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História Trégua Suspensa - Blind


Escrita por: caulaty

Capítulo 14 - Blind


Uma nevasca e uma conversa ao telefone, separadas por aproximadamente seis horas, mas tão costuradas na formação frágil e certeira da conspiração universal. É engraçado como as coisas acontecem.

Stan e Sally chegaram em casa muito mais tarde do que pretendiam. Deixaram o jantar quase uma da manhã, depois de uma sequência consecutivas de bocejos de Sally, e embora Stan estivesse bastante entretido com a cerveja e a conversa, debatendo empolgadamente o documentário no Discovery Chanel sobre o tigre de Sumatra com um colega do trabalho, decidiu que era hora de ir. Dentro da casa do casal de amigos, não perceberam o quanto o tempo havia piorado. Stan deu a Sally seu sobretudo cinza e pesado, cobrindo seus ombros com ele para proteger a esposa do frio. O amigo ainda sugeriu que eles poderiam passar a noite lá, mas Sally nunca se sentia confortável dormindo na casa de estranhos. O olhar que ela lançou a Stan foi o suficiente para fazê-lo entender que arriscariam dirigir na neve.

Moravam a cerca de meia hora da cidade, o que já era um caminho longo se tratando de South Park, onde tudo era muito próximo e acessível. Ele ligou o aquecedor e dirigiu a caminhonete em silêncio, sem resmungar sobre a visão precária, já que Sally havia encostado no banco para cochilar. A estrada estava escorregadia e a neve não parava de cair, mesmo que o limpador de parabrisas constantemente afastasse a camada de neve que se formava no vidro. Após dez minutos na estrada, dirigindo cautelosamente devagar, tomou a decisão ajuizada de parar no posto de gasolina 24 horas para beber café preto e esperar o tempo melhorar. Não devia ter tomado aquela última garrafa de cerveja, Stan pensava.

Ainda teve uma pequena discussão com Sally sobre como deveriam ter aceitado o convite para dormir na casa do colega de Stan.

Chegaram à casa quase três da manhã para uma surpresa. Não acenderam a luz da sala pois perceberam uma silhueta (que acreditavam ser de Kenny) no sofá, pensando que o loiro tivesse adormecido enquanto assistia televisão. Mas Stan não demorou nada a perceber o cabelo ruivo, os braços finos e o nariz inconfundível. Kyle abraçava uma almofada e dormia sem travesseiro ou coberta, encolhido de frio, com os lábios entreabertos. Sally se virou para o marido com uma pequena ruga na testa em questionamento, como se ele tivesse a resposta para aquilo. Percebeu que o rosto de Stan pareceu um pouco mais envelhecido, como sempre parecia quando ele a olhava com preocupação.

Stan cobriu aquele corpo pequeno no sofá com um carinho quase paternal. Havia escolhido um cobertor de microfribas porque sabia que os de lã irritavam a pele de Kyle (que tinha alergia a basicamente tudo). Tomou cuidado para não acordá-lo. Seu coração estava apertado na cavidade, aflito. Stan Marsh demoraria mais do que o normal para dormir aquela noite.

Nove horas da manhã, o telefone tocou.

Stan sempre acordava cedo quando bebia na noite anterior. Havia levantado às oito. Parte dele esperava que Kyle já tivesse acordado e sorrateiramente ido embora, mas foi um alívio ver a cabeça ruiva aparecendo para fora da manta, ainda dormindo profundamente.

Stan bebia um suco de couve com maçã, como de praxe toda manhã, quando ouviu o telefone tocar. Correu da cozinha para a sala, as meias escorregando nas tábuas de madeira, pois todos os outros habitantes daquela casa continuavam dormindo. O copo contendo o líquido verde espumoso continuava em sua mão esquerda enquanto ele tirava o telefone do gancho com a direita.

-Alô.

-Stan. – Reconheceu imediatamente a voz de Eric Cartman, em especial pela entonação única com que ele dizia seu nome, pois a voz em si era pastosa, rouca, assustadoramente séria. – Eu te acordei?

-Não... Não, Cartman. O que foi?

-Bom. O Kyle está aí?

Direto, como sempre.

Houve hesitação. Stan colocou o copo sobre a mesinha do telefone e virou para trás, encarando o rosto adormecido de Kyle por um momento – sabendo que aqueles olhos verdes se abririam a qualquer instante –, enroscando-se um pouco no fio do telefone sem perceber.

-Sim, ele está dormindo. Você quer que eu...?

-Não, não precisa. – Cartman bufou, impaciente, esfregando os olhos de maneira cansada. – Ele saiu muito puto daqui ontem, não apareceu até agora, eu comecei a ficar... Enfim, diga para ele vir pra casa.

Stan precisou mastigar e engolir o desejo de responder que eles não estavam falando sobre uma criança, que não poderia simplesmente manda-lo para casa se ele não quisesse ir. Em vez disso, pegou-se fazendo exatamente o oposto de comprar uma discussão com Eric Cartman. Afinal, seu bom senso dizia que discutir com Eric era o mesmo que tentar convencer uma parede de que ela está errada.

