, seria a palavra) quando ele disse que se mudaria para a casa de Stan até que conseguisse resolver a própria vida. Kenny a abraçou apertado e disse que sempre soube que ela sentiria muita falta dele para incomodá-la.

-É isso. – ele respondeu com um sorriso, seguindo logo atrás de Stan. – Eu não sei como te agradecer, cara.

Stan virou o rosto brevemente para enxergá-lo, com uma expressão de “não comece” em seu rosto, subindo a pequena escada da varanda, parando para ajeitar a caixa nos braços usando o joelho.

-Deixa eu te ajudar. – Kenny disse. – A luva atrapalha, me dá aqui.

Kenny não usava luvas, Stan já tinha reparado. Ele também não usava cachecol, gorro ou sapatos apropriados para se andar na neve, provavelmente porque ele não tinha nada disso. Stan sabia que ele estava morando na Austrália antes de voltar para os Estados Unidos, em Perth, uma cidade cujo clima ele descrevia como “maravilhosamente agradável e não congela suas bolas”. Mas o homem não chegou a perguntar sobre a falta de roupas agora que ele havia voltado ao frio de South Park, simplesmente por medo de que Kenny se ofendesse pela insinuação de que ele não tinha dinheiro suficiente para comprar luvas. Mas Stan tinha quase certeza de que esse era o caso.

-Ei. – Kenny chamou, afastando-o dos próprios pensamentos.

-O quê?

Os dois pararam na varanda e encararam um ao outro. Stan pressionou a caixa contra a parede para segurá-la, sentindo os braços cansarem. Kenny umedeceu os lábios como se arrependesse de tê-lo chamado, pois agora ele precisava dizer o que estava pensando. Stan arqueou uma sobrancelha em curiosidade, esperando.

-Você contou ao Kyle?

Pelos primeiros segundos, Stan não reagiu. Então, apenas sacudiu os ombros, com uma expressão de quem não entende a pergunta.

-Não, mas eu não preciso pedir permissão a ele.

-Eu sei disso. Só... Eu não sei, você é amigo dele. Parece errado, entende?

-O que parece errado? – O moreno perguntou, suspirando fundo e colocando a caixa no chão. – Eu recebo quem eu quiser na minha casa.

-É, mas... Ele vai querer vir aqui, e aí ele vai ter que me ver, e você sabe como ele fica... Sei lá, eu não quero que ele comece com aquelas neuroses. Ele pode achar que você está do meu lado.

-Não tem lado nenhum, nós não temos mais dez anos.

Kenny riu baixo, desviando o olhar e sacudindo a cabeça como quem não se convence muito.

-É, teoricamente.

-Não. Não “teoricamente”. Eu quero te ajudar, eu sou seu amigo, isso não tem nada a ver com o Kyle. Se ele se incomodar, isso é problema dele.

O loiro apenas assentiu, abaixando-se para tomar a caixa nos braços, erguendo-a com um grunhido. Stan o observava com uma ruga levemente irritada na testa, que desapareceu assim que Kenny lhe ofereceu um sorriso.

-Você se irrita porque você tá com a consciência pesada. Eu entendo, cara. Ele vai dar um ataque de pelanca, eu sei disso, você sabe disso. – O loiro respondeu em uma voz sutil, entrando em casa, prontamente seguido por Stanley. – Mas nós lidamos com os pitis dele há anos. Somos mestres nisso.

Stan riu baixinho. Nunca havia ouvido nada tão verdadeiro em toda a sua vida.



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