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História Trégua Suspensa - Happily ever after


Escrita por: caulaty

Capítulo 20 - Happily ever after


Assim que saiu da casa de Stan, Kyle já entrou no carro sabendo para onde ir. Sabia, também, que não encontraria aquilo que procurava quando chegasse ao seu destino, mas o ímpeto foi incontrolável. Dirigiu até o local de trabalho de Kenny. A moça da recepção, uma jovem muito baixinha e roliça que já conhecia seu rosto, comunicou o esperado: Kenny havia pedido demissão poucos dias antes. Para a sorte de Kyle, se é que se pode chamar isso de sorte, a moça tinha uma boca terrivelmente grande e passava a maior parte do dia sozinha, lixando as unhas; portanto, jamais perdia a oportunidade de conversar com alguém. Foi então que ela contou o inesperado: que o incidente ocorreu de forma curiosa, até mesmo bizarra. Ela mascava um chiclete de menta - cujo aroma chegava às narinas de Kyle quando ele se inclinava sobre a mesa -, gesticulando com a lixa entre os dedos, contanto em tom de segredo que viu McCormick ir até o estacionamento da frente para ter o que pareceu ser uma conversa “super intensa”, nas palavras dela, com um homem “enorme”. Ela não ouviu nada da conversa propriamente, mas assegurava que houve uma discussão tão pesada que o tal homem acabou socando o capô do próprio carro em determinado ponto.

Aquilo fez com que Kyle engolisse seco e abaixasse os olhos. Cartman amava aquele carro muito mais do que amava o próprio Kyle, aquela sempre foi uma brincadeira entre eles, algo que o ruivo repetia constantemente para os amigos. Ocorreu a ele que talvez a moça estivesse exagerando nos detalhes, mas havia uma verdade tão crua no discurso dela, como se estivesse aterrorizada com o que viu.

O segundo momento do relato foi ainda mais empolgado. A recepcionista ajeitou seu suéter amarelo e seu rabo de cavalo antes de continuar. Kenny, aparentemente, agarrou algo que o homem estava prestes a atirar na cara dele. A mente de Kyle especulou o que poderia ter sido trocado entre eles. Dinheiro, naturalmente, foi o primeiro palpite. Mas Kyle tinha uma dificuldade imensa em acreditar nisso. Em seguida, Kenny lhe deu as costas e voltou trotando para o estabelecimento, empurrando a porta com raiva e mandando-a avisar ao chefe que ele pedia desculpas, mas não voltaria mais. Parecia bastante transtornado. Entrou na salinha para agarrar suas coisas e foi embora.

Kyle silenciosamente agradeceu à moça e saiu de lá pelo que seria a última vez, desnorteado.

Sentou-se no carro com o corpo pesado, cobriu o rosto com as duas mãos e estremeceu. A noite se aproximava. Havia passado a tarde inteira na casa de Stan, ajudando-lhe a remover a neve do jardim, fazendo possíveis planos para o ano novo. Por vez ou outra, Stan colocava a mão no seu ombro e dava um apertão de encorajamento, com um olhar de compaixão fixo no rosto, mas não dizia uma palavra sobre o que já haviam conversado. Agora, sem a voz rouca e carinhosa de Stan e aquela mão no seu ombro, estava preso em um momento mais obscuro. Ele estava sozinho e mergulhado em tudo o que havia feito de si mesmo, daqueles dois homens. E era feio. A feiúra era muito mais clara sem o sorriso deliciosamente iluminado de Kenny e aquela anergia animalesca devastadora que compartilhavam. Também era mais clara sem os olhos terríveis e intimidadores de Eric, despindo-o e desmontando-o de toda e qualquer defesa. Eram os olhos que ele precisava enfrentar.

Esfregou os olhos, respirou fundo e ligou o carro.

* * *

Há um efeito que ocorre quando um assunto é evitado durante muito tempo. O acúmulo de ressentimentos pode construir um confronto muito mais intenso e perigoso do que seria para começo de conversa. Kyle e Cartman, por orgulho ou qualquer coisa que o valha, deixaram tantos esqueletos acumulados no armário porque sabiam que tinham cruzado uma linha da qual não havia retorno. Tal efeito faz com que os envolvidos percam a noção de delicadeza, de toda dança necessária e calculada para que sentimentos sejam poupados o máximo possível. Mas também é preciso considerar que Kyle e Cartman nunca fizeram essa dança toda para começo de conversa. Ambos gostavam de honestidade crua e sangue nas paredes. Sse não estivessem preparados para isso, que não houvesse discussão alguma. Mas estavam prontos.

