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História Trégua Suspensa - Lighter than air


Escrita por: caulaty

Capítulo 21 - Lighter than air


 Ser um judeu na época de natal, o feriado mais cristão do mundo, não significava que houvesse alguma possibilidade de ser totalmente alheio à explosão de ornamentos vermelhos e dourados, pinheiros, renas, sinos, guirlandas, duendes cantantes e um certo espírito curiosamente contagiante de união que tomava conta de South Park em dezembro. Ike e Kyle Broflovski aprenderam, desde muito cedo, que não havia nada de errado em participar do chamado “espírito natalino”, independente do conservadorismo de sua mãe. Eles eram os únicos judeus de South Park, à exceção de seus pais, então a coisa toda ficava muito solitária às vezes. Não havia um ano em que Stanley não lhes presenteasse de forma muito particular, sem a pressão social que levava a maioria das pessoas a trocar presentes. Kyle disse, nos dois primeiros anos, que não fazia qualquer sentido Stan gastar dinheiro com presente de natal para alguém que jamais comemorou a data em questão, mas no terceiro ano, ele compreendeu que Stan não dava a mínima para os seus protestos e uma nova tradição entre eles nasceu. Aquele foi um pequeno marco no início da vida adulta e financeiramente independente deles. Alguns anos depois, Ike também entrou na brincadeira.

Naquele ano em especial, dizer que o trenó do papai noel sofreu um acidente no meio do shopping e o natal explodiu ali mesmo não seria um exagero para descrever a decoração que enfeitava o principal centro comercial da cidade. Bolas vermelhas e prateadas gigantescas pairavam sobre o formigueiro de pessoas ansiosas para fazer as últimas compras. A última semana antes do dia 25 era sempre a mais selvagem. Uma árvore de nove metros era centralizada próxima às fontes de mármore do shopping, decorada do topo à base com estrelas imensas, pisca-piscas coordenados, bolas foscas em todos os tons possíveis de vermelho; havia um presépio imenso e iluminado, uma oficina do Papai Noel montada para a visitação, soldadinhos de chumbo brancos, além do próprio velhinho fantasiado que recebia as crianças para ouvir os pedidos de sua lista. Havia luzes penduradas em todas as lojas.

-Você não acha linda? - Ike perguntou ao seu irmão, colocando uma sacola de compras embaixo da cadeira na qual estava prestes a se sentar.

O natal, para Ike Broflovski, não tinha qualquer conotação religiosa. Ele era apaixonado pela época em si, pelo clima suave que tomava conta da cidade, pelos enfeites e pelos sorrisos. Sua esposa, Ruby Tucker – ela não pegou o sobrenome dele -, era uma mulher ateia e extremamente cansada para tais convenções sociais obrigatórias. Na casa de Ike, acendiam-se as nove velas do hanukiah durante os oito dias de Hannukah, a festa das luzes, que causava profundo sentimento de paz no peito de Ike. Ruby achava qualquer ato religioso uma extrema bobagem; era intelectualizada e honesta demais para fingir o contrário, mas os dois tinham um respeito mútuo e infinito um pelo outro. Kyle já não cumpria aquele ritual judaico específico há alguns anos, mas participava das festividades familiares e, Ike acreditava, no fundo, ele ainda era uma pessoa de arraigada fé.

Os dois haviam decidido, enfim, enfrentar as compras que faltavam para aquelas pessoas em suas vidas que comemoravam a mesma festividade cristã da qual eles não faziam parte. Apesar de nenhum deles apreciar muito o ambiente capitalista, Ike insistiu que seria uma boa ideia que Kyle saísse de casa durante algum tempo. A coisa toda acontecera há pouco menos de duas semanas e o ruivo fez questão de gastar aquele período devidamente escondido em seu próprio apartamento, com algumas visitas periódicas do irmão e do melhor amigo. Era seu primeiro contato com o mundo externo após a separação. Ike é quem foi buscar os pertences de Kyle no apartamento que ele dividia com Eric Cartman, tendo um encontro muito breve com o homem de olheiras escuras e feição desgastada. Cartman não lhe disse uma palavra.

