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História Trégua Suspensa - Misplaced


Escrita por: caulaty

Capítulo 19 - Misplaced


Kyle passava creme nas pernas, apoiando um pé no colchão duro – ainda não se acostumara com aquele colchão que, segundo Eric, era caríssimo e fazia muito bem para as costas -, deslizando a mão pela parte interna da coxa macia, espalhando o creme com a palma leve. Cartman lia em silêncio o jornal, que era iluminado somente pela fraca luz do abajur de cabeceira. Parecia concentrado, mas não estava realmente. Kyle o espiava por vez ou outra, encarando com os olhos fixos por não mais de alguns segundos, esperando que ele também o olhasse. Poderia ser um olhar breve, Kyle não esperava por muito. Estava só de cueca, preta e colada ao corpo, mas assim que terminou de se besuntar com o creme de pêra, vestiu uma camiseta azul de algodão e começou a andar em direção à porta.

-Não vai deitar? - Cartman perguntou casualmente, ainda sem tirar os olhos do jornal, com aquela voz de quem não está particularmente interessado na resposta. Eric era muito bom em aparentar desinteresse.

Kyle parou, mantendo-se de costas para ele, hesitante ao umedecer os lábios. Não demorou tempo demais para se virar, apenas o suficiente para que seu rosto estivesse isento de qualquer emoção quando seus olhos encontrassem os de Cartman, sempre tão violentos, tão aguçados.

-Não estou com sono.

-Nem eu. - A resposta foi imediata, enquanto ele abaixava o jornal sobre o colo.

Cartman não falava exatamente com malícia; era muito mais em tom de desafio do que qualquer outra coisa. Isso era intrínseco à relação daqueles dois homens, o desafio. O ruivo já deveria estar habituado com aquele tipo de linguagem, morando com ele há tanto tempo, entregando-se a ele da maneira que fazia. Nos últimos dias, os dois conseguiram encontrar alguma forma de normalidade, pelo menos a normalidade que conheciam – que o restante do mundo já não julgaria como algo saudável – e estava dando certo. Kyle tinha certeza de que estava. As provocações e as grosserias de Cartman estavam mais inflamadas do que nunca, mas Kyle compreendia isso, e correspondia com o máximo de naturalidade possível. Ser um mártir com Eric e aceitar sua prenda não daria em coisa boa.

Porque essa era a única linguagem em que eles sabiam falar um com o outro. O embate egóico, a disputa de controle e de poder, a instigação e a excitação, aquilo era como eles se encontravam.

Demorou algum tempo – mais do que deveria, absolutamente – para que Kyle entendesse o que estava havendo ali. Não era a entonação de desafio comum de Cartman, aquela auto-afirmação sedutora que o pressionava até o limite. O que se passava naquele momento, entre eles, era outro nível. Algo completamente diferente. Eric entregava pelos olhos, seus olhos terrivelmente obscuros, impossíveis de encarar, que não havia nada dentro de Kyle que ele não pudesse ver. Talvez ele estivesse analisando demais aquela resposta. Eram só duas palavras, afinal. “Nem eu”, como isso poderia ser nocivo? Poderia ser apenas o que parecia ser, mas se ele entendia algo sobre Eric Cartman, nada era o que parecia.

-Eu estou cansado, Eric.

Os dedos de Cartman se encolheram, formando algo parecido com uma garra, a palma bem pressionada contra a superfície firme do colchão. O lençol que o revestia era branco e cheirava a gardênia e frescor de amaciante. Enquanto Kyle deixava o quarto, uma decisão foi tomada. Cartman gostava de conhecer o terreno em que estava prestes a pisar antes de fazer qualquer coisa, especialmente uma zona bizarra e irregular como a que havia se tornado a relação que uma vez tiveram. Eles já haviam compartilhado algo extraordinário, algo que não se encontra em qualquer esquina. Nenhum daqueles dois homens acreditava que seria possível ter qualquer outra relação ao longo da vida que fosse tão cruamente honesta, em que tudo de mais feio pudesse ser usado como ornamento atrativo em vez de ser varrido para debaixo do tapete. Aquilo não era humano, quase. Era por isso que todos tinham tanta dificuldade de entender. Houve um tempo, não muito distante, em que Cartman olhava para Kyle e enxergava um mundo de possibilidades de ser um homem diferente, não melhor ou pior, mas que pudesse ter qualquer semelhança com a vida normal que as outras pessoas levavam. Nenhum dos dois era verdadeiramente convencional ou sabia expressar os sentimentos como todos faziam, e nem tinham tal pretensão, pois se compreendiam e se respeitavam como eram, não exigiam qualquer mudança um do outro.