-Está tudo bem? – Stan perguntou. – Aconteceu alguma coisa?

-Ele não te contou?

-Na verdade, eu não... – Algo fez com que ele se calasse de repente. Stan voltou a virar o rosto para enxergar Kyle, que havia se mexido no sofá. Por um segundo, imaginou que foi Kenny que o deixou entrar, e que não seria sábio entregar essa informação a Cartman, caso precisasse explicar que não estava em casa e não chegou a sequer ver Kyle acordado. – Não... Ele não me contou nada. Não quis conversar.

Não soube ao certo porque mentiu para Eric. Mas pareceu a coisa certa a fazer.

-Eu pensei que ele não precisasse, que a ligaçãozinha de gêmeos siameses viados seria suficiente pra vocês. – Uma pausa. Stan não reagiu. – Só diga a ele que eu estou esperando.

E desligou.

Stan suspirou fundo. Sabia que Kyle estava acordado. E não pediria quaisquer explicações.

* * *

Eis uma breve - porém imprescindível - passagem acerca dos olhos de Eric Cartman. Preste muita atenção, pois se os olhos de Eric fossem um tantinho diferentes, talvez tudo tivesse se dado de forma contrária. Foram aqueles olhos mediocremente castanhos que definiram o destino de três pessoas, além dele mesmo. Se ele estivesse ciente dessa responsabilidade, ao menos, mas tudo aconteceu sem que Eric Cartman fizesse ideia da influência de seus olhos sobre Kyle.

Os olhos de Cartman eram, acima de tudo, agressivos. Violentos, sanguinários. E isso não era uma escolha, uma expressão, era apenas o estado natural das duas órbitas; o castanho era mais puxado para o caramelo, com manchas escuras por toda a íris, as pupilas sempre dilatadas como as de um gato no escuro. Eram olhos de julgamento, um pouco mais unidos do que a simetria diria que é apropriado, cor de mel misturado com cravo, brilhantes e predatórios, como se ele estivesse constantemente em caça. Era por conta daqueles olhos que tornava-se tão difícil dizer não a ele, porque eles eram tão esdruxulamente fascinantes e atraíam as pessoas ao mesmo tempo em que as intimidavam, e por isso eram fantásticos auxiliadores na arte da manipulação, que Eric dominava com maestria. Mas seus olhos não eram manipuladores, ao contrário disso, eram muito honestos. Um par de verdade crua atirada à face de quem quiser e também de quem não quiser.

E Kyle os amava com tudo o que se tem para amar um par de olhos. Pois eram a coisa mais desafiadora em sua vida, e isso o motivava além do imaginável. Os olhos de Cartman eram parcialmente responsáveis pela pessoa que Kyle havia se tornado. Passara a infância sendo arrancado do chão por aqueles olhos, que eram mais intensos do que o riso debochado e as palavras ferinas. Eric manipulava, seduzia, mentia, mas seus olhos sempre diziam a verdade. Foi através dos olhos que Kyle soube que a relação delicada que eles compartilhavam não era constituída apenas de provocação, ódio e discordância. Depois que Kyle se deu conta do que aquele brilho satisfeito nos olhos de Cartman realmente queria dizer, aquele brilho presente toda vez que ele tirava o ruivo do sério e o fazia levantar a voz, sentiu-se idiota por não ter percebido antes. Cartman o amava e seus olhos não mentiam a esse respeito.

Por mais que odiasse admitir, Kyle desejava a aprovação dele. Não nas coisas banais, ele quase tinha prazer em discordar de bobagens cotidianas e gerar discussões que, apesar de não exatamente construtivas, gerassem aquela faísca tão comum entre eles. Mas tratando-se das coisas sérias, Cartman era o seu ponto de segurança. Com todos os seus defeitos – e era inegável que ele tinha muitos -, Cartman sempre fora um homem com senso de liderança, genioso, destemido. Não aceitava o fracasso. E todas as realizações de Kyle eram mais deleitosas quando eram reconhecidas por Eric, quando seus olhos deixavam de lado todo o orgulho daquele ego frágil e enxergavam Kyle como uma grande pessoa. O ruivo se alimentava disso mais do que gostaria de admitir.

Isso é relevante para fundamentar o momento em que Kyle chegou ao apartamento aquele dia. Passava das onze da manhã, seus sapatos estavam molhados pela neve e seu nariz avermelhado. Fungou enquanto encaixava a chave na fechadura para trancar a porta, limpando os pés no carpete preto de entrada. Apesar de suas extremidades estarem gelada, ele se sentia bastante aquecido por dentro das roupas grossas que escondiam sua pele marcada. O cheiro de Kenny ainda estava nele, impregnado, como se nunca mais fosse sair. Havia manchas escuras entre as suas coxas pelos chupões da noite anterior, as nádegas continuavam ardendo levemente pelos tapas, pela barba mal feita de Kenny, pela violência das estocadas, a pele continuava irritada. Sentia o gosto do loiro em sua boca, o gosto do pau, do suor, da pele, a textura dos pelos contra suas palmas, seus lábios, como se ele ainda estivesse próximo, respirando o mesmo ar. Sentia-se sujo, e era delicioso.

