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História Trégua Suspensa - Underwater


Escrita por: caulaty

Capítulo 15 - Underwater


 Quase três semanas se passaram. Duas semanas, quatro dias e meio, mas quem é que estava contando? Kenny não estava. Pela primeira vez em vida, ele estava experimentando o amargo gosto que havia imposto a tantas mulheres e um bom punhado de rapazes desde que fizera dezessete anos. Estava tão habituado a ouvir a frase desesperada quando fechava a calça: "você vai me ligar?", e Kenny sempre respondia com um sorriso cafageste, acenando com a mão. "É claro, Amanda", ele dizia, mesmo que o nome da moça em questão fosse Rebecca ou Kate. Ele não poderia se importar menos com isso.

Talvez karma realmente existisse, Kenny começava a concluir, pois agora se encontrava na mesma situação de Amanda, ou Rebecca, ou Kate; estremecendo cada vez que o telefone tocava. Convenceu-se, após a primeira semana, de que Kyle não telefonaria para a casa de Stan (assim como Amanda/Rebecca/Kate se convencera de que Kenny nunca telefonou porque ela havia anotado um dígito errado ao dar-lhe seu número).

Tentou esquecer. Aceitou, ao fim da segunda semana, que aquela noite entre eles não havia sido nada além de uma perigosa mescla entre cerveja, nostalgia e assuntos mal resolvidos. Houve dor quando Kenny se deu conta disso, mais dor do que ele esperava sentir. Mais dor até do que pensou que pudesse suportar. Tudo aquilo transbordou no domingo à tarde, na garagem de Stan. O loiro ergueu o capô da caminhonete - que estava fazendo um barulho estranho há dias e Kenny se ofereceu para dar uma olhada -, inclinou o tronco para frente e fez o que todo homem decente faria: apertou os olhos avermelhados, fungando sozinho na intimidade de uma garagem escura, até que as lágrimas recuassem. Foi uma das únicas coisas que o velho imprestável Stuart McCormick lhe ensinou: "É claro que homens choram, só não fazemos disso um show como uma mulherzinha. O lugar certo para um homem chorar é fazendo coisas de homem, sozinho."

O choro não veio apenas pela sensação de perda, naturalmente. Isso seria uma grande bobagem, chorar por uma perda com oito anos de atraso. Não era como se ele tivesse acabado de descobrir o que havia perdido, porque ele sabia. Sabia que não havia ninguém, no mundo como Kyle Broflovski, ninguém tão forte de tamanho tão pequeno, ninguém tão confiável, tão ético e consciente, tão inteligente e honesto e com valores tão inabaláveis, ninguém de sorriso mais aberto e olhar mais expressivo. Soava muito vazio tentar explicar porque o amava daquela forma, não era o tipo da coisa que coubesse em palavras (e Kenny nunca foi muito bom com elas, de qualquer maneira). Não era racional, portanto, o loiro apenas convivia com o arrependimento. Nunca imaginou que fosse experimentar tal coisa. Por isso, chorava. O peso da consequência de ter jogado fora algo real, que a maioria das pessoas busca a vida inteira e morre sem encontrar. Chorava não somente pela perda de Kyle, mas também pela pessoa que ele poderia ter sido se nunca tivesse deixado South Park para trás.

Quando Stan entrou na garagem, o loiro sujou a testa de graxa ao tentar secar as lágrimas apressadamente, como se nada tivesse acontecido. A cabeça continuava baixa, os fios dourados cobrindo os olhos como um manto de proteção para não expô-lo. Stan, é claro, não o invadiu. Não havia como não amar Stanley Marsh em momentos como aquele, quando o homem simplesmente colocava uma mão amigável em seu ombro e sorria sem fazer quaisquer perguntas, agindo como se não tivesse percebido a tristeza escorrendo pelos seus olhos. Era exatamente disso que Kenny precisava. Depois daquele dia, tomou a próxima atitude ensinada por seu pai em qualquer situação dolorosa: enterrou qualquer sentimento ruim o mais fundo possível no arquivo do seu cérebro e seguiu em frente. Kyle não aparecera na casa de Stan desde o acontecido e, em partes, Kenny acreditava que isso se devia à percepção impecável de Stanley. Acreditava que Kyle tivesse medo de que o amigo soubesse exatamente o que ele estava sentindo assim que pusesse os olhos nele; Kenny não ficaria surpreso se tal coisa acontecesse.

