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História Trégua Suspensa - Lilac Wine


Escrita por: caulaty

Capítulo 12 - Lilac Wine


Kenny aumentou o volume da televisão com o controle remoto antes de se sentar, com a cerveja gelada na mão esquerda, causando uma sensação extremamente desconfortável na pele dos dedos. O loiro não abria mão de uma cerveja nem mesmo naquele frio agressivo, e dentro da casa confortável de Stan, não parecia fazer muita diferença. As luzes da sala estavam apagadas, e a única iluminação era o brilho azulado da TV, que passava algum filme de baixo nível sobre investigação policial com muita pornografia, exatamente do que ele precisava naquela noite de sexta-feira. Jogou o corpo pesado no sofá, ajeitando-se no estofado macio que já parecia ter o formato do seu corpo, tamanho era o tempo que ele passava sentado lá. Abriu a lata com alguma dificuldade, com os olhos atentos à TV, sem prestar muita atenção na força que fazia com os dedos até ouvir o estalo da lata sendo aberta e o gás escapando. Kenny sorriu antes de dar o primeiro gole direto da lata, pois não havia ninguém em casa para falar sobre a importância de porta-copos ou sobre os perigos de beber direto de uma lata e pegar leptospirose.

Kenny amava Stan com todo o seu coração, era um dos melhores amigos que ele poderia ter na vida, mas morar na casa dele acabava trazendo à tona manias muito específicas de Stan que ele não compreendia, desde a época que dividiam o apartamento quando eram pouco mais do que garotos. Stan não era uma pessoa cheia de manias, na verdade, e todas as que ele de fato conservava eram muito menos irritantes e patológicas do que as de Kyle (pelo menos o Kyle do qual o loiro se lembrava, naquela época). Mas o moreno levava algumas coisas muito a sério. Duas delas eram porta-copos e leptospirose, ou doenças provenientes de ratos em geral.

Como Stan e Sally tiraram a noite para ir a um jantar de casais, ou alguma coisa do tipo pela qual Kenny estava absolutamente desinteressado, o loiro aproveitou que teria a noite inteira sozinho em casa para usufruir da televisão em um volume ofensivo e cervejas geladas sem a preocupação de ser conveniente com ninguém. Ele não se sentia ingrato por pensar dessa forma. Talvez não mais do que o normal, visto que ele sempre estava aceitando algum tipo de caridade ao longo da vida. Fazia parte da pobreza que ele aceitava. Kenny estava com os pés doloridos – e agora eles estavam descalços e descansavam livremente sobre a mesinha de centro, algo que ele jamais faria na presença de Sally – pois havia começado a trabalhar aquela semana e o corpo ainda estava se acostumando depois de uma longa rotina de vagabundagem. Era um alívio, durante boa parte do tempo, pois agora ele podia pagar a Sally o que achava que devia por cederem a casa a ele, e demorou muito tempo para convencer a mulher a aceitar seu dinheiro, especialmente sob a condição de não dizer nada a Stan. Ele bem que tentou falar com o amigo primeiro, mas a porta foi fechada completamente. Stan recusou veementemente qualquer pagamento, qualquer forma de aluguel, e ficaria profundamente ofendido se descobrisse o acordo entre sua esposa e Kenny. Mas era um risco a se pagar para fazer o que era justo; algo que Kenny estava se esforçando muito para aprender. Naturalmente, havia o lado negativo: a dor na costas, nos braços, no pés e nas coxas.

Ou seja, basicamente, todos os membros e todos os músculos de seu corpo doíam. O emprego de Kenny era em uma das três companhias de mudança de South Park (o que era um grande avanço a nível de cidade, pois quando ele saiu de lá, havia apenas uma). Levantar caixas muito pesadas e ouvir velhinhas resmungando em seu ouvido para que tivesse cuidado com seus patos de cristal, candelabros e flores artificiais não era exatamente o trabalho mais gratificante. Mas Kenny gostava. Gostava de verdade. Era um negócio de família que havia recentemente começado a contratar funcionários de fora; ele trabalhava com dois irmãos gêmeos fumantes que contavam piadas impróprias durante os intervalos. O pai deles era um velho bigodudo e risonho que cheirava a cachaça. Kenny se entendia bem com eles, com a falta de dentes e com a fala incorreta. As companhias e o dinheiro pagavam pelo fato de que ele realmente precisava trabalhar como um cavalo.