Kyle jogou as chaves sobre a mesa, deixando que o barulho anunciasse sua chegada, tirou o casaco e foi encontrá-lo na cozinha. Cartman estava socando a fôrma de gelo no mármore da bancada para preparar sua segunda dose de uísque da noite. O primeiro instinto de Kyle foi abrir a boca para dizer que o gelo soltaria mais facilmente se ele molhasse a fôrma na pia primeiro, mas o que saiu de sua boca foi:

-Você o mandou embora, não foi?

Cartman virou apenas a cabeça para espiá-lo por cima do ombro. Havia um vazio nos olhos castanhos dele, mas uma sutil sombra de um sorriso sádico ameaçando aparecer no canto da boca. Entretanto, o sorriso não apareceu. Ele virou a cabeça novamente para retomar o que fazia.

-Eu achei que estivesse te fazendo um favor. Eu sei como é difícil pra você não dar pra ele enquanto ele está por perto, sabe.

-Eric... - Uma pausa. Ele respirou fundo. - Eu sinto muito.

-Não, não, você nem comece com essa merda.

Cartman chegou a morder o lábio inferior enquanto aplicava mais força nas mãos, torcendo a forma de gelo com tal violência que chegou a rachá-la. Kyle se encolheu com o barulho estrondoso, e o que veio em seguida foi ainda pior quando Cartman esmurrou a fôrma contra a superfície da bancada e os cubos de gelo estouraram, espalhando-se pelo mármore e pelo chão, alguns partindo-se em vários pedacinhos.

Kyle ofereceu um suspiro cansado, encarando as costas do outro.

-Que merda?

-Essa conversinha patética que as putinhas arrependidas tentam passar nos maridinhos cornos. - Cartman disse enquanto casualmente pegava um cubo após o outro dos que estavam espalhados pela bancada, colocando-os um por um no copo de cristal até enchê-lo. Limpou a garganta para afinar a voz de maneira afetada, prosseguindo. - “Eu sinto muito, meu amor, eu faria qualquer coisa para não ter chupado o pau dele, é você que eu amo, me perdoe”. - Ele agarrou a garrafa de uísque pela boca em um movimento brusco e serviu o copo até o limite de transbordar, algo que raramente fazia. Cartman servia seus copos de uísque com o amor e o cuidado de um primeiro amante, fazia daquilo uma arte e tinha uma série de regras a respeito. Kyle precisou aprender todas elas quando começaram a namorar, incluindo que não se deve servir mais do que três dedos e é preciso haver um limite ideal entre o gelo e o líquido. - Não faça isso. Não se arrependa agora. Honre a merda que você fez, Broflovski.

Kyle gastou alguns momentos parado, sem reação. Cartman se virou para encará-lo, finalmente, com o copo em uma mão e a garrafa na outra. Havia restado aproximadamente um quarto da bebida na garrafa, o que fez Kyle franzir as sobrancelhas ao observá-lo com cautela. Cartman foi um pouco desmontado pelo suéter azul claro de lã que abraçava o corpo do ruivo tão bem e contrastava com o tom creme da sua pele.

A parte realmente perturbadora sobre aquele suéter foi a lembrança do dia em que ele foi comprado. Kyle havia aberto a porta do provador tão ridiculamente delicioso que Cartman o empurrou para dentro da cabine e passou as mãos por baixo da roupa, pressionando-o contra o espelho. O espaço era apertado e quente, havia sons de todas as espécies do lado de fora, mas Kyle nunca teve receio quando era agarrado em locais públicos. Soltou uma risada juvenil, quase envergonhado, perguntou o que ele estava fazendo, mas não hesitou em momento algum. A coisa toda era muito natural entre eles. Cartman o virou de costas e abaixou sua calça com violência, sussurrando ao ouvido dele que ficasse quietinho enquanto abria o próprio zíper, puxando o próprio membro meio rígido para fora, roçando entre as nádegas dele para ouví-lo estremecer todinho. Treparam ali dentro, colados, sem ter no que se agarrar a não ser um ao outro. Não houve dúvida de que levariam aquele suéter depois disso. Era uma época em que os dois não sabiam como tirar as mãos um do outro.

-Eu não vou pedir pelo seu perdão, Eric. Eu não pediria nada que eu mesmo não poderia fazer no seu lugar.

Eric balançou a garrafa com uma gargalhada irônica, pendendo a cabeça para o lado.

-Que gentil da sua parte.

Kyle também esboçou um sorriso, mas o seu era carregado de pesar. Era um sorriso tímido, contido, não diretamente para Eric, mas voltado para alguma memória distante de quem eles costumavam ser. De como foi feliz com ele tantas vezes ali mesmo naquela cozinha, assim como sorria ao pensar em todas as brigas absolutamente idiotas que tiveram ali. Os vizinhos, de uma forma ou de outra, tiveram que se acostumar com o barulho.