Cartman nunca pensou, em toda a sua vida, que fosse realmente encontrar alguém que o amasse como ele era. Não era um homem inseguro, pelo menos não mais, pois precisou erguer um muro para sobreviver a uma infância inteira de provocações sobre seu peso, o número de parceiros sexuais da sua mãe, sua voz e seu linguajar, seus impulsos de ódio e o fato de que ninguém parecia realmente se importar com ele. Kyle declarou a vida inteira o seu desprezo por ele, mais do que todo mundo, mas no fundo, todos eles sabiam que aquilo só acontecia porque Kyle era o único que se importava de verdade com o caráter, diga-se, “flexível” de Eric Cartman. Todas as outras pessoas pareciam dar de ombros - “deixe, ele é assim, apenas ignore” -, enquanto Kyle era simplesmente incapaz de ignorá-lo. Era incapaz de não discutir. Era incapaz de aceitar que Cartman era uma pessoa genuinamente podre, porque era o único que enxergava que ele não era. Não de verdade. E pela primeira vez em toda a sua vida, Eric Cartman foi amado livre e incondicionalmente por alguém que não fosse sua preciosa mãe. É claro, os xingamentos e as palavras afiadas e as críticas e as reprensões continuavam ali onde sempre estiveram, porque era assim que eles se relacionavam um com o outro, era essa a língua que eles falavam. De alguma forma, Cartman sempre soube que tinha um prazo de validade.

Lembrava-se tão bem dos dias subsequentes à primeira noite que passaram juntos, da adrenalina e do desespero de Kyle ao se perceber envolvido mesmo depois que o efeito do álcool havia passado e ele não tinha mais desculpas para desejar alguém de quem declarou a vida inteira que lhe causava repulsa. Divertia-se com o conflito moral de Kyle toda vez que o puxava contra si, sem dar espaço para que ele pensasse demais, como sempre fazia antes de dar um passo. E arrancou dele a necessidade de ponderar sobre tudo. Lembrava-se das manhãs que chegavam sem que nenhum dos dois tivesse dormido, porque adentraram a madrugada trepando com tanto suor, cuspe e barulho que beiravam a exaustão quando a coisa toda chegava a um fim, e Kyle deitava em seu peito como se pudesse fazer dele a sua própria cama, e sempre uma mão mal intencionada passearia pela curva entre o quadril e a cintura de Kyle, apertando a carne branca e úmida dele com desejo, se é que ainda lhe restara alguma energia no corpo para sentir tesão. Nunca trocavam palavras românticas, mas seus olhares de vez em quando se encontrariam e simultaneamente ofereceriam sorrisos tão sacanas, tão iguais, e Cartman desviaria o olhar para o teto com uma risada de prepotência, dando uma palmada na coxa dele, cravando as pontas dos dedos logo em seguida de forma possessiva. Kyle sempre reclamaria, pois fazia parte do jogo.

Era simples naquela época. Cartman não precisou repetir essa brincadeira muitas vezes para se dar conta de que queria tê-lo para si, para sempre. Não seria assim, ele sabia. Mas também não era um pensamento incômodo. Eles nunca seriam um desses casais que precisavam se agarrar a uma ideia de eternidade (como se qualquer coisa nesse mundo durasse para sempre) para que algo valesse a pena. Ele não tinha tempo para esse romantismo barato e imbecil. Aquilo não lhe interessava.

Tudo não passava muito de uma lembrança distante naquele momento, e como todas as lembranças distantes, era agridoce e tinha um suave aroma de nostalgia. Acreditava que os seres humanos gostavam de se agarrar a coisas que já passaram, o que julgava patético e sem sentido, mas seu peito discordava, preso aos dias bons que já haviam tido naquela cama.