Naquela sala escura, com os pés grandes apoiados na mesa, a cerveja descendo pela garganta, assistindo a um filme ruim, Kenny não tinha do que reclamar. Estava feliz.

Então a campainha tocou.

Primeiro, o loiro franziu a testa e virou o rosto em direção à porta, pensando no quão constrangedor seria se ele simplesmente ignorasse e quem estivesse lá fora o visse pela janela. Sua cara de pau não era suficiente para encobrir esse tipo de coisa, mas ele realmente não queria se levantar. Suspirou profundamente e colocou a lata sobre a mesinha, apoiando as duas mãos nos joelhos para se levantar, resmungando baixinho um palavrão. A campainha tocou de novo, e agora ele começava a ficar irritado.

Mas ao abrir a porta, a irritação se desfez como pó, dando lugar a um nervosismo que fez com que todos os seus músculos doloridos se contraíssem. O frio lá de fora soprou em seu rosto e arrepiou todos os pelos dos braços expostos, e ele tinha muitos, tão loiros que não apareciam. Vestia uma camiseta branca manchada de ketchup, de manga curtas, que não o protegiam do vento frio e da neve que caía abundantemente agora, como se ameaçasse uma tempestade. O frio não chegou a passar pela cabeça de Kenny, apesar de seu corpo assimilar a sensação, porque estava distraído pela figura de Kyle Broflovski em pé à sua frente, com os cabelos ruivos sujos de neve, o rosto tão pálido que as sardas nas maçãs da face dele até pareciam mais evidentes, apesar de a luz da varanda estar apagada. Ele desaparecia em um casaco preto grande demais para o seu corpo, e um cachecol que poderia ser verde escuro ou azul marinho, era difícil enxergar. Kenny umedeceu os lábios. Os olhos verdes que o encaravam assustados eram tão vermelhos em torno das pálpebras, o nariz parecia escorrer e o rosto dele estava molhado. Os braços cruzados protetoramente, abraçando o próprio tronco como se quisesse se fechar, e ele chegou a dar um passo para trás ao que viu o loiro.

Sua pergunta foi simples e direta:

-Cadê o Stan?

E aquilo ficou preso no crânio de Kenny, fazendo com que ele se esquecesse de como falar durante alguns segundos; estranhou a forma como Kyle ignorou sua presença, sem qualquer revolta por ele estar ali, sem fazer qualquer pergunta sobre. Porque já estava morando na casa de Stan há quase três semanas, e durante todo aquele tempo, nenhuma vez Kyle havia aparecido lá. O loiro não fez quaisquer perguntas a respeito para Stan, por saber que era um assunto delicado, mas passou todos aqueles dias ansioso pelo momento em que as coisas estariam claras. Provavelmente Stan já havia contado, talvez tivesse sido esse o motivo do desaparecimento. Ou talvez eles não se vissem com tanta frequência quanto Kenny havia imaginado; embora isso parecesse improvável. De qualquer forma, o fato de que Kyle não parecia ter nada a dizer a respeito soou estranho e até mesmo um pouco doloroso.

Não que o loiro desejasse que Kyle sofresse com aquilo. Não era o que ele queria, mas certamente era o que ele esperava.

-Cadê ele? – A voz de Kyle veio para arrancá-lo dos pensamentos, abrupta e mais ansiosa dessa vez, enquanto o ruivo dava um passo para frente.

E aquilo fez com que Kenny engolisse o pensamento egoísta, parando para olhar dentro dos olhos inchados do outro homem. Umedeceu os lábios com nervosismo.

-Ele não tá, ele e a patroa saíram. Você... – O loiro disse, franzindo a testa ao descer os olhos para a mão de Kyle que estava parcialmente escondida por dentro do casaco. Logo voltou a erguer a cabeça, encarando-o de frente. – Porra, o que houve? Você tá bem?