-Eu te amo. - As palavras saíram com naturalidade, sem que ele pensasse a respeito, como um sopro que acompanhava a memória. Aquelas palavras foram direto para os ombros tensos de Cartman, causando uma dor imediata na nuca. Ele deu um gole longo no uísque do copo e entornou novamente a garrafa para enchê-lo, imediatamente largando-a de lado e massageando a lateral do pescoço de forma ansiosa. - Eu sei que soa vazio agora, mas... É verdade. Você tá na minha vida desde... Sempre. Eu odeio ter te machucado, eu nunca quis isso.

Os cubos de gelo batiam contra o cristal, enquanto a mão de Cartman gesticulava, acusatória. Ele se aproximou trotando como um cavalo, mas interrompeu o passo no processo. Entornou um bocado do uísque no chão, mas nenhum dos dois reagiu a respeito.

Não respondeu, não com a boca. Aqueles olhos assassinos, entretando, não faziam jus ao auto-controle dele. Cartman se recusava a repetir o discurso dos mártires, a se colocar em qualquer posição de vítima. Mas estava escrito naqueles olhos o quanto doía, não a traição em si, não o sexo, mas o fato de enxergar transparente como água que Kyle jamais amaria outro homem como amava Kenny McCormick. Se tivesse sido apenas carnal, seria facílimo de resolver a dor no ego com uma surra no filho da puta para mandar o recado, “mantenha o seu pau longe dele, ele me pertence”. Mas não era. O olhar de Eric doía mais do que qualquer coisa em Kyle, até mesmo mais do que a ausência de Kenny.

-Eu realmente acreditei que a gente pudesse fazer dar certo. Eu e você, Eric. Eu sempre acreditei tanto na gente, no que nós tivemos. Eu quis, mais do que tudo, te escolher. Nos escolher. Mas quando ele apareceu, foi como se... Como se já estivesse escolhido. Eu tentei tanto evitar...

Cartman bebeu o que restava em seu copo, sentindo o excesso do líquido arder na sua garganta. Seu maxilar estava tenso, rangendo os dentes, respirando pesado. Apontou o copo na direção de Kyle.

-Eu soube que era uma questão de tempo quando eu vi vocês dois na porra da varanda do Stanley. Quando ele te olhou com cara grotesca de vira-lata arrependido, eu não tive dúvida nenhuma de que você era trouxa demais pra não voltar correndo como a cadelinha que você é. Você é fraco, não por me chifrar, mas por acreditar nesse babaca. - Cartman cuspiu de forma embriagada ao pronunciar a última palavra, chegando mais perto dele.

Kyle não se moveu.

-Eu sei. - sussurrou, com a cabeça erguida.

-Você passou meses chorando como uma menininha retardada porque aquele viado te comeu e te largou, como ele sempre fez com qualquer uma que fosse imbecil o suficiente pra abrir as pernas pra ele. Mas assim que ele aparece, você se arreganha como uma putinha imunda, um caralho de uma cadelinha no cio. - Conforme as palavras deixavam sua boca, Cartman elevava o volume da voz, diminuindo também a distância entre os dois, chegando ao ponto de estar literalmente gritando na cara do outro. Pouco a pouco, perdia o controle que cautelosamente havia construído nos últimos meses, para preservar seu orgulho. - E sabe o que vai acabar acontecendo? Você não é o gênio, a porra do Einstein do novo século? Será que você entende que essa bicha de merda já te largou de novo? Que você nunca foi e nunca vai ser suficiente pra ele, que você é só mais uma vadia?

Agora era tarde demais, ele já estava tomado pela necessidade compulsiva de machucá-lo, de qualquer forma que pudesse. Porque havia soltado as rédeas, e se não podia agir com indiferença, então precisava arrastar Kyle para o mesmo nível. Não era racional. Qualquer dor que Kyle já estivesse sentindo não podia ser suficiente.

Se fosse para olhar para o passado, para analisar a essência da relação dos dois homens o que, de fato, fez com que Eric Cartman se apaixonasse por Kyle Broflovski era como Kyle sempre respondia em um tom mais alto. Desde que eram crianças, se alguém o provocasse, Kyle levantava a voz. Se alguém gritasse com ele, Kyle gritaria mais alto. Ele era absolutamente destemido, algo que Cartman não somente respeitava, mas precisava em um companheiro. Alguém passional, que não medisse as consequências, que não tivesse receio por não ter tamanho. Isso é relevante para compreender a sequência de acontecimentos.