Agora, Kyle não queria mais se deitar com ele. E Cartman particularmente também não queria que ele se deitasse. Porque aquele homem não era mais o Kyle dele; agora, lembrava-o do mesmo Kyle pelo qual Cartman passou anos de sua vida nutrindo um sentimento não correspondido. Até então, ser perito na arte da dissimulação lhe ajudou bastante. Não precisava lidar com aquela coceira filha da puta dentro do peito quando pensava em Kyle à noite, sozinho, bêbado, num tempo em que não cogitava que eles pudessem se tornar algo real.

Mas se tornaram. E fora lindo. E acabou.

Cartman ainda tinha uma questão pendente.

Não dormiu aquela noite. Mas tinha uma resistência extraordinária com relação ao sono; ficar acordado não era um problema. Seguiu com seu dia normalmente. Levantou, programou a cafeteira e foi tomar um banho de quinze minutos. Voltou, vestido em seu terno com uma gravata azul, para beber o café forte, preto e sem açúcar, em uma caneca azul maior do que sua própria mão e comeu duas torradas com manteiga e uma fatia de queijo coalho. Era um dia normal. Quando voltou ao quarto para buscar a maleta com seus papeis, abrindo a porta com certa grosseria, sem cuidado para não acordar Kyle. Fez um esforço desumano para não olhá-lo, enquanto remexia nos contratos para se certificar de que tudo estava dentro da maleta. Umedeceu os lábios e abaixou um pequeno maço de folhas grampeadas, impressas com termos legalmente precisos nas quais sua atenção não estava focada. Virou o rosto hesitantemente, cedendo à vontade corrosiva de observar aquela pequena figura encolhida sob o edredom, apenas os cachos de cabelo ruivos à mostra.

Kyle Broflovski era um tigre aos olhos dele. Um maldito tigre vermelho que se movia com uma graciosidade assassina, com olhos verdes crueis, implacáveis, mas imensos e doces, que hipnotizavam e faziam um desavisado se esquecer de que ele era perigoso. Cartman sempre se policiou para não amá-lo demais. Talvez a recíproca fosse verdadeira.

Conviviam na mesma casa se comportando como estranhos.

Cartman pegou a maleta, passou pela sala como um vulto, agarrou as chaves e saiu.

* * *

Os dias não eram especialmente belos antes do natal, mas aquele se superava; o início da manhã vinha com cara de fim de tarde, devido ao céu branco-acinzentado que não permitia que um raio de sol sequer transparecesse. Talvez aquele clima medonho tenha sido encomendado especialmente para a ocasião, Cartman considerava, enquanto estacionava o carro do outro lado da rua, logo em frente ao estabelecimento de madeira branca com uma enorme placa em vermelho que dizia: “MUDANÇAS DOIS IRMÃOS”. Era o escritório e depósito da maior companhia de mudança de South Park, um ambiente com o qual estava bastante acostumado. Não era a primeira vez que estacionava ali. Inclusive, já conhecia um ponto entre as árvores - agora cobertas de neve - no pequeno parque nas proximidades, um lugar em que Kyle provavelmente jamais reconheceria seu carro. Não era Kyle que ele esperava ali, do lado de fora, de braços cruzados e apoiado no capô, umedecendo a barra do casaco grosso que comprara em Viena, quando viajou com Kyle pela Europa no ano anterior. Seguira seu namorado até aquela rua mais vezes do que podia contar, e depois fazia o mesmo caminho que ele até seu apartamento, também no centro da cidade, estacionando logo em frente ao prédio. Parte dele acreditava que deveria se esconder melhor, parar o carro uma quadra antes, mas o bom senso lhe dizia que Kyle estava ocupado demais para olhar pela janela quando estivesse lá em cima com outro homem.