-Eu só... Eu preciso dele. – O ruivo respondeu com uma voz fraca e falhada, sacudindo a cabeça ansiosamente, engolindo seco. A expressão em seu rosto era desolada como a de uma criança, tremendo de frio, e isso provocava uma sensação terrível na boca do estômago de Kenny. Uma sensação familiar, que ele já havia sentido outras vezes na vida, mas há muitos anos atrás. Era a mesma sensação de quando Karen era apenas uma garotinha, e seu pirulito caiu na terra enquanto eles brincavam no parquinho. Um instinto protetor incontrolável.

Então, ele fez o que qualquer homem faria. Deu espaço para que Kyle entrasse na casa, estendendo o braço para puxá-lo afetuosamente em direção à porta, oferecendo um afago breve nas costas dele. E o toque fez com que o tempo diminuísse um pouco, sem parar completamente, apenas o bastante para que o rosto de Kyle virasse em direção ao dele tortuosamente devagar e as pálpebras piscassem como em um gesto calculado, não involuntário. E a mão de Kyle saiu de dentro do casaco enquanto ele se movimentava, sendo iluminada pela luz da televisão, que agora exibia alguma propaganda de shampoo. Kenny continuou de costas para ele, segurando a madeira da porta entre os dedos em um aperto tenso, questionando-se se aquilo estava de fato acontecendo ou se ele deveria ter parado na sétima lata. Umedeceu os lábios, liberando o ar dos pulmões pela boca lentamente, como se isso pudesse ajudar o nervosismo a diminuir. Os músculos por dentro da carne pareciam mais moles do que tensos, e uma cócega estranha surgia na boca do estômago do loiro, que fechou os olhos e sacudiu a cabeça, afastando os fios de cabelo dos olhos. Fechou a porta.

-Bom, eu não sei se ele volta tarde, mas com essa neve... Talvez seja melhor você esperar aqui.

Kyle apenas assentiu com a cabeça, mordendo o lábio inferior em precipitação, ansioso por algum motivo. Era um tanto óbvio, mas Kenny preferiu ignorar. Enquanto o tempo parecia se mover normalmente, ele assistiu ao ruivo andando até o sofá com a intimidade de quem é de casa, levando as duas mãos ao rosto para esfregá-lo. Estava em frente à televisão agora, e a luz baixa dos comerciais iluminava sua pele o suficiente para Kenny perceber a mão machucada dele, com sangue fresco escorrendo pelos dedos, manchando as costas da mão, mas o ferimento era na palma. O sangue chegou a sujar a bochecha dele sutilmente, mas Kyle não pareceu perceber, e Kenny começou a se aproximar.

Por um instante, sentiu como se estivesse tratando de um cervo montanhês que poderia se assustar com qualquer movimento brusco. Nunca foi fácil ver Kyle numa condição de fragilidade, porque desde criança, era a pessoa mais forte que Kenny já conhecera. Mas o sentimento logo esvaiu, dando lugar a uma raiva impulsiva que fez com que o loiro quase agarrasse o punho dele para ver a mão de perto. Chegou a estender o braço para tocá-lo quando estava perto o suficiente, mas Kyle se encolheu com a testa franzida, encarando-o em defensiva.

-O que é isso? – Perguntou em uma voz levemente descontrolada, ignorando como Kyle se encolheu no sofá.

-Não é nada, calma. – Ele respondeu, voltando a esconder a mão por dentro do casaco, sem afastar os olhos do outro homem. – Credo, relaxa.

-Aquele gordo filho da puta te machucou?

-O quê? Não!

-Eu vou matar ele.

Kyle se levantou, a linguagem corporal visivelmente irritada, com o queixo erguido para encarar Kenny com sobriedade, estreitando os olhos.

-Não foi ele. – Disse o mais calmamente possível. – Meu deus, Kenny, olha o que você pensa dele.