Kyle se pôs na ponta dos pés para encará-lo da mesma altura – embora não tenha conseguido passar da altura dos olhos – e se aproximou com a mesma intensidade, colidindo contra o abdômen de Cartman no movimento. Havia ameaça na afluência de Cartman, na posição eno modo com que se mexia; qualquer um em sã consciência estaria se encolhendo diante de um homem daquele tamanho, com a respiração alterada e os punhos fechados. O copo de cristal voou na parede e estourou no azulejo branco, sujando-o, escurecendo-o com o líquido. O som foi estarrecedor. Cartman agarrou-o pela lã delicada do suéter azul, puxando-o contra seu corpo violentamente.

A resposta de Kyle foi:

-É disso que você precisa? Me bater? - O ruivo ergueu bem o queixo com uma expressão de desafio, prosseguindo em uma voz macia. - Então bate, Cartman. Me quebra.

Kyle não o chamava assim há anos.

Cartman nunca foi exatamente um homem de obedecer com facilidade. Não lavava a louça quando Kyle pedia, não seguia as direções de Kyle no carro, nunca trocava as lâmpadas quando Kyle dizia para trocar. Mas naquela ocasião, Kyle não precisou falar duas vezes. O soco foi preciso e certeiro, logo abaixo do olho esquerdo, bem na maçã do rosto, tão alta e delicada, que estruturava aquele rosto tão belo.

Imediatamente, Kyle bateu contra o castilho da porta, esmurrou a parte de trás da cabeça na madeira e escorregou para o chão. Ao mesmo tempo, Cartman deu as costas para ele e esfregou o rosto. Seu sapato esmagou minúsculos pedaços de cristal, emitindo um som desconfortável. Havia cacos por toda parte, cubos de gelo e uísque espalhado, pequenos fragmentos que ninguém se incomodaria de limpar naquela noite. Havia, também, sangue escorrendo do lábio de Kyle pela mordida acidental na parte interior quando caiu. Ele levou a mão à parte de trás da cabeça, que latejava quase tanto quanto a bochecha, soltando um gemido agoniado. A outra mão estava apoiada no chão para o sustento do tronco e a palma era pressionada contra alguns caquinhos de cristal, mas Kyle estava anestesiado demais para sentir qualquer corte.

Àquela altura, ele estava chorando sem perceber. As lágrimas deslizavam como um reflexo biológico, mas aquilo nada tinha a ver com dor física. A mão de trás da cabeça foi para a testa quente, cobrindo-a, depois alisando o cabelo para trás. Respirou fundo.

-Eu vou... - Começou a dizer, mas foi interrompido por um gemido de dor quase que espontâneo. Secou as lágrimas e fungou, tocando a bochecha esquerda com cuidado. Enfim, começou a se levantar. - Eu sinto muito, Eric. Eu daria qualquer coisa pra não ter deixado chegar a esse ponto.

A cozinha permaneceu em silêncio. Kyle abaixou o rosto e viu a palma ensanguentada, com cacos grudados na pele. Esfregou-a na lateral do jeans grosso e estremeceu com a ardência. Apoiou a outra mão na porta da cozinha pela tontura, passando a língua pela ferida no lábio instintivamente.

Cartman não se virou para olhar para o outro. Cobriu os olhos com a mão trêmula. Não havia muitas pessoas na terra que pudessem dizer que viram Eric Cartman tremendo.

-Eu pego as minhas coisas amanhã cedo. E deixo a chave embaixo do tapete.

A voz de Kyle já saía desfeita, rouca e perturbada, mas ainda com um tom aveludado de esperança e carinho por aquele homem. Ainda esperou alguns segundos, desejando ver aqueles olhos mais uma vez, como se fosse a última. Mas Cartman não se moveu. E não seria a última vez.

-Eu sinto muito. - Kyle repetiu antes de, lentamente, deixar a cozinha.

Cartman só respirou novamente quando ouviu o som da porta do apartamento se fechando. Demorou a se mexer, como se estivesse paralisado. Não havia tantos horrores se passando pela sua cabeça quanto pareceria observando de fora, um homem perdido no meio do caos. Não havia arrependimento em seus olhos, tampouco em sua mente, porque Kyle era forte e aguentaria coisa pior. Parte dele desejava ter feito pior. O que martelava no cérebro de Eric Cartman era que ele havia perdido, e não havia quem ele pudesse esmurrar que mudaria isso. Perdera o controle, Kyle e seu copo de uísque preferido, tudo de uma vez. Então, fez o que qualquer homem naquela condição faria. Agarrou a garrafa e deixou o cômodo, pisando nos cacos e na pequena mancha de sangue no piso em frente à porta.

-Merda.



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