Esse outro homem em questão saía do estabelecimento usando luvas furadas, tentando aquecer as mãos próximas ao rosto, soprando uma fumaça que era gerada pela colisão entre o ar gelado e o calor da boca. Cartman reconheceu algo de diferente nele. Kenny McCormick costumava ser um desses espíritos leves, uma dessas pessoas que parecem flutuar em vez de andar, que sorriem para estranhos na rua. Agora, seu olhar era compenetrado, rígido, as pupilas pequenas expondo ainda mais o azul que morava em seus olhos. Até aquele azul estava diferente, mais escuro. Podia ser a ausência de sol. Sua pele era quase amarelada, a pele tão semelhante a dos homens poloneses com os quais fazia negócio, com sardas que eram diferentes das sardas ruivas de Kyle. Kenny era um homem bonito e essa beleza não fazia bem ao estômago de Cartman. Não demorou muito para que o loiro o visse do outro lado da rua. Parou de andar. A fumaça continuava escapando dos seus lábios e se dissipando no ar matinal. Kenny olhou para os dois lados antes de atravessar a rua, apressando o passo como se precisasse atingir logo um objetivo primordial.

-O que você quer? - Kenny perguntou, ainda longe dele, projetando a voz para ser ouvido.

Cartman quase sorriu enquanto estralava os dedos de forma barulhenta, desencostando-se do carro.

-Vamos ter uma conversinha.

* * *

A neve havia coberto toda a calçada em frente à casa de Stan Marsh. O gramado, que debaixo daquela camada grossa de branco, era verde como os olhos do homem que dobrava a esquina e caminhava em direção ao mesmo jardim do qual Stan removia camadas e mais camadas de neve com sua pá velha. Suas mãos já estavam calejadas do trabalho manual daquele fim de semana. Apesar do frio, sua testa estava um pouco úmida de suor. Limpou com as costas da mão, endireitando as costas por um segundo, sentindo uma dor aguda na lombar por ter passado muito tempo curvado, concentrado. Não viu imediatamente quando Kyle dobrou a esquina e começou a se aproximar, mesmo que já estivesse no campo de visão, pois Stan estava virado de frente para a casa, o cachecol azul tricotado pela mãe de Sally caindo por cima do seu ombro conforme ele se movimentava para tirar um punhado do monte de neve de um lado e jogá-lo sobre o carrinho de mão, bem como fazia com as folhas no outono. Ah, como sentia saudade do outono. Eram tempos melhores.

Não se deu conta de que havia um homem extremamente familiar, poucos metros atrás dele. O homem o encarava com tristeza nos olhos, a cabeça levemente deitada para a esquerda, um aspecto infeliz no semblante. Quando Stan se virou, apertando o cabo da pá entre os dedos, olhou de relance para o seu melhor amigo de infância como quem olha um estranho pela primeira vez e voltou a dar as costas para pegar mais um punhado de neve, como se não fosse com ele. Não teve pressa no movimento. Kyle continuou parado exatamente no mesmo local, as mãos caídas nas laterais do corpo, a respiração pesada e incômoda.

Fazia quase um mês que não se viam, o que poderia ser considerado como uma espécie de recor para os dois. Sally enxergara a inquietação em seu marido e comentara, poucos dias antes, em um dos momentos em que Stan se pegava mergulhado em pensamentos ruins, algo como: “você deveria ligar para ele”. Porque Sally era igualmente silenciosa e tinha uma percepção aguçada para aquilo que estava implícito, escondido. Stan, entretanto, não fez tal ligação. As razões para isso são, ao mesmo tempo que muito simples, profundas. E tais razões moram no íntimo da dinâmica entre Stan e Kyle,

-Kenny não está aqui. - Foi tudo o que Stan disse, erguendo o cabo pesado da pá e grunhindo ao jogar um bocado de neve sobre o carrinho.

-Eu não vim ver o Kenny. - Kyle respondeu timidamente, dando alguns passos à frente, sua bota castanha afundando um pouco na parte da neve à qual Stan ainda não havia chegado com  sua pá e seu carrinho de mão. - Eu vim ver você.

-Por quê? - Perguntou sem dar muita atenção, focado no que fazia.

A ausência de olhar entre eles causou um mal estar pesado na boca do estômago de Kyle, que continuou parado no mesmo ponto, logo ao lado da caixa de correio. Vestia um casaco pesado, cor de creme, com duas fileiras de botões grandes na frente e um cachecol vermelho escuro, quase vinho, que constrastava com sua pele extraordinariamente branca, rosada apenas na região das bochechas, realçando as sardas. Apesar da neve, havia um pouco de sol se mostrando, ameaçando surgir entre as nuvens grossas e densas, mas continuava devidamente coberto.