Os dois irmãos se sentaram em um café de onde podiam ver perfeitamente a decoração completa do primeiro andar, não muito longe da Oficina do Papai Noel. O reboliço chamava a atenção de Ike. Kyle tirou os óculos de leitura que havia posto para ler o menu e fazer o pedido. Usou o polegar para esfregar o olho de forma fatigada, não prestando muita atenção ao que o outro dizia.

-O quê?

-A decoração. Está tão linda esse ano. Eu ainda não tinha vindo aqui, acredita? O consultório anda tão cheio.

Kyle levantou a cabeça como se só então percebesse o ambiente caótico no qual ele estava inserido. Largou os óculos sobre a mesa estreita e levou a mão pela entrada dos cabelos, alisando os cachos para trás. Eles caíam por cima de sua testa com naturalidade logo em seguida, quase chegando à altura dos olhos.

-É, acho que sim.

Ike suspirou fundo, preocupado.

Seu irmão não era uma pessoa exatamente aberta no que se tratava de sentimentos ruins. Foi difícil fazê-lo contar o que havia acontecido para começo de conversa. Era possível que Kyle sequer tivesse lhe contado sobre o fim da sua relação se não tivesse tido o impulso, logo na primeira noite, de aparecer na porta de seu irmão mais novo com o rosto terrivelmente inchado. Ele trazia um hematoma roxo na bochecha que foi como um soco no estômago de Ike, mas Kyle agia como se nem pudesse sentir a dor física que aquilo parecia, evidentemente, causar. Ike nem mesmo cogitou que aquilo tivesse sido obra de Eric Cartman. Kyle só revelou esse detalhe depois de duas xícaras de chá e três horas e meia de conversa sobre o que o ruivo definia como uma sequência trágica de escolhas ruins. Ele vomitou tudo. Desde os motivos que fundamentaram sua relação com Eric, passando pela falta dilacerante que Kenny deixou para trás e o cataclismo nuclear que foi o seu retorno, como desconstruiu tudo o que ele tinha por certo, todas as virtudes que ele acreditava ter e que preservou durante uma vida. Contou com lágrimas acumuladas nos olhos como foi fácil se esquecer do mundo lá fora quando estava com Kenny, e como era imundo e grotesco quando ele ia embora. “Isso não sou eu, Ike, não sou eu”, ele repetiu várias vezes naquela noite. Seu irmão apenas concordava com a cabeça e apertava seu braço, aflito, buscando oferecer qualquer forma de apoio.

A coisa toda era assustadora porque Ike não fazia a menor ideia de que aquilo estava acontecendo com uma das pessoas mais importantes da sua vida. Também era assustador porque Kyle sempre foi dono de uma compostura impecável, a própria voz da consciência para a maioria das pessoas ao redor dele, embora Ike soubesse que aquilo tinha uma influência pesada dos seus olhos de irmão mais novo. Não soube ao certo porque Kyle foi para a sua casa naquela noite, em vez de ir para a de Stan, como era de costume. Sentiu que havia uma necessidade de ficar próximo da família, tamanho era o estrago. Ao mesmo tempo, Kyle pediu inúmeras vezes para que Ike não contasse nada aos pais deles.

-Você quer conversar? - Ike perguntou de repente, poucos segundos antes da mocinha do balcão, com belíssimos olhos azuis e que parecia um passarinho, aproximar-se com uma xícara de café fumegante e outra de chá de maçã.

Kyle esperou que ela se afastasse antes de responder, agradecendo silenciosamente.