A única resposta foi um suspiro pesado, intenso, porque aquela era uma discussão na qual ele se recusaria a entrar. Essa sempre foi a maior diferença entre os dois; Kenny não sentia a necessidade constante de debater assuntos dolorosos, delicados, polêmicos, nada do gênero. Escolhia bem as batalhas. Enquanto Kyle tinha uma dificuldade tremenda de silenciar. A resposta foi satisfatória o bastante para que o loiro se sentasse ao lado dele no sofá com as pernas bem separadas, mantendo uma distância considerável – mais por respeito do que qualquer outra coisa -, esfregando o próprio maxilar com a mão. Kyle continuava encolhido no canto, com o cotovelo apoiado no braço do sofá e a cabeça baixa, encarando o chão.

-Ei. – O loiro após alguns segundos em silêncio, escorregando a mão no estofado para mais perto do outro, sem chegar a tocá-lo. – O que aconteceu com você?

O ruivo fechou os olhos, balançando a cabeça sutilmente.

-Eu não posso falar disso com você.

-Ah, qual é. - Kenny disse com um sorriso que ficava evidente na voz, mas Kyle não chegou a ver, pois não olhava para ele. – Eu sei que eu não sou eloqüente como o Stan, e provavelmente eu não sei dar os conselhos inteligentes dele, mas... – Hesitou por um instante, umedecendo os lábios enquanto estudava o perfil elegante do rosto de Kyle. – Parece que você precisa de alguém.

O suspiro de Kyle foi impaciente, porém resignado. Ele deitou a cabeça para trás um instante, encarando o teto em vez do chão, e um sorriso insinuou aparecer em seus lábios, embora muito discreto, antes do ruivo finalmente virar o rosto para encarar Kenny de frente, colocando as duas mãos unidas entre as coxas.

-Desculpe. Eu só tô um pouco nervoso ainda.

-Tô vendo. – O loiro respondeu em uma voz mais aliviada pelo contato visual, esperando durante alguns segundos por uma resposta que não viria. Então, apoiou as mãos nos joelhos para se levantar com um gemido cansado. – Olhe só, o Stan tem uma cabine cheia de bebida boa pra ocasiões especiais. Agora, eu particularmente acho que ele me daria permissão de abrir uma agora. Mas eu não conto nada se você não contar.

-Você trata dos problemas com pinga? – Kyle disse, ainda com uma voz rouca de choro, acompanhada de uma risadinha breve.

Kenny apenas encolheu os ombros, como se não houvesse outra forma de tratar dos problemas. Nenhuma que ele conhecesse, ao menos.

* * *

Os copos usados eram de vidro, do tipo que só se usa para tomar suco de laranja, mas Kenny nunca entendeu a utilidade de copos específicos para cada bebida. Poderia tomar refrigerante em xícara e leite em copo de cristal (não que já tivesse tido um copo de cristal para testar a teoria). Talvez não gostasse de copos de bebida porque eram sempre muito frágeis aos dedos rudes dele, mas de uma forma ou de outra, Kyle também não pareceu se importar; o que Kenny estranhou, pois quando veio da cozinha com dois copos de vidro e uma garrafa de vodka cara embaixo do braço, tinha certeza de que receberia alguma crítica. Aí não soube dizer se a crítica não veio porque Kyle estava diferente ou se a tristeza simplesmente lhe tirava a vontade de criticar.

Agora, os dois estavam com os pés apoiados na mesinha de centro bagunçada. Precisariam arrumar aquilo antes que os donos da casa chegassem, mas no momento, não era uma prioridade. Kenny já estava bêbado. Bastante bêbado. Mas não inconvenientemente bêbado: era controlado e experiente demais para isso. A cabeça estava leve, os músculos pareciam moles, os olhos já não abriam completamente, mas estava relaxado e feliz. Kyle havia bebido apenas o suficiente para que os ombros perdessem a tensão e a mão parasse de latejar. Contou ao loiro que fez aquele machucado quebrando um abajur na parede, cortando a palma com o caco grosso que estourou em sua mão, e essa era a verdade. Talvez Kenny não tenha acreditado completamente, mas o que ele acreditava ou não era um problema dele.