-Porque… - Ele começou a explicar, separando seus lábios rachados pelo frio. Pôs as mãos nos bolsos e respirou fundo, voltando a caminhar na direção do outro, umedecendo a barra do jeans escuro ao pisar na neve. - Porque eu sinto sua falta. E porque eu não sei o que fazer, e você sempre sabe.

A distância entre os dois homens, agora, era de pouco menos de dois metros e meio. Kyle sentiu a tensão nos músculos de Stan assim que se aproximou, a olhos vistos, então decidiu deixar espaço o suficiente para que o outro não se sentisse encurralado. Conhecia aquele homem quase melhor do que a si mesmo, e no entanto, não entendia ao certo o que estava acontecendo ali ou porque Stan parecia um animal arisco da montanha.

Stan enterrou a pá na neve bruscamente, deixando-a em pé para poder soltá-la. Bateu as mãos parar tirar o excesso de neve acumulado e virou o rosto na direção do ruivo, seus olhos mais azuis do que nunca.

-Eu não faço ideia do que você quer aqui, Kyle. Você não se importou com a minha opinião até agora, que diferença faz? - Sua respiração estava ofegante pelo trabalho manual, tornando sua fala irregular. Levou as mãos ao quadril dolorido e virou um pouco de lado, encarando as outras casas no fim da vizinhança, as montanhas no horizonte cobertas pela leve. Seu rosto formou uma careta pensativa durante alguns segundos, os lábios se partiram como se estivesse prestes a dizer algo, mas apenas sacudiu a cabeça.

-Kenny te contou. Eu imaginei.

Stan quase soltou uma risada em resposta, mas acabou saindo como uma espécie de ronco amargurado.

-Não. Kenny não me contou nada. Eu tive que ouvir da boca do seu namorado.

Kyle franziu a testa.

-Ouvir o quê?

-O que você acha?

O ruivo passou alguns segundos sem saber como reagir, mantendo uma ruga entre as sobrancelhas, expressando todas as teorias, todas as cenas, cores e palavras que percorriam seu cérebro no momento. Limpou a garganta e etreitou os olhos, mas não desviou do rosto de Stan um segundo sequer.

-Por que você tá desse jeito comigo?

-Porque ele foi embora! - Stan gritou.

Um casal passava do outro lado da rua, passeando com um pug que parou para se aliviar em um punhado de neve. Stan desviou o olhar para o casal, pois ao contrário de Kyle, buscava qualquer forma de escapar dos olhos verdes que queimavam sua pele. Estava visivelmente perturbado. O casal de vizinhos acenou para ele. Stan não retribuiu.

-O quê? - Kyle finalmente perguntou, como se despertasse de um transe. - Kenny? Kenny foi embora?

Stan esfregou os olhos com as duas mãos. Não era preciso confirmar.

-Como assim? Pra… Pra onde? Ele não tem pra onde ir.

Havia algo afetado na voz de Kyle que só serviu para deixar Stan ainda mais irritado. Mas Kyle podia ler nele tudo o que Stan tinha dificuldade de dizer em voz alta, como fez a vida inteira. A linguagem corporal de Stan indicava que ele ainda se agarrava ao pouco de orgulho que tinha, pelo ressentimento de não ter sido parte de algo tão grande na vida de Kyle, mas sua preocupação (com os três envolvidos, não somente com Kyle) era mais forte. Stan sempre teve essa qualidade paternal a seu respeito que acabava se traduzindo como uma necessidade crônica de cuidar daqueles em torno dele. Em especial, com aqueles três homens com os quais havia crescido.

-Eu não sei pra onde. Mas aqui vai o que eu sei: que ele voltou para South Park com praticamente nada no bolso e um sorriso enorme na cara. Você viu o que ele se tornou aqui? O Kenny que sabia fazer piada de qualquer coisa não estava mais aqui. - Stan disse, levando as duas mãos ao cabo da pá, usando um dos pés para enterrá-la mais fundo. - Claro, não pode ser fácil voltar para o lugar em que você apanhou tantas vezes da sua mãe louca de heroína, com seu pai na cadeia e seu irmão não sabendo passar um dia sóbrio. Eu sei que nada foi tranquilo pra ele. Mas ele ficou aqui mesmo assim.