Teve exatamente quatro dias e meio de paz, aos trancos e barrancos, não parando para pensar um segundo. Trabalhou como um cavalo, ficando no galpão até mais tarde todos os dias, pois era o único lugar de South Park em que não havia qualquer aspecto que o lembrasse da vida que levava antes. Passava o dia descarregando móveis em casas de desconhecidos, relembrando o que era sentir calor, ouvindo as sacanagens que os rapazes falavam enquanto subiam escadas íngremes carregando armários enormes. E conseguia sorrir. Depois de dias longos e exaustivos, sentava-se no banco do lado de fora da empresa com os irmãos gêmeos e um homem chamado Earl que tinha o sotaque mais caipira que Kenny já ouvira. Dividiam cigarros e café, faziam comentários sobre as curvas do corpo da mulher para a qual haviam feito a mudança naquele dia. Era um lugar seguro onde Kenny esquecia-se de tudo.

Ou pelo menos ele acreditava que fosse um lugar seguro.

Estava perto do meio dia. Eles tinham passado a manhã inteira enchendo o caminhão de móveis e passariam a tarde inteira descarregando-o, levando todas as coisas a um apartamento em cima de um restaurante japonês, sem elevador. A perspectiva não era boa. Estavam na pausa para o almoço, mas Kenny já havia terminado de comer e foi até o banco sozinho para um cigarro indispensável. Estava fumando muito mais do que de costume, mas seria só por aquela semana. Era melhor do que beber, dizia a si mesmo. Fungou, franzindo o nariz ao sentir o início de uma gripe, enquanto buscava pela carteira de cigarros no bolso do casaco. Estavam acabando. Estreitou os olhos, observando a rua, tudo em volta coberto pelo branco. O que viu ao longe fez com que a mão se esquecesse de vasculhar o bolso a fundo e que os lábios rachados esquecessem de fechar; Kyle se aproximava dele com uma expressão em branco, um cachecol azul e preto que era dois tons mais claro do que o preto do casaco de botões duplos, fazendo com que ele parecesse um homem europeu. Kenny limpou a garganta e olhou para os próprios pés, encarando-os até que o ruivo estivesse perto demais para ser ignorado.

Kyle o encarava, ele sabia. Não conseguiu erguer seus olhos azuis do chão durante um longo tempo, mesmo que o outro o observasse em expectativa de algum tipo de reação. Diante do silêncio, chamou:

-Kenny.

O tom com que seu nome foi proferido não deixou de irritá-lo, pois veio com uma carga de cobrança tão insolente que o loiro levantou a cabeça para fuzilá-lo com as duas órbitas azuis que moravam em seu rosto. E Kyle chegou a dar um passo para trás, ainda que muito sutilmente, como tudo que ele fazia. Kenny quase pode vê-lo engolindo seco, as bochechas levemente ruborizadas de frio ou vergonha; não soube dizer.

-Kenny... - Repetiu, agora com um ar de pedido, amansando o olhar. A expressão rígida de Kenny não se tornou mais branda. - Eu sinto muito.

O loiro finalmente desviou o olhar, pois sentia que uma pontinha de dor estava prestes a emergir. Tensionou o maxilar, rangendo os dentes por um instante.

-O que você quer?

-Conversar.

Ele respondeu com uma risadinha amarga, sem exageros.

-Ah, agora é conveniente pra você? Porque a única coisa que eu queria nas últimas semanas era conversar e você desapareceu da porra da face da terra.

-Eu sei que você tá com raiva.

-Não. Eu não tô com raiva de você, eu entendi direitinho. Você tem todo direito de não querer falar comigo, a sua mensagem foi recebida. Você se arrependeu. Mas não vem até aqui pra lamber ferida, Kyle, eu não preciso da merda da sua piedade.

O ruivo partiu os lábios enquanto ouvia, balançando a cabeça negativamente.

-Não tem nada a ver com isso. Eu não me arrependi de nada.

-Então o quê?!

Houve silêncio. Kenny percebeu que o ruivo separou os lábios para responder instintivamente, muito certo da explicação para o próprio comportamento, mas algo o fez pensar duas vezes. As linhas em seu rosto pálido formavam um semblante aflito, os lábios enrugando em preocupação e vergonha. O loiro apenas o encarou em expecativa, respirando pesado o ar gélido, mesmo sob o sol do meio dia.

-O quê? - Repetiu, impaciente.

-Eu amo o Eric. - Kyle murmurou, como uma criança que confessa uma travessura.

A boca do loiro formou uma linha reta por uma fração de segundos. Esfregou o nariz com as costas da mão e deu um passo para trás, virando de lado, levando a mão ao quadril como se isso o ajudasse a pensar. Kyle continuou ali, de pé, sem mais nada a oferecer.

-Bom. - Kenny finalmente disse, após uma pausa que pareceu muito mais longa do que foi realmente. - Isso facilita um bocado as coisas.

-Não...

-Eu tô trabalhando, Kyle. Vai embora.

-Eu te amo, Kenny.

Os olhos azuis encaravam um pequeno monte de neve fixamente. Não reagiu, nem com palavras e nem com a expressão. Manteve-se completamente em branco, ao ponto de deixar Kyle nervoso com o seu silêncio. O ruivo tentou se aproximar, mas o movimento quebrou Kenny do estado letárgico, fazendo com que ele desse um passo instintivo para trás, enfim erguendo o queixo.