-Não, Ike. - Respondeu com uma voz rouca, pondo as duas mãos entre as pernas, mordiscando o lábio inferior, encarando o círculo preto de café dentro da xícara posta à sua frente. Ele parecia menor do que realmente era naquele pullover xadrez longo demais nas mangas. O seu rosto revelava que não dormia bem há dias. - Eu acho que já incomodei vocês muito mais do que devia com essa merda toda. Acho que eu preciso... De ocupação, sabe? Trabalhar mais, quem sabe adotar um cachorro. O Eric nunca gostou da ideia, dizia que não botaria um animal ali dentro pra mijar no sofá de couro italiano dele ou coisa do gênero. - Esboçou um sorriso triste nos lábios, tomado pela lembrança das palavras rabugentas de Cartman. Aquele homem esteve presente na sua vida desde que ele podia se lembrar, e não era uma presença sutil. Kyle não havia medido realmente o quanto ele faria falta. Sentia-se feito de faltas nos últimos dias.

Enfim, Kyle bebeu da xícara e ergueu os olhos para seu irmão do outro lado da mesa, finalmente se dando conta de que Ike não estava sequer olhando para ele, provavelmente sem ouvir uma palavra. Kyle franziu as sobrancelhas, notando o quanto o par de olhos negros de Ike estavam focados na direção em que, poucos momentos antes, contemplava a decoração natalina.

-Eu sei que você curte o natal e tudo, mas já deu, né? - Kyle perguntou, deixando escapar um risinho pela primeira vez naquele dia.

Agora, a expressão no rosto de Ike rapidamente tornou-se preocupante, como se ele reconhecesse a presença de Kyle de repente fosse a última pessoa que ele quisesse ver. Kyle realmente começou a estranhar a feição assustada de seu irmão, e naturalmente, virou-se antes de fazer qualquer pergunta a respeito.

E ali, no meio de tantas mães com suas crianças, assistindo aos duendes mecânicos cantando e fabricando brinquedos, estava um homem cujos cabelos loiros de uma cor de mel dourado estavam, como sempre, bagunçados e caindo sobre os olhos de um azul iluminado que lembrava diamante. Sorria tão largo, entretido com a apresentação, quase tanto quanto qualquer um dos pequenos ao seu redor. E não estava sozinho; nos seus braços, estava uma das criaturas mais belas que Kyle já vira. Era uma menininha que não podia ter mais do que dois anos, com um cabelo crespo; longo, impossivelmente arrepiado, em um tom loiro muito mais escuro do que o de Kenny. Não era uma beleza tradicional, a criança não se parecia em nada com uma boneca. Tinha os olhos muito verdes e ferinos, as sobrancelhas bem clarinhas, franzidas em desconfiança, a minúscula boquinha formando um bico natural àquela faceta exagerada, e toda a região em torno da boca estava suja de chocolate derretido, que Kenny limpava com a própria manga do moletom amarelo com um enorme desenho gráfico na frente.

Ele embalava a menina no colo e conversava carinhosamente com ela, mesmo que sendo ignorado, pois os olhinhos da pequena estavam focados demais nos duendes mecânicos e tudo o que ela ouvia era a música melódica em coro.

Mesmo que estivessem um pouco atrás do aglomerado, ainda havia alguns pais com seus filhotes no caminho entre Kenny e a mesa onde os dois irmãos estavam sentados. Então, Kyle teve a oportunidade de questionar o que estava vendo. Virou-se para Ike apenas para se certificar de que ele estava vendo a mesma coisa.

Ike ergueu as sobrancelhas, perguntando:

-Você não disse que ele tinha ido embora?

Mas Ike quase que imediatamente percebeu que tinha perdido Kyle. O ruivo já estava se levantando, o corpo praticamente orbitando em direção ao loiro que ainda não percebera a sua presença. O mais jovem ergueu o braço em protesto, querendo dizer coisas sensatas como “tem uma criança com ele, pelo amor de Deus, não faça escândalo”, porque Kyle tinha razão quando dizia que não estava em si memo, o que significava que Ike não colocaria a mão no fogo por seu irmão naquele estado. Queria protegê-lo, acima de qualquer coisa.