Aquele discurso fez com que Kyle revisitasse um sentimento antigo e bastante curioso que vivenciou poucas vezes na vida, mas todas com muita intensidade. Era quase uma lembrança, do tipo que convenientemente desliza para baixo do manto do esquecimento e só dá as caras quando estritamente necessário. A lembrança em questão era sobre a fidelidade improvável que sempre existiu entre Stan e Kenny. Stan era seu melhor amigo, Kenny era seu amante, então Kyle tinha tendência a ignorar o quanto os dois tinham uma conexão forte que independia dele. Mas ali estava, mostrando-se inabalável como era a amizade dos dois. O misto estranho de sentimentos que perturbava a boca do seu estômago foi brutalmente interrompido pela realização de que Kenny não estava mais ali. Parte dele não podia processar essa ideia. Ainda olhava para a pequena janela redonda do sótão da casa de Stan e esperava ver o rosto de Kenny espiando como um menino envergonhado.

Mas não havia ninguém lá.

Kyle desceu o rosto lentamente e voltou a encarar seu amigo com olhos fixos, a respiração trêmula, as pálpebras quase arregaladas. Seus lábios continuavam entreabertos, incrédulos. A voz saiu fraca, chorosa, enquanto balançava a cabeça de um lado ao outro, perdido.

-Eu sinto muito, Stan… Eu não quis…

-Por que você não me contou?! Eu teria ficado do seu lado, quando é que eu não fiquei?

-Eu tive vergonha! É isso que você quer ouvir? Eu tive… Eu tenho consciência. Eu sei o que eu fiz com o Eric e com o Kenny, eu não conseguia falar em voz alta.... Ainda mais pra você. - Uma pausa. Longa. - Eu não me reconhecia mais e eu não quis que você também não me reconhecesse. E ele estava aqui, na sua casa, eu não podia… - Os olhos verdes ficaram marejados quando o rosto de Kenny invadiu sua mente como um tiro. Fungou e tirou a luva de uma das mãos para secar a lágrima quente que corria pela linha delicada da bochecha. - E agora ele não está mais…

Stan começou a se aproximar enquanto Kyle sacudia a cabeça e fechava os olhos, liberando todas as incontáveis lágrimas acumuladas, a voz fraquejando, confusa, desistindo. Stan o acolheu num abraço sufocante, trazendo a cabeça ruiva para o seu ombro com a mão gelada. Kyle se agarrou a ele como se precisasse disso para continuar de pé, apertando a luva marrom entre os dedos.

Só houve duas outras situações em que Stan o viu chorar daquela forma: na doença de sua mãe e no primeiro fim que teve com Kenny McCormick. Stan o abraçou igualmente, como sempre fez e sempre faria.

-Shh… - Sussurrava.

Depois, levou-o para dentro da casa, mandou que se sentasse à mesa de madeira da cozinha e fez um café. Sally, astuta e respeitosa como era, apenas ofereceu um sorriso gentil e um leve aperto no braço de Kyle assim que viu seus olhos vermelhos, subindo logo em seguida para tomar um banho e fazer as unhas. Stan ligou a pequena TV da cozinha que exibia o jornal da tarde, reportando sobre as compras de natal no comércio do Colorado. Deu uma ajeitada na antena para tentar melhorar a imagem, embora nenhum dos dois estivesse particularmente interessado. Logo desistiu. Já havia removido o casaco vermelho impermeável, vestindo agora somente o suéter azul marinho que havia por baixo, presente de sua mãe em algum natal passado. Fazia um frio do diabo lá fora.

-Por que você ainda tá com o Cartman? - Perguntou em seu tom usualmente carinhoso, colocando uma caneca verde cheia de café preto e fumegante bem em frente a Kyle antes de se sentar também.

O ruivo levou as duas mãos à caneca. Suas luvas estavam descansando na beirada da mesa, logo ao lado, e a sensação foi quente e agradável em suas palmas. Não encarava nada em particular, com o rosto um tanto baixo, como se mal sentisse a presença de seu melhor amigo.

-Eu fiz merda, não fiz? - Murmurou em resposta.

Stan levou a mão ao ombro dele e deu-lhe um aperto sutil. Havia um sorriso no canto de sua boca, um sorriso de conforto, mas Kyle não chegou a vê-lo.