Estavam descalços. Dentro da sala, a calefação os mantinha aquecidos e confortáveis o bastante. Kyle continuava de meia, um par de meias pretas e folgadas demais para seus pés pequenos, que provavelmente nem pertencia a ele. Continuavam sentados um tanto afastados, por medida de precaução, tentando manter a estranheza que já era tão comum entre eles desde que Kenny voltara. Mas a estranheza se diluía aos poucos, conforme os dois falavam sobre amenidades. Começaram falando sobre o filme terrível (que já havia terminado, pois a conversa já acontecia há quase duas horas) que passava na TV, o que levou a uma conversa extensa sobre a diferença entre os gostos cinematográficos: Kyle gostava de filmes iraquianos, franceses e espanhóis, ou em preto e branco, ou documentários sobre fatos curiosíssimos com os quais ninguém mais se importava. Kenny gostava de filmes com coisas que explodissem, perseguição de carros, tiros e sexo. Porém, quando estavam juntos, desenvolveu um gosto por filmes antigos de comédia, e perdeu a paciência com comédias hollywoodianas imbecis.

Enquanto a conversa acontecia, Kyle parou para olhar para o outro homem. Olhar de verdade, de forma fixa, estudando suas feições. Ele havia envelhecido, é claro, todos eles tinham. A pele já era um tanto marcada por linhas de expressão, muito suaves, que só eram percebidas quando se encarava de verdade. Ele cultivava uma barba rala um pouco mais clara do que o loiro dos cabelos, que quase parecia ruiva dependendo da luz. E a respiração de Kyle ficou alterada quando os pensamentos embriagados começaram a invadir seu cérebro, pensando no quanto Kenny era inteligente; não intelectualizado, mas inteligente de verdade. Como ele tinha as próprias ideias, uma visão de mundo crua baseada em instinto, um senso crítico tão afiado, um humor tão perspicaz, um desinteresse e uma falta de paciência para livros e padrões. Falava com tanta segurança, despido de qualquer arrogância, de qualquer pretensão. Era tão mais inteligente do que sabia que era, e isso o tornava tão atraente. Tão atraente. Kyle estremeceu por dentro.

Ao perceber que era estudado, Kenny levou os olhos azuis (e Kyle nem podia começar a descrever o quão azuis eles eram) para encontrar com os dele, oferecendo um sorriso de garoto quase tímido, coçando o nariz com a palma da mão.

-Então. – O loiro disse, interrompendo os pensamentos sórdidos do ruivo. Deu um tapa leve na própria coxa, apertando o copo na outra mão. – Você não vai me contar por que apareceu na porta que nem um vira-lata na chuva?

Agora foi a vez de Kyle rir envergonhado, cobrindo a testa com a palma, massageando as têmporas demoradamente. Bufou, balançando a cabeça como quem não sabe o que dizer, então apenas ofereceu o copo vazio para que Kenny lhe servisse mais uma dose; coisa que o loiro obedeceu prontamente.

-Ah, você sabe.

-Não, eu não sei. Ilumine-me. – Kenny respondeu com um tom provocativo, entornando a garrafa no próprio copo também, depois a deixando de volta sobre a mesinha de centro.

Era um assunto que havia sido propositalmente evitado durante toda a conversa. Kyle olhava para o teto, como quem busca as palavras certas, extremamente hesitante quanto ao campo em que eles entrariam agora. Era um terreno difícil. Porém, o olhar complacente no rosto do loiro o tranqüilizava, por algum motivo. Kenny tratava das coisas desagradáveis como se elas tivessem menos importância, menos significado, e isso era incrivelmente assegurador.

-Cartman e eu brigamos. – Ele disse simplesmente.

-Ah, isso é novo. – Kenny respondeu com um risinho curto, levando o copo aos lábios para um gole breve antes de prosseguir. – Por quê?

-Eu não acho que eu deveria expor meu namorado desse jeito pra você.

-Expor? Nós estamos falando do mesmo Eric Cartman? O cara nada por aí do avesso, é a pessoa menos reservada desse mundo. E além do mais... Você veio aqui pra contar essas coisas pro Stan, não foi?

-Sim, mas é totalmente diferente.

-Por quê?