Não houve tempo para isso, é claro.

Kyle desviou de uma série de pessoas, andando apressadamente como um homem embriagado. Andou com tanto afinco, tanta ansiedade, que não fez ideia do que fazer quando finalmente o alcançou – e foram somente alguns segundos, mas pareceram eternos -, parando a meio metro dele com as mãos caídas nas laterais do corpo, os olhos grandes e assustados.

Kenny percebeu sua presença quando ele já estava próximo demais para evitar o susto.

-Kyle. - Disse, genuinamente surpreso, sentindo um nó imediato na garganta e um aperto no peito que quase trancou sua respiração.

Para sua própria surpresa, Kyle abriu um sorriso tímido e natual. Não havia motivo concreto para sorrir, mas ele não pôde evitar. Passou os dedos pelos cachos para colocar o cabelo atrás da orelha, parecendo muito mais jovem do que era. Aquele sorriso provocou um calor imediato no peito de Kenny, e de repente, ele pôde respirar de novo. Virou-se de frente para o ruivo quase sem perceber, enquanto a menina no seu colo se torcia para continuar enxergando a apresentação, levando a mãozinha à boca. Agora, de perto, Kyle podia ver que ela usava apenas um dos sapatinhos no pé, enquanto Kenny segurava o outro em sua mão. A meia listrada da pequena estava exposta, mas era visível que ela usava uma meia diferente no pé calçado. Kyle precisou alargar o sorriso.

-Quem é essa belezinha? - Perguntou, esticando a mão para tocar a perna dela sutilmente, fazendo um carinho breve.

Kenny hesitou por um instante como se fosse pego de surpresa pela pergunta. Mas sua resposta veio leve e gentil voltado à criança, ajeitando-a nos braços.

-Essa é a Honey. É minha sobrinha. - Disse com orgulho, levando a mão pelo cabelo armado dela, acariciando a parte de trás da cabeça. - Eu sei que é nome de stripper, mas ela vai ser presidente um dia.

-Você é tão linda! - Kyle disse a ela, rindo do comentário, mas a menina virou o rosto para ele apenas por um instante, com a mesma expressão fechada que se desfez em um sorrisinho envergonhado, mas quase que imediatamente escondeu o rosto no ombro de Kenny. Kyle riu e se endireitou, voltando sua atenção ao loiro. - Eu não sabia que Karen tinha uma filha.

-Ah, não, ela não tem. Ela é filha do Kevin. Mas a gente veio passear com a tia Karen e ver o Papai Noel, não foi? - Ele perguntou à sobrinha, cheirando o cabelo dela e dando um beijo no topo da sua cabecinha.

-O Kevin é pai? Minha nossa. Eu não fazia ideia.

-É, nem eu.

Houve um risinho breve de desgraça enquanto Kenny revirava os olhos para o fato de que seu irmão – ou qualquer pessoa daquela família – não se deu ao trabalho de mencionar que ele tinha uma sobrinha. Também não havia julgamento naquela expressão, pois o contato com eles nos últimos anos foi muito minimalista. Kenny vivera aqueles oito anos sem celular, sem computador, como um nômade despreocupado, sem muito interesse na vida deles. Era assim que os McCormick funcionavam.

-Ele se casou? - Kyle perguntou, genuinamente curioso.

-Pff. Para, né.

A honestidade daquela resposta quase fez Kyle rir, ainda que fosse um riso nervoso, pois dava a entender que Kevin McCormick não tinha mudado muito da pessoa difícil que costumava ser. Kyle lembrava-se que não havia uma vez sequer que ele encontrasse com Kenny sem fazer um comentário homofóbico disfarçado de piada. Aquilo incomodava o ruivo profundamente, mas Kenny sempre desdenhava dessa preocupação afirmando que era apenas o jeito dele. Kevin bebia constantemente já naquela época, e quando bebia, era barulhento e agressivo em vez de fechado e sarcástico. Poderia facilmente ter terminado na cadeia, certamente não fez poucas coisas que o pusessem nesse risco. Era estranho imaginá-lo como pai para uma criatura tão delicada. O que Kenny não contaria era que Kevin ainda tinha uma terrível dificuldade em desempenhar esse papel. Honey era resultado de uma noite embrigada que Kevin dividiu com uma prostituta. Depois de descobrir que estava grávida, a moça – que não tinha mais de vinte e um anos – parou de se prostituir e conseguiu um emprego como caixa de uma mercearia no centro. Kevin queria que ela abortasse, mas ela se recusou. A criança morava com ela em um apartamento minúsculo e Kevin podia passar os finais de semana com ela.

Naquele domingo, Kevin estava vendo o jogo no bar, bêbado e ocupado demais para acompanhá-los.

Mas Kenny não diria isso em voz alta, porque independente do quanto aquilo revirasse seu estômago, ainda tinha um senso forte de proteção com Kevin. Sabia muito bem porque ele era do jeito que era e como poderia ter se tornado a mesma coisa se tivesse ficado em South Park.

Kyle o encarou durante algum tempo, admirado, enquanto o loiro refletia em silêncio.

-Stan disse que você tinha ido embora. - Disse, de repente, como se as palavras escapassem da sua boca e ele não pudesse contê-las.

Kenny tentou não fazer contato visual, brincando com o cabelo da sobrinha, como se não prestasse muita atenção. Mas prestava, é claro. Todos os seus sentidos ficaram alertas ao sentir a proximidade de um assunto no qual ele não queria tocar.

-Pois é, eu não fui.

Karen se aproximou dos dois, carregando duas sacolas de compras de natal. Kyle não a via há muito tempo. Houve uma época em que eles se encontravam no mercado, na rua, no banco, e acenavam educadamente um para o outro. Agora, ele mal pôde reconhecer a mulher exausta que vinha na direção deles, usando um enorme suéter marrom acinzentado com uma gola tão larga que mostrava um dos seus ombros. O cabelo sujo estava preso em um coque bagunçado, caindo vários fios soltos do amarrador. Não havia qualquer maquiagem em seu rosto para encobrir as olheiras escuras, mas Karen era dona de uma beleza forte; Ela não se parecia em nada com Kenny, cuja beleza era fácil, quase vagabunda, com aquele sorriso sedutor de quem não prestava.

-Kyle. - ela disse, surpresa, tentando recuperar um sorriso sem graça que disfaçasse tudo o que passou pela sua cabeça no momento.

Ele retribuiu o cumprimento, mas antes que eles pudessem trocar uma palavra sequer, Kenny se virou para sua irmã para tirar as sacolas da mão dela e entregar a sua irmã a criança no seu colo, dizendo a sua sobrinha para que fosse com a Tia Karen, que o encarou, confusa.

-Ela tá com sede, leva ela pra beber alguma coisa, por favor. Eu já vou encontrar com vocês.

-Ah. Certo. - Respondeu insegura, preocupada, umedecendo os lábios ao encará-lo de volta como se questionasse com os olhos se era isso mesmo que ele queria. Kenny não oscilou.

Não se demorou muito a sorrir para o ruivo e acenar com a cabeça antes de dar as costas, conversando com sua sobrinha que repetia “Papai Noel” várias vezes, empolgada.

Agora, sem a menininha no colo, foi o primeiro momento em que Kenny pareceu verdadeiramente tenso. Levou a mão à nuca, massageando-na, deixando o ar escapar das narinas. Ele procurava as palavras certas, mas o sorriso sutil no canto da boca de Kyle o distraía demais do que ele precisava dizer.

-Eu pensei... - O ruivo começou, pausando por um momento para esfregar o rosto com as duas palmas. Sua voz estremeceu, agoniado ao continuar, respirando fundo. - Eu realmente pensei que não fosse te ver nunca mais.

Kenny rolou os lábios para dentro da boca, levando a mão livre pelo maxilar, coçando o princípio de barba que crescia, estreitando os olhos ao observar o rosto quase esperançoso de Kyle.

-Eu não faria isso. - Disse finalmente, soando um tanto desconfortável, descendo a mão pelo próprio braço. - Não iria embora sem dizer nada.

-Mas você saiu da casa do Stan. E se demitiu, eu fui te procurar lá. Onde é que você está morando agora?

-No Kevin.

Kyle ergueu as sobrancelhas em surpresa, curzando os braços. Kenny olhou para baixo de relance e limpou a garganta, observando o outro por trás dos fios dourados de cabelo. A apresentação havia acabado, os elfos não cantavam mais e a concentração de pessoas começava a dispersar. Kyle deu um passo à frente, aproximando-se dele com os lábios entreabertos como se quisesse dizer alguma coisa. O loiro tensionou o maxilar e pensou em dar um passo para trás, mas o corpo não obedeceu.

-A gente não pode conversar?

-Kyle, eu vou embora. - Respondeu de forma mais agressiva, como se cuspisse a frase na cara do outro, mas Kyle praticamente não reagiu. Apenas seus olhos vacilaram, com um brilho assustado que fez com que o loiro abaixasse um pouco a guarda. - A Karen me pediu pra passar o natal aqui, com os nossos pais. Mas dia 26 eu vou, já comprei a passagem. Eu precisava do dinheiro do acerto pra no trabalho pra isso.

O burburinho da multidão em volta preencheu a tensão entre eles, mas para os dois homens, todo o entorno parecia ter desaparecido. Eles só enxergavam um ao outro, ainda que houvesse um abismo entre eles. Kenny coçou a testa, passando a língua pelo lábio inferior, incerto, como se precisasse dizer mais alguma coisa diante do silêncio de Kyle. Era quase impossível ler aquele rosto duro, fechado, a sensação de desconhecer o que Kyle estava pensando era dolorosamente familiar para ele.

-Eu nem entendo o que mais nós teríamos pra dizer um pro outro. - Kenny acrescentou, perturbado. - Nós já tivemos essa conversa, você já se decidiu, eu... Eu tô tentando respeitar.

Kenny não era um homem habilidoso no que dizia respeito a esconder o que sentia, espeicalmente porque não tentava, não tinha muita pretensão de fingir que não doía falar sobre aquilo. Ele tinha ignorado quaisquer perguntas a respeito, tanto de Karen como de Stan, ele simplesmente não podia elaborar o que havia acontecido. Sentia-se como se tivesse despertado de um coma, um êxtase interminável causado pelo envolvimento de tal forma que Kenny demorou a se lembrar de quem era.

Não podia dizer que já tinha começado a se recuperar e nem acreditava que isso fosse acontecer enquanto estivesse em South Park. Sentia-se como um vira-lata abatido.

-Eu não estou mais com o Cartman.

-Oi?

Por algum motivo, ele não quis repetir a frase em voz alta. Mordeu o lábio inferior, hesitante, desviando o olhar daquele transe em que haviam entrado, sugados pela presença um do outro. Kenny enfiou a mão por dentro do bolso do moletom, repartiu os lábios e deslocou o rosto alguns centímetros para o lado, passando a língua pela parte interna da bochecha, algo tão característico dele enquanto estava concentrado em um pensamento muito obscuro. Durou somente alguns segundos. Logo, foi como se o loiro fosse atingido por uma pedra na cabeça, pendendo um pouco para frente com ares de quem acabou de tomar uma grande decisão. Sentiu-se seguro, enfim, para dar um passo para trás. A mão que segurava as sacolas de sua irmã subiu ao rosto do homem à sua frente, com o dedo indicador levantado.

-Não. - Kenny disse com firmeza. - Você não pode fazer isso.

-Eu não estou... Eu sei que não muda nada.

-Não sabe. Você não sabe. - Respondeu bem lentamente, como se falasse com uma criança. - Você não pode brotar a uma semana de eu dar o fora dessa merda e me dizer que você não tá mais com ele. - A mão acusatória abaixou, e por um momento, pareceu que ele tinha terminado. Mas logo em seguida levantou a voz como se tivesse sido atingido por uma nova indignação. - E você tá um lixo. Ninguém mais no mundo fica bonito com essa olheira e essa cara de derrota, Kyle. E você chega assim, lindo desse jeito, me falando essas merdas.

Kyle precisava rir àquela altura, contido e resignado, balançando a cabeça negativamente e se arriscando a tocar o braço de Kenny como se, através disso, pudesse acalmá-lo, porque apesar da agitação, o loiro também entregava uma insinuação de sorriso na boca, ainda que lutando contra com todas as suas forças.

-Eu não disse nada. - O ruivo respondeu, umedecendo os lábios quase que provocativo, mas sem intenção de causar nada, deslizando a mão pelo antebraço do outro. Seu semblante logo voltou a ficar sério. - Tem sido... Insuportável. A forma como você desapareceu.

-O que você queria que eu fizesse?

-Nada. Mas eu pensei que você tivesse ido pra não voltar mais e eu nem tive a chance de... De me despedir. Eu sei que não tem nada de diferente, os nossos motivos ainda existem, eu só quero uma chance de dizer adeus. Por favor, Kenny. Você vai embora de qualquer jeito.

Kenny sabia que a sua resposta nos próximos oito segundos poderia definir muita coisa pelos próximos oito anos. Engoliu seco, mantendo a boca em uma linha reta, séria, sóbria, levantando o queixo alguns milímetros como se precisasse daquilo para se sentir no controle de alguma coisa.

-Eu não quero mais isso, Kyle. - Respondeu sem a mínima convicção.

Mas aquele ruivo desgraçado, assim pensava Kenny, chegou mais perto com cautela, levando as duas mãos às laterais do pescoço dele. Kenny não se moveu. Kyle não invadiu o campo invisível imposto por ele, não quebrou aquela armadura forçando um contato maior do que o necessário. Aproximou-se o suficiente, apenas, para que o efeito da sua voz doce fosse ainda mais forte:

-Eu sinto tanto a sua falta.

Kenny fechou os olhos.

-Eu também. - Respondeu em um suspiro, sem pensar, como se fosse um reflexo natural do seu corpo. Ao separar as pálpebras e abaixar um pouco o rosto para encará-lo de perto, soube que estava prestes a cometer um erro. Não encontrou força para se incomodar muito com isso.

-Eu sei que acabou. Eu não quero mudar nada do que aconteceu, não tem como.

Kenny percorreu a mão pela parte interna do antebraço dele, dando um aperto suave pouco antes de Kyle afastar as mãos dele. Os rostos continuaram próximos, tão próximos que o loiro esboçou, sem querer, um sorriso fácil e ligeiramente envergonhado pela entrega, sacudindo a cabeça em recusa. Tentou usar uma voz impaciente, mas a pergunta saiu muito mais macia do que ele pretendia:

-E o que você quer?

Havia malícia na sua voz, ele sabia. Era como se não pudesse controlar.

Kyle não foi tão óbvio na insinuação, recolheu-se muito depressa e se afastou poucos – porém significativos – centímetros.

-Eu estou sozinho no apartamento agora. Eu trabalho até às 14h, mas tenho passado a maior parte do tempo escrevendo em casa. Se você quiser... Conversar. Antes de ir embora... É só aparecer.

O loiro pendeu com a cabeça um pouco para o lado e o observou com desconfiança, um olhar jovial e espirituoso, levando a mão ao pequeno cacho que caía por cima dos olhos de Kyle, afastando-o com os dedos leves.

-Você não presta, Broflovski. - Disse sorrindo.



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