Os dois homens bebiam café. Kenny estava afundado na poltrona vermelh-acinzentada, segurando a pequena xícara branca pelo corpo, não pela asa – a porcelana estava terrivelmente quente contra o toque da sua pele, mas ele mal podia sentir o calor. Não chegaria a queimá-lo. O burburinho tomava conta da pequena cafeteria, vozes de todas as naturezas preenchendo o que, do contrário, seria um silêncio brutal entre os dois. Kyle mantinha os braços cruzados, sentado à frente do loiro no lado oposto da mesa, encarando as migalhas do bolinho que havia pedido, mas não teria estômago para comer.
-Eu pensei em você todos os dias. - Kenny disse de forma apática, como se estivesse comentando sobre o clima frio lá fora. - Eu sei que é difícil de acreditar. Oito anos, é difícil fazer algo todos os dias durante tanto tempo. É um pouco patético, na verdade.
Kyle murmurou algo que ele não compreendeu. O loiro se inclinou para a frente, soltando a xícara sobre o píres de forma barulhenta, franzindo as sobrancelhas.
-Não é patético. - Kyle repetiu, alto e devagar.
Kenny demorou algum tempo para reagir; acabou cobrindo o rosto com a mão para esfregá-lo em um gesto tão característico e infantil, coçando um dos olhos; Parecia, ao mesmo tempo que fragilizado, estranhamente inatingível e distante. Sempre havia algo distante no semblante de Kenny, na verdade (isto é, desde que ele voltara), mas olhando bem de perto e com olhos generosos, o ruivo podia enxergar que tudo o que não havia ali era indiferença. Era um olhar de homem resignado, algo que nunca imaginou que o loiro fosse se tornar, tão distinto do jovem desepreocupado e passional que ele costumava ser. Foi a primeira vez que o percebeu como um homem, não mais um garoto, por mais que aquela forma de cobrir o rosto com a palma instigasse em Kyle o desejo de tomá-lo nos braços e beijar-lhe a cabeça.
-O que você quer, Kyle?
-O que eu quero? - O ruivo rebateu quase com arrogância, como quem ouve uma retórica imbecil. - Eu quero que você entenda.
Kenny respondeu apenas fechando mais a expressão – que já não estava muito calorosa -, deixando muito claro que não compreendia aquelas palavras e também não tinha qualquer intenção de tentar compreendê-las. Na estrutura frágil daquele momento, o peso de uma conversa que acontece única e exclusivamente para resolver algo insolúvel, já era o suficiente para colocar o loiro na posição de um bicho irritadiço e acuado. Kyle tinha um dom inacreditável para irritá-lo apenas pela forma como respirava quando eles discutiam assuntos extremamente íntimos, desde a época em que eram um casal, pois o loiro não tinha o mesmo tato com as palavras e Kyle parecia se aproveitar disso com maestria. O ruivo usava os óculos de leitura (sempre saía do trabalho com eles e sempre se esquecia de tirá-los), pretos e de haste elegante, uma camisa listrada em preto e branco que parecia tão macia contra aquela pele alva, o cheiro da colônia dele provocando o suficiente para que Kenny tivesse vontade de enterrar o rosto naquele pescoço longo. A beleza de Kyle era ainda mais irritante, somada à postura impecável, as pernas dobradas que revelavam um sapato oxford de cores excêntricas e uma meia bordô folgada demais para aquele pé pequeno. A respiração de Kenny começou a ficar mais pesada.
A sensação piorou quando o ruivo voltou a falar:
-Eu também pensei em você todos os dias, de um jeito ou de outro. Nem sempre era bom, mas... Você não pode voltar desse jeito e esperar que tudo esteja igual.
-E quando foi que eu pedi por isso?! Sério. Olha essa merda. - Kenny colidiu o punho fechado contra a mesa, sacudindo a louça na superfície e derramando um pouco de café, endireitando a coluna para se aproximar mais, colocando-se na beirada da poltrona. O tom de voz era elevado o suficiente para que algumas pessoas em volta se virassem para olhar, ainda que brevemente. A expressão de Kyle não se alterou. - Quando é que eu reclamei do fato de que tudo mudou? Eu sei que mudou, eu sei disso muito melhor do que ninguém, porque sou eu que não tenho mais lugar nessa bosta de cidade.
-Você precisa falar desse jeito?
-Preciso.
Kyle espiou em volta, não parecendo particularmente incomodado pela possível curiosidade alheia. Os cachos alaranjados caíram pelo ombro, movimentando-se junto com a cabeça dele, tão leves. Voltou a encarar o outro homem, agora com os olhos mais vivos, os lábios levemente entreabertos como se alguma resposta tivesse morrido na boca, optando apenas pelo diálogo visual durante alguns segundos.