-Porque o Stan não é o motivo.

Houve um momento de silêncio. Kenny ergueu sutilmente o queixo e entortou os lábios em uma expressão pensativa, ponderando a informação enquanto segurava o copo perto da boca, sem bebê-lo. Diferente de Kyle, que segurava o próprio copo entre as duas mãos e dava um gole longo e ansioso, sentindo o líquido arder conforme descia pela garganta de forma barulhenta.

O loiro esticou o braço para apoiá-lo no encosto do sofá, erguendo uma sobrancelha. O cantinho da boca se levantava quase que maliciosamente, apenas por um instante, mas logo os lábios retomaram a seriedade devida, e perguntou:

-O que isso quer dizer?

-Não se faça de idiota, Kenny.

-Não estou. – Ele retrucou em defensiva, inclinando-se para colocar o copo sobre a superfície da mesa ao lado da garrafa, colocando os pés descalços no chão. Gesticulou com as mãos ao continuar, levando-as ao próprio peito, com os dedos dobrados. – De verdade. Me explique.

Kyle fez uma pausa dolorosamente longa, desviando o olhar para a televisão, que já estava desligada.

-As coisas ficaram diferentes depois que você voltou. Tudo. Eu não me sinto normal, o Eric também não, a gente não tá bem. Eu não sei bem o que é, mas eu sei que tem a ver com você. Ele... – Parou um instante para dar um suspiro sufocado. – Ele não dizia nada a respeito, o ego dele não permite, mas depois de quase um mês eu explodi. Eu não agüentava mais o jeito com que ele me olhava às vezes.

-Como?

O tronco de Kenny agora estava virado de frente para o dele, como as pernas de lado no sofá, o braço apoiado no encosto agora deixando sua mão perigosamente próxima dos cabelos ruivos de Kyle. A expressão no rosto do loiro era muito mais séria do que de costume, com as sobrancelhas levemente franzidas, com uma ruga sutil entre as duas, fazendo parecer com que ele estava estranhamente sóbrio.

Kyle voltou a observá-lo, mas logo sacudiu a cabeça perdidamente.

-Como se eu devesse alguma coisa. – Murmurou em uma voz menos tensa, deixando rolar um momento de silêncio antes de soltar um riso curto e inesperado, que chamou a atenção do loiro. – Ele tem certeza de que eu ainda sinto algo por você. Que eu mudei depois que você voltou.

Kenny endireitou a cabeça, formando um bico rapidamente com os lábios enquanto considerava o que estava prestes a dizer, e acabou por levar a mão ao topo da cabeça para alisar os próprios cabelos.

-E mudou? – Arriscou perguntar, estudando cautelosamente o rosto de Kyle.

-Por que eu teria mudado?

-Não sei, por que ele acha que você mudou?

O ruivo deu de ombros, respirando profundamente como se o assunto o cansasse.

-Eu não sei, Kenny, talvez porque homens com ciúme dizem e fazem muita merda.

E para isso, o loiro precisou soltar uma gargalhada. Não foi exagerada, nem muito alta, mas totalmente involuntária e honesta. Porque ninguém nesse mundo sabia melhor disso do que Kenny McCormick; ou pelo menos era assim que ele pensava. E teve vontade de verbalizar isso. De dizer que, sim, ele sabia. Porque durante todos aqueles anos, nada lhe tirou da cabeça que foi sua própria insegurança que destruiu o que eles tinham. Kenny não era um homem inseguro, não em essência. Mas o orgulho ferido podia fazer coisas com a cabeça de alguém, e nesse aspecto, ele podia compreender totalmente a dificuldade de Cartman.

Compadecia-se da dor dele, por mais estranho que isso parecesse. Não odiava Eric Cartman, não acreditava que seria capaz de odiá-lo em qualquer momento da sua vida. Porque com todos os erros medonhos, todos os defeitos terríveis, ele era a única pessoa naquela história que não poderia ser culpada.

Mas Kenny odiava, e muito, o fato de que era Cartman quem dormia ao lado de Kyle toda noite. Odiava a ponto do estômago se contorcer, da garganta arder com o ácido estomacal, da cabeça ferver e dos punhos se fecharem. Procurava não pensar a respeito dessas coisas.