-Isso é tão fodido. - Disse, mais para si mesmo do que para Kyle, sacudindo a cabeça negativamente.

-Eu sei. - O ruivo respondeu, cruzando os braços, encolhendo-se. Foi sua vez de olhar para baixo, ainda que por um breve momento, logo voltando a encarar Kenny com as pupilas dilatadas, os olhos maravilhosamente verdes impossíveis de ignorar.

Kenny cobriu a boca com a mão para esfregá-la, roçando a palma pela pele grosseira e gelada. Sua respiração era visível quando o ar saía quente de seu corpo e se chocava com o ar frio, causando um desconforto na garganta. Demorou mais do que nas outras pausas que fez, como se a possibilidade de não ser desprezado fosse mais difícil de absorver do que o oposto.

-Isso... - Ele começou, confuso, levando a mão da boca à nuca. - O Cartman consegue ser um bosta, mas ele não merece isso. E eu também não.

-Eu sei disso. Por que você acha que eu desapareci?

-Você pelo menos contou pra ele o que aconteceu?! - Perguntou em voz mais alta, quase agressivamente, gesticulando.

-Se eu tivesse contado, não seria eu a vir atrás de você. Ele teria...

-Para. Por favor, para com isso. Não fale como se você estivesse protegendo alguém.

Kenny virou de costas e alcançou a carteira de cigarro, puxando um entre os lábios, cobrindo-o com a mão para protegê-lo do vento enquanto o acendia com um isqueiro que comprara na Colômbia um ano atrás; um dos poucos objetos pessoais que trouxe consigo ao voltar para South Park. Demorou para conseguir acender o cigarro, soltando um palavrão em voz baixa.

Fumou em silêncio, pois Kyle não fez questão de preencher com palavras vazias.

Bateu a cinza na mureta, deixando que caíssem na neve fofa, cobrindo os rastros com o pé.

-Agora pelo menos você entendeu que é possível amar uma pessoa e mesmo assim fazer merda com ela. - O loiro disse com um ar distante, como se estivesse falando sozinho. - Você conseguiu me odiar oito anos exatamente pelo que você fez com o Cartman.

-Kenny... Nós éramos dois garotos. Eu não te odiava por isso, faz muito tempo que eu te perdoei.

O loiro respondeu balançando a cabeça, incrédulo, aproximando a mão que segurava o cigarro para coçar o olho com o polegar.

-Como é conveniente agora, não é? - Enfim responde, encarando-o com os olhos levemente avermelhados. - Desaparecer, voltar quando você quiser e esperar que eu esteja esperando alguma coisa.

-E quem é você pra falar disso?! - Kyle disse em um tom muito mais familiar aos ouvidos do loiro, enfim alterando a voz, o rosto ainda mais corado agora.

-O que isso quer dizer?

Kyle se fechou. Umedeceu os lábios, respirando fundo em arrependimento pelo descontrole, cruzando os braços enquanto se afastava. Antes que a dor pudesse tomar conta de seu rosto, Kyle o cobriu com as mãos, parecendo um garoto que se perdeu dos pais no supermercado. Aquela aparência frágil mexia com alguma coisa dentro do loiro em absolutamente todos os desentendimentos que os dois tiveram desde a infância. Ele sabia que Kyle podia ser muitas coisas, mas frágil não era uma delas. Isso não o impedia de ser corroído por um impulso de abraçá-lo quando o lábio inferior do ruivo estremecia e seus imensos olhos verdes se enchiam de água. E doía. Doía querer confortá-lo. Doía querê-lo.

-Nada. - Kyle respondeu baixinho, balançando a cabeça.

Kenny engoliu seco e deu uma longa tragada para conter quaisquer intenções de falar. Deu uma olhada de relance em seu relógio de pulso.

-Eu preciso ir, Kyle. Tenho que trabalhar. - Tentou explicar de forma delicada, sem saber ao certo porquê, mas a tentativa falhou miseravelmente. Sua voz saiu rouca e impaciente.

-Será que... A gente não pode se encontrar depois? Eu não quero deixar as coisas assim.

Kenny pensou por um momento em dizer "não". Simples assim. Acreditava que era a resposta mais sensata, que pouparia muita dor de cabeça, mas naquele momento, pareceu a palavra mais difícil de ser pronunciada. Encolheu os ombros, indiferente, esmagando a bituca do cigarro na mureta de pedra.

-Pode ser.

Kyle sorriu com o canto da boca. Era um sorriso triste, do tipo mais difícil de se olhar. Kenny apenas deu as costas, esfregando as mãos para aquecê-las, franzindo o nariz para segurar a ardência nos olhos. Malditas lágrimas salgadas.



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