Deixou as chaves sobre a mesa, tirou a carteira do bolso e colocou logo ao lado da pequena estatueta de elefante que ornamentava o canto morto da sala. Parou um momento para contemplar a vista; era como se South Park tivesse sido coberta por um véu branco de neve, cada telhado das pequenas casas, cada prédio, cada lojinha, assim como as montanhas que eram verdes durante uma pequena parte do verão. Kyle levou as mãos ao pescoço para desenrolar o cachecol, mas hesitou e decidiu não tirá-lo ainda.

Levou algum tempo para perceber a presença de Eric no sofá preto de couro que era encostado na parede, em uma parte da ampla sala que não era tocada pela luz natural que penetrava a janela. Recuou instintivamente ao notar os olhos ferinos o encarando.

-Porra. Você me assustou. – Disse casualmente.

Só então, movido pela necessidade de fazer algo com as mãos, Kyle tirou o cachecol e o colocou sobre o encosto da cadeira. Não fazia sentido ter medo de expor quaisquer marcas roxas em sua pele agora, pois se realmente estivessem lá, Cartman saberia uma hora ou outra. Limpou a garganta, olhando o outro homem de lado, com os lábios em uma linha reta que não esboçava emoção. Aparentemente, não percebeu nada de estranho em seu pescoço. Talvez Kyle não estivesse tão marcado quanto se sentia. Eric segurava um copo de uísque com gelo equilibrado sobre a coxa direita.

Kyle franziu a testa.

-Não é um pouco cedo? – Perguntou, referindo-se à bebida.

-Ou um pouco tarde. – Eric disse, enfim abrindo o sorriso debochado que parecia tornar sua expressão completa.

O ruivo sacudiu a cabeça como se não quisesse alimentar uma discussão, retirando o casaco para descansá-lo junto ao cachecol na cadeira. Ao chegar mais perto, arregaçando as mangas, percebeu as olheiras sob os olhos assassinos de Cartman. Ele parecia tão cansado, sem o rubor comum das bochechas.

Eric ergueu a mão livre, chamando-o para mais perto. Kyle umedeceu os lábios, com medo de se aproximar, como se ele fosse um cachorro que pudesse farejar o cheiro de outro homem em seu corpo. Mas como a maioria dos medos, sabia que este era irracional. Então se aproximou, ainda que cautelosamente.

-Como está sua mão?

Kyle havia se esquecido do corte na mão. Olhou para baixo de relance, encolhendo as sobrancelhas um tanto confuso, até se dar conta de que um pouco de sangue havia secado em torno do corte e o gelo anestesiara a região, pelo menos um pouco. Respondeu balançando a cabeça, como quem diz que não é nada, para que ele esquecesse isso. Agora, Cartman erguia o rosto para fita-lo com um quê de responsabilidade em seu rosto, ainda que não se sentisse propriamente culpado pelo descontrole do ruivo na noite anterior. E para ser justo, não havia sido culpa dele. Kyle deu uma espiada no canto em que era para estar o abajur quebrado no chão, mas Cartman já havia limpado todos os cacos.

Teimosamente, Eric o puxou pelo pulso para que o outro homem sentasse em seu colo. Kyle não resistiu, embora o tenha feito acuado, tímido, ajeitando-se sobre a coxa grossa dele, sentindo a mão grande e firme de Cartman segurá-lo pela cintura. Os dois se encararam de perto. Cartman afastou alguns fios ruivos de cabelo que caíam por cima dos olhos verdes, usando a mão que segurava o copo gelado.

-Eu sinto muito. – Eric disse em uma voz rouca, como se nunca tivesse proferido aquelas palavras antes. – Vamos brigar por outras coisas. Tô de saco cheio de me incomodar com o Kenny de graça.

Kyle apenas o encarou de volta durante um bom tempo.

Em sua mente, estava abrindo a boca e contando tudo o que havia acontecido. Eu deixei que ele me tocasse, eu gostei, eu quis, eu ainda quero mais, tentou dizer a ele. Mas os olhos de Cartman não permitiram. Eram tão certeiros, tão seguros e honestos, carregados de uma fugaz intenção de fazer as coisas melhores. E Kyle poderia contar nos dedos de uma mão só a quantidade de vezes em que Eric demonstrara tamanha consideração em todo o tempo que eles compartilharam juntos.

O ruivo se pegou apenas inclinando para frente e colando os lábios nos dele, segurando seu rosto, como em uma promessa, selando as pálpebras para não enxergar mais aqueles olhos que o envolviam e amedrontavam.



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