Kyle pegou o lapso de insegurança nos olhos de Kenny, e a forma como a expressão do loiro se derreteu em uma dor latejante por dentro do crânio, como se ele lutasse com força para afastar algum pensamento macabro. Foi rápido. Logo, a cabeça de Kenny estava erguida novamente e a calma corriqueira em seu rosto se fazia presente mais uma vez.

E os dois se olhavam. Ninguém tentava desviar. Ninguém podia, mesmo que quisesse, quebrar aquele contato visual.

O ruivo umedeceu os lábios, seu rosto pálido levemente corado nas bochechas pelo frio.

-Eu esperei tanto que você voltasse. – Sussurrou tão baixo, quase que para dentro.

Kenny não reagiu nos primeiros momentos.

Não era bom com as palavras. Tinha fadiga dessa necessidade de discutir relações e verbalizar sentimentos, porque convivia bem com a simplicidade das coisas que são como são. Não era a primeira vez, durante aquela noite, que se encontrava encurralado entre o desejo e a consciência, sem poder distinguir com clareza o que era real do que era apenas saudade disfarçada. Não podia culpar a bebida por nada disso. Estava perfeitamente são, terrivelmente são.

Tanta coisa havia mudado, ele sabia. Eles não eram mais dois garotos. Já sabiam quem eram de verdade, não tinham mais a segurança que as ilusões proporcionam. Sabiam que relações se desfazem o tempo todo, que os gostos mudam, que a independência precisa ser conquistada, que as coisas dão errado. Não acreditavam mais em “para sempre”. Kenny tinha consciência disso tudo quando escorregou a mão do encosto do sofá para o rosto macio de Kyle, sentindo-o pela primeira vez em tantos anos, deslizando a palma para envolver a bochecha dele. E a textura era exatamente a mesma da qual ele se lembrava, que o atormentara durante tantas noites. Kyle apenas fechou os olhos ao toque, parando de respirar durante alguns segundos, e Kenny quase podia sentir o coração dele acelerando dentro do peito. Diria, mais tarde, que a bebida o confundiu e que não sabia o que estava fazendo; o que seria mentira. Não foi como na noite em que comeu Bebe Stevens no quarto de hóspedes da casa de Cartman, em que a bebida realmente influenciara, junto com mais uma pá de sentimentos feios. Esses sentimentos não poderiam estar mais distantes dali enquanto Kenny deslizava para mais perto do ruivo no sofá, e as pontas dos dedos pressionavam na pele branca e quente, contra o toque frio das digitais do loiro. Kyle ergueu um pouco o queixo ao encará-lo, os olhos verdes entreabertos e assustados, encarando a certeza inquestionável daqueles olhos azuis magníficos, sentindo o cheiro suave do álcool mesclado a um aroma tão familiar, tão inexplicável, tão delicioso que emanava da pele de Kenny, das roupas que ele usava, dos cabelos, um cheiro tão único e intoxicante que Kyle fechou os olhos instintivamente ao inalar. E os lábios entreabriram em precipitação, ansiosos, quase trêmulos quando a respiração quente de Kenny colidia contra a sua pele. A sensação da boca quente e molhada do loiro encaixando pela sua era tão confortável; a forma como a saliva fazia com que a parte interior do lábio escorregasse para o encaixe perfeito, e a ponta do nariz de Kenny roçava pela sua bochecha com o rosto tão próximo, até que a língua grossa, molhada e flexível do outro homem invadisse a sua boca, agora de forma mais esfomeada, com pressa, enquanto a mão descia do rosto para a lateral do pescoço do ruivo, segurando-o bem pertinho, como se temesse que ele fosse desaparecer.

Mas Kenny jamais o deixaria escapar de suas mãos novamente. Jurou isso a si mesmo enquanto o envolvia com o braço livre, puxando o corpo de Kyle bruscamente contra o seu dentro daquela sala escura, iluminada pela luz de um poste que entrava pela janela. E lá fora, tudo era neve.



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