-O que você acha que eu tenho aqui? - O loiro prosseguiu, estreitando os olhos, mantendo as sobrancelhas franzidas a todo momento para transparecer o quanto estava confuso. Não o fazia intencionalmente. Enquanto ele falava, Kyle abaixou os olhos, encarando a mesa à sua frente. - É ótimo que a sua vida tenha seguido em frente, mas todas essas coisas que são importantes pra você... A sua família, os seus amigos, o seu emprego, esse relacionamento, eu não tenho nada disso aqui. E eu não quis ter.
-Então por que você continua em South Park? - Retrucou no mesmo tom desequilibrado, os olhos verdes oscilantes entre a fuga e o enfrentamento. - Por que você continua aqui, se não é isso que você quer?!
-Por que você acha?
Agora foi a vez do loiro usufruir do tom da obviedade, e o gosto foi delicioso em sua língua, tão simples e sem defesas. A voz saiu baixa e macia. Talvez não fosse um homem tão orgulhoso quanto sempre fizera julgamento de si mesmo.
Diante disso, Kyle não soube o que dizer. Era um momento raríssimo, aquele em que Kyle Broflovski ficava sem palavras. Kenny quase teve vontade de tirar uma foto, e teria feito alguma piada a respeito se não estivesse ocupado desistindo daquela tentativa de conversa, arrependido de ter decidido estar lá. O loiro podia ser acusado de muitas falhas, mas auto-destruição definitivamente não era um de seus defeitos. Levantou-se casualmente, puxou três notas amassadas do fundo do bolso e jogou-as sobre a mesa, retirando-se com toda a decência que foi possível.
Saiu da cafeteria, tocando o sininho da porta ao empurrá-la. O ar gelado soprou em seu rosto, fazendo com que fechasse um pouco os olhos, tateando os bolsos por um cigarro. Não havia nenhum. Lembrou-se que precisava comprar outro maço, com urgência. Bufou.
O ruivo não se demorou a aparecer, chamando pelo nome de Kenny – não com apelo ou súplica, mas com o tom que se fala com um adolescente rebelde, precisamente este o motivo pelo qual o loiro não parou de andar. Isso forçou Kyle a apertar o passo e usar uma palavra que normalmente não fazia parte do seu vocabulário.
-Kenny, por favor. - ele disse, alto o bastante para que o loiro ouvisse à distância, parando de andar.
-Não vamos mais fazer isso. - Kenny respondeu enquanto se virava, deslizando os pés pela camada fina de neve que cobria a calçada, fechando mais um botão do casaco. - Tá bom? Não era pra ser tão complicado.
Ele não parecia com raiva, apenas nervoso, então o ruivo tentou se aproximar.
-Eu não quero... - Kyle começou, pausando para umedecer os lábios. - Eu não quero ser prepotente de pensar que eu sou a única coisa que te mantém aqui.
-Mas você é prepotente, Kyle. Por que se dar ao trabalho de disfarçar? Você está adorando essa merda toda.
-O quê?
-Dois idiotas lambendo o chão que você pisa.
-O quê?! - O ruivo repetiu, levando as duas mãos ao topo da cabeça para alisar os cachos para trás, mantendo os lábios rosados e trêmulos separados durante algum tempo, assimilando o que ouvira. As sardas sutis apareciam mais no frio, a pele tão lisa e rosada combatendo o ar gélido. - Eu não consigo pensar em mais nada. Não consigo olhar na cara do Eric, como você acha que eu gosto disso? Você vai me enlouquecer.
-Então o que você tá fazendo com ele?
-Você... - A voz falhou. Ele abaixou a cabeça, apertando os olhos e franzindo o nariz – Você não entenderia.
Kenny mordeu o lábio inferior por um instante, segurando o ar nos pulmões de forma perturbada, sacudindo a cabeça negativamente, pois essa era a única resposta viável. Levou a mão ao peito e prendeu com força o tecido grosso do casaco entre os dedos, apertando-o, deixando o ar escapar pelas narinas lentamente, desviando o olhar para a rua. Carros passavam frequentemente, de forma cautelosa para dirigir sobre a neve. Ornamentos natalinos começavam a ser pendurados no centro comercial de South Park.
-Vai se foder. - Foi tudo o que Kenny conseguiu responder, cuspindo as três palavras de forma amargurada.