-Não sei. Como vocês tão?

As mãos finas de Kyle, com seus dedos longos, soltaram a caneca e cobriram seu rosto, os cotovelos apoiados na mesa, um suspiro profundo escapando das narinas. Stan afastou a mão de seu ombro.

-Mal. Infelizes. Nenhum dos dois parece se importar o suficiente pra brigar. É… É estranho. - Deixou os braços caírem sobre a mesa de forma barulhenta e exausta. Um dos cachos ruivos do seu cabelo caía pela testa e incomodava o olho, então Kyle passou os dedos para ajeitar os cabelos para trás e agarrou a asa da caneca para levá-la à boca, dando um gole breve. - Eu fico esperando que ele diga alguma coisa, que ele me mande embora. Não é que eu queira isso, sabe, eu realmente quero que dê certo. Mas eu não pensei que ele fosse… Eu não sei o que ele sabe.

-Ele também não. - Stan disse com um risinho, esfregando a nuca. - Eu não acreditei em nada quando ele me contou porque parecia paranóia. Mas quando eu vi o Kenny daquele jeito, eu acho que ficou muito claro. Pra todo mundo. Vocês não podem fingir que não aconteceu nada.

Não houve resposta. A cozinha foi preenchida pela voz da reportagem, que alegava que as compras de natal caíram 7% em relação ao ano anterior. Kyle bebeu do café em silêncio, mantendo a cabeça baixa.

-Você o ama? - Stan perguntou de repente. - Kenny, digo.

Kyle segurou a caneca próxima ao rosto e mordeu o lábio, apreensivo. Aquilo costumava ser tão fácil de responder. Deu um gole longo dessa vez, nervoso, antes de repousar a caneca sobre a superfície de madeira e olhar para o outro homem com os olhos carregados de dor. Stan ergueu o queixo lentamente e correu os dedos pelo topo da própria cabeça, respirando fundo.

-Isso não importa. - Kyle finalmente disse. - As coisas precisam voltar ao normal.

-Kyle, pelo amor de Deus. Isso é a única coisa que importa.

-Eu usei isso como justificativa pra fazer todas as merdas que eu fiz, pra não pensar. Todas, Stan. Porque é como se as coisas, por amor, fossem justificáveis. Dizer não ao Kenny foi a coisa mais difícil que eu já tive que fazer, mas eu fiz, porque nós não temos mais quinze anos.

-Kyle… - Stan cobriu a testa e sacudiu a cabeça, encarando-o incrédulo, com as pupilas dilatadas. Empurrou a cadeira para trás e se sentou de lado para se colocar de frente ao outro, levando uma mão ao joelho dele, falando com ele como se faz com uma criança. - Eu entendo que você… Que você não saiba o que é amar alguém e não ser amado da mesma forma. Eu fico muito, muito grato que você não saiba o que é isso. Eu sei que você tá fazendo o que sente que é a coisa certa, porque num mundo perfeito, isso faria sentido. A gente se apaixonaria sempre na mesma medida por quem faria qualquer coisa pela gente, e teria uma relação estável, sem merda nenhuma. Eu entendo, de verdade, você escolher ficar com o Cartman porque vocês construíram algo juntos e porque ele te faz bem. Às vezes… A gente precisa ficar com a pessoa “certa”. Eu sei disso. Mas isso quando a pessoa que você ama de verdade, que te deixa louco, que tira o teu chão, nunca vai sentir a mesma coisa por você. E não dá pra desistir, não dá pra se fechar pra sempre e nunca mais viver nada com outra pessoa. Às vezes, você precisa… Se conformar. Encontrar alguém e não ter pretensão de viver aquela paixão arrebatadora que você sentia por outro. Não tem nada de errado em amor tranquilo, quando é honesto. - Stan fez uma pausa. Apertou a mão no joelho dele e limpou a garganta, a voz hesitante. - O Kenny te ama. Você não precisa se conformar com nada.

Kyle continuou a encará-lo, mesmo depois que Stan desviou o olhar e se afastou alguns centímetros. Quis perguntar de onde vinha o tom pessoal e íntimo daquela fala, mas ficou calado e bebeu seu café.



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