Os olhos verdes de Kyle brilharam em resposta, úmidos de irritação. Ele esfregou os olhos brevemente com a mão enluvada antes de marchar na direção do loiro com a postura intimidadora que compensava pelo tamanho dele desde que era criança: Kyle era um tigre movido pelo instinto. Tornava-se um gigante quando sentia raiva – ou qualquer outro impulso semelhante, pois a raiva e a paixão sempre foram muito próximas com ele. Kenny não recuou, naturalmente, como nunca o fez, e o encontro dos corpos terminou em um toque violento, quase brusco, o ruivo levantando o queixo para aproximar o rosto o suficiente e encará-lo. O calor do corpo de Kenny era confortável e incômodo ao mesmo tempo, estranhamente nostálgico e instigante, mas perturbador, cruel.
Foi inevitável levar as mãos à lapela do casaco e puxá-lo com força para colidir os lábios contra os do loiro da única forma que eles conheciam naquele tempo; bruto, seco, agressivo, esfomeado. A mão grande de Kenny envolveu a parte de trás da cabeça dele, afundando os dedos nos cachos grossos, segurando-o com o queixo levantado para penetrar sua boca com a língua de maneira instintiva e cega, sem cuidado, esboçando a raiva acumulada por baixo da pele. O beijo era quente e barulhento, um misto entre a textura gelada da ponta dos narizes roçando pelas bochechas mornas, as mãos escorregando pelo pouco de pele exposta do pescoço e do maxilar, depois envolvendo as vestes grossas.
O ritmo diminuiu. Os lábios deslizavam mais lentamente, ambos respirando o mesmo ar que saía quente das narinas, os braços entrelaçavam o corpo um do outro e o beijo se tornou um abraço apertado. Kenny escorregou o nariz pela curva do pescoço macio do ruivo, inalando o cheiro delicioso que o perturbou a tarde inteira. Amassou o lábio contra o ombro de Kyle e sorriu fraco, balançando a cabeça. Não havia argumentos contra aquilo.
* * *
O apartamento que Kyle mantinha na cidade tinha muitas funções. Quando ele e Cartman brigavam, ele tinha onde dormir. Quando precisava de silêncio absoluto para trabalhar, era o lugar certo. Quando precisava de um esconderijo, era o seu templo. Mas nunca imaginou aquele apartamento como um lugar para fazer algo sujo, errado, imoral, e ainda que tivesse consciência da libertinagem que consistia naquele momento em destrancou a porta, com o corpo quente de Kenny o abraçando por trás cheirando sua nuca, Kyle se recusava a reconhecer o que faziam como algo imoral. Era indecente, ele não negava. Não tinha pretensão de fingir que estava corrompendo tudo o que defendera durante a vida – sobre respeito, honestidade, ética, fidelidade -, mas quando Kenny deslizava os lábios pelo seu pescoço, mordia de leve e soltava uma risadinha, Kyle tinha certeza absoluta de que aquilo não podia ser errado.
Também havia algo erótico sobre essa depravação. Recusava-se a pensar em Cartman como uma vítima – porque, apesar de tudo, respeitava-o demais para sequer pensar nele enquanto Kenny o virava de costas na cama -, mas era inegavelmente excitante como aquilo precisava ser feito às escondidas e ia contra todos os princípios ordenados da vida de Kyle. Quando ele estava de quatro naquela cama (menor do que a que tinha em casa e imensamente mais confortável), arqueando as costas e empinando o quadril, Kyle não era mais o jornalista bem sucedido de postura séria e elegante, nem era mais o judeu espiritualizado que debatia tanto sobre liberdade e questionava tanto as estruturas religiosas, nem era mais o bom filho que almoçava com seus pais todos os domingos e ligava três vezes por semana para saber como estavam as coisas. Tampouco era o companheiro de Eric Cartman; pois em torno dele, o ruivo era sempre manipulador com os artifícios da gentileza e da carne. Ali, com as coxas separadas e as nádegas macias expostas, com a pele parcialmente coberta por uma camada fina de suor pelos beijos e pelo boquete, com a boca e o pescoço avermelhados, Kyle pertencia a Kenny McCormick como nunca se imaginou pertencente de outro homem. Perdia a capacidade de raciocínio, de certo e errado, pois tudo o que importava era a língua flexível do loiro escorregando pela parte inferior de suas costas até a bunda, as mãos firmes que apertavam e arranhavam de leve a pele quente. Tudo o que importava era a respiração pesada eriçando os pelos da nuca, o sorriso sacana com a língua entre os dentes, e a mesma língua era convidada a brincar pela orelha do ruivo enquanto o corpo maior o cobria todinho por trás, encaixando o pau grosso bem apertado entre as nádegas que Kyle separava com as duas mãos, com o tronco caído para frente e o rosto enterrado contra o colchão.
E depois, quando a dor já estava atenuada e a ardência em sua entrada aliviou, assim como a pressão da glande que forçava caminho por dentro do corpo dele, estimulando-o, arrancando gritos, fazendo com que se contorcesse, sem controle nenhum, importava somente virar por cima daquele homem loiro e montar no seu colo com ansiedade, enterrando o membro rígido por inteiro novamente, e importava somente rebolar devagarzinho e socá-lo várias vezes, sem tirar mais de um ou dois centímetros cada vez, e importava somente se agarrar ao pescoço de Kenny e colar o peito suado no dele, respirando o mesmo ar – agora tão quente -, roçando os lábios nos dele sem pressa alguma, brincando com a língua na dele, gemendo baixo, úmido e quente. Segurava-se nos braços fortes do loiro, aquela carne firme e músculos rígidos que o envolviam, sentindo as mãos escorregarem pelas costas, puxando-o contra si mesmo como se fosse possível os dois corpos ficarem mais próximos.
Importava somente amá-lo. De qualquer forma que pudesse.
Ali ficaram até o fim da tarde, quando um filete de luz alaranjada invadiu o quarto através da cortina, anunciando o anoitecer. Estavam tão colados embaixo do cobertor, os corpos na mesma temperatura e entrelaçados como se fossem um só. A última posição em que treparam foi de frente, Kyle com as pernas envoltas no quadril de Kenny, como faziam toda vez no início do namoro, em uma necessidade jovial de beijar até quase engolir o outro. O ruivo esboçou um sorriso ao se lembrar de quando tinham dezoito anos e não conseguiam tirar as mãos um do outro. Como eram jovens, tolos e cheios de vida, de sonhos, sem qualquer noção do que se tornariam. O loiro se remexeu, ajeitando-se sobre ele. Havia largado todo o seu peso sobre Kyle, com as pernas ainda enroscadas, deitando a cabeça em seu peito praticamente todo escondido embaixo da coberta. Tinha vontade de dormir.
Os dedos longos e finos de Kyle brincavam através dos fios dourados, úmidos de suor, acariciando o topo da cabeça do outro e massageando com a palma, distraído. Não sabiam quanto tempo havia passado, que horas marcava o relógio. Kenny ergueu os olhos preguiçosamente, umedecendo os lábios ressecados com a ponta da língua.
-Sua peste. - Murmurou com um riso baixo, amassando o rosto contra o peito nu de Kyle, que retribuiu ao riso, segurando o sorriso largo.
-Você nunca deveria ter ido embora. - O ruivo sussurrou com os lábios contra o topo da cabeça do loiro, deixando um beijo delicado na testa.
-Eu sei.
Gastaram mais alguns minutos naquele silêncio confortável. O quarto era escuro e aconchegante, acomodando uma estante cheia de livros que Kyle não levara para o apartamento em que morava com Eric. Espreguiçou-se sob o peso de Kenny, virando o rosto para buscar o celular sobre a mesa de cabeceira, verificando a hora. Ninguém havia ligado.
-Eu preciso ir.
Kenny se apoiou sobre os cotovelos para erguer um pouco o tronco, endireitando o pescoço e encarando-o de frente com o rosto amassado, os olhos mal acostumados com a escuridão, pequenos e sonolentos. Caiu com o corpo de lado na cama, puxando o cobertor até a metade do peito, bufando.
-Seu macho tá te esperando?
Kyle se sentou na cama devagar, com as pernas dobradas, o corpo esguio formando uma silhueta elegante no escuro. Alisou os cabelos para trás, todo arrepiado de frio, e voltou o rosto para o homem deitado ao seu lado – que encarava-o com certa inquietação -. Inclinou-se para a frente e plantou um beijo demorado no canto da boca de Kenny, acariciando seu peito despretensiosamente, como uma promessa. Roçou a pontinha do nariz pela bochecha dele, parando apenas quando Kenny cedeu com um suspiro resignado.
-Eu senti tanta saudade. - Sussurrou com a boca ainda colada na pele do loiro, tentado a deitar próximo a ele novamente.
Kenny dobrou o cotovelo para levar a mão aos cachos que caíam pela testa de Kyle, afastando os cabelos do rosto dele, ameaçando um sorriso com o canto dos lábios. Aquilo era um caminho sem volta, tinha consciência disso. E podia listar pelo menos dez razões pelas quais seria sensato recusar, mas assim como o ruivo, Kenny também não tinha escolha quando aqueles olhos verdes o encaravam de perto e o hálito gostoso de hortelã chegava às suas narinas. Tudo o que importava eram aqueles lábios rosados, aquele rosto corado pelo frio, aqueles fios de cabelo vermelhos que eram tão expressivos quanto ele. “Você já foi menos imbecil, McCormick”, dizia a si mesmo em pensamento quando Kyle levantava para se vestir. E chegou à doce conclusão de que sensatez não lhe faria bem algum